Fim dos perdões covid na mão do Parlamento

O Ministério da Justiça lembra que a decisão é da Assembleia da República, ‘que quis conservar para si a prerrogativa de tomar essa iniciativa’.

Apesar de mais de 91% da população reclusa estar vacinada contra o novo coronavírus, o Executivo mantém em vigor um perdão que permite libertar presos que ainda não cumpriram as penas. Por este motivo, com mais de metade da pena de prisão cumprida – dois anos e dez meses –, Armando Vara, condenado no contexto do processo Face Oculta, saiu esta segunda-feira em liberdade. 

De acordo com o Conselho Superior da Magistratura, o antigo deputado do PS foi libertado ao abrigo da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, isto é, do regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença covid-19, que ainda permanece em vigor.

«Encontrando-se preso no Estabelecimento Prisional de Évora desde 16 de janeiro de 2019, onde se apresentou voluntariamente, o Tribunal de Execução de Penas de Évora entendeu e decidiu que Armando Vara reunia os requisitos legais de perdão de pena aludidos no artigo 2º da supracitada Lei, tendo a decisão efeitos imediatos. A medida foi também promovida pelo Ministério Público», indicou o juiz presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Évora.
Vara adiantou aos jornalistas que «finalmente, a Justiça cumpriu simplesmente a lei» e que esteve preso por crimes que não cometeu. «Estive dois anos e nove meses a cumprir uma pena por crimes que não cometi e impossibilitado de sair, o que é também um exagero para o tipo de criminalidade de que fui considerado culpado», realçou o antigo ministro, admitindo que se sentiu injustiçado pois «sempre» viu o pedido de liberdade condicional e as precárias especiais recusadas ao longo do tempo de pena cumprido.

Mas casos como o de Vara continuarão a ser verificados, pois, ainda que o Governo quisesse terminar com este regime, a revogação está nas mãos do Parlamento. 

Em 2020, a proposta do Governo que criou este regime recebeu votos favoráveis do PS, BE, PCP e deputada não inscrita Joacine Katar-Moreira e os votos contra do PSD, CDS-PP, Iniciativa Liberal e Chega e a abstenção do PAN, pois o objetivo era controlar a propagação da covid-19. No entanto, volvido um ano e seis meses, o panorama já se vai alterando.

Segundo a Rádio Renascença (RR), «há mais de três meses que o PSD e o CDS entregaram dois projetos de lei que pretendiam revogar, a partir de 1 de julho de 2021, o regime excecional de libertação de presos, mediante uma vacinação completa dos reclusos até finais de junho» e «o PS diz-se alinhado» com os mesmos.

A 23 de junho, o deputado e vice-presidente do PSD André Coelho Lima afirmou no Parlamento que dali a sete dias seria o prazo apontado pela task-force da vacinação para concluir o processo de inoculação na população prisional. «Ou seja, quando estiver terminada a vacinação não há razão nenhuma para que não termine o regime excecional», defendeu. Na ótica do deputado, o Governo só recusaria essa revogação se não pretendesse «proteger a população prisional, mas combater a sobrelotação das cadeias portuguesas».

No mesmo dia, também na Assembleia da República, o líder parlamentar do CDS-PP afirmou que o partido havia dado entrada de um projeto de lei com o mesmo fim, pedindo que o regime cessasse logo que este diploma entrasse em vigor (no dia seguinte ao da sua publicação, caso fosse aprovado pelo Parlamento), «sem prejuízo da tramitação dos processos em apreciação». 

De acordo com informação divulgada pela RR, a votação das iniciativas ainda não está agendada e tanto a Presidência da República como a Assembleia da República ainda não teceram qualquer comentário acerca desta questão.

«Somos o país com a mais baixa criminalidade»

Neste sentido, também foi implementada a possibilidade de saída extraordinária – em termos simples, liberdade provisória –, medida que teve origem em sugestões da Associação de Apoio ao Recluso (APAR), que culminou na Lei n.º 9/2020. «A APAR anunciou, no início do ano de 2020, que, por causa da pandemia, a sobrelotação era de tal modo que se houvesse pandemia nas cadeias, seria um problema de uma gravidade extrema e que, na nossa ótica, havia um número elevado de reclusos que podia cumprir a pena de outro modo ou até serem libertados», assevera Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR, em declarações ao Nascer do SOL.

«Propusemos e foi aceite que permitissem saídas precárias com mais assiduidade. A senhora provedora de Justiça foi mais longe e propôs que em vez das saídas serem de 3 a 7 dias, passassem a ser de 45 dias e que depois poderiam ser renovadas automaticamente. E, portanto, na altura, saíram cerca de 1800 reclusos, para ficarem presos em casa».

«Também propusemos que aqueles que cometeram crimes de menor gravidade – há milhares de reclusos e mais de 7% são homicidas, enquanto 7,8% são pessoas que foram apanhadas a conduzir sem carta de condução e a cometer crimes deste género – pudessem ser libertados e, assim, as cadeias ficariam sem umas centenas largas de reclusos», diz, referindo que esta medida podia aplicar-se também a quem levou a cabo «pequenas injúrias e pequenos delitos que podem ser substituídos por uma multa, mas há quem não a consiga pagar».

De qualquer modo, a APAR propôs que todos os reclusos que fossem condenados até dois anos de cadeia, fossem libertados, tal como aqueles que estivessem a dois anos do fim da sua pena. «Na realidade, pedimos dois anos para o fim efetivo da pena. Digo isto porque todos os reclusos, em Portugal, que sejam condenados acima de 6 anos, são obrigatoriamente libertados aos 5/6», indica, esclarecendo que duas recomendações não foram aceites: a libertação das mulheres grávidas ou com filhos pequenos e dos doentes em estado muito grave. 

Segundo o Ministério da Justiça, em declarações ao Nascer do SOL e recorrendo a dados fornecidos pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), «quando o Governo propôs ao Parlamento a adoção de um conjunto de medidas nas quais se incluem os perdões de pena à luz da Pandemia de COVID 19, propôs também que fosse o próprio Governo, através de Decreto-lei, a decretar o tempo de vigências dessas medidas. Tal proposta não foi aceite pelo Parlamento, que quis conservar para si a prerrogativa de tomar essa iniciativa». 

«Somos o país com mais baixa criminalidade da Europa, mas aquele que tem o maior número de presos. As cadeias estão todas sobrelotadas e a lei não é cumprida e, por isso, há lá gente que já devia estar na rua», adianta Vítor Ilharco, lembrando que, no passado mês de maio, dos então 180 reclusos que se encontravam na prisão de Ponta Delgada, nos Açores, 50 dormiam nos corredores do estabelecimento. «A situação está resolvida porque chegaram a mandar reclusos para o Continente e para outras ilhas o que, na prática, significa que deixaram de ter visitas. Uma das coisas mais importantes são as visitas e, cortando os laços familiares, tudo fica pior para os reclusos», elogiando, porém que «numa primeira fase, foi excelente aquilo que a DGRSP, a Direção-Geral da Saúde e a task-force conseguiram uma coisa praticamente única: não houve um recluso que tenha morrido por estar infetado com covid-19 ou que tenha estado numa Unidade de Cuidados Intensivos», mas tal «foi levado a um tal excesso que, um ano e meio depois, quando já está tudo aberto – estádios cheios, transportes públicos a rebentar pelas costuras -, continua tudo na mesma nas cadeias». 

Na perspetiva de Vítor Ilharco, «a maior ilegalidade» prende-se com a decisão tomada relativamente às visitas: a lei estipula que o recluso tem direito a duas visitas semanais de uma hora cada, sendo uma destas ao fim de semana, e passou a existir somente uma com duração de meia hora. «Isto significa que há famílias que viajam 200 e 300km para estarem meia hora com um recluso em que nem podem sequer tocar. Parece que a covid só ataca aos fins de semana. É o exemplo máximo da inércia. Se puderem evitar trabalho, evitam. Aos fins de semana, os guardas querem descansar, o que é legítimo, e não há visitas. Mas a lei diz o contrário. Ao início havia a justificação da covid, mas agora não».

Segundo a DGRSP, entre 11 de abril de 2020 e 31 de agosto de 2021, foram registadas 2 030 libertações, foram concedidas 906 Licenças de Saída Administrativa Extraordinária e concedidos 16 indultos. «Releve-se que, ao presente momento, estão unicamente 27 reclusos em usufruto de Licença de Saída Administrativa Extraordinária e que a última que foi concedida é datada de 4 de junho de 2021».

Notícia corrigida e atualizada às 13h20 de 21/10