Dia Mundial da Alimentação. “Importa fomentar uma relação mais gentil com aquilo que comemos”

«Há cerca de 135 milhões de pessoas em fome aguda, mas a pandemia acabou por trazer muitos mais milhões que, infelizmente, também não têm alimentos suficientes», explica a jovem nutricionista Helena Trigueiro que reconhece o impacto que a pandemia teve tanto neste flagelo como no dos distúrbios alimentares.

Descobriu as Ciências da Nutrição «por acaso», semanas antes de preencher a candidatura ao Ensino Superior, mas, volvidos oito anos, tem a certeza de que tomou a opção certa. Aos 26, Helena Trigueiro já passou pela licenciatura e pelo mestrado na Universidade do Porto e, neste ano letivo, a par de ser estagiária no Parlamento Europeu, é também estudante do primeiro ano do doutoramento na Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, dividindo o tempo entre Bruxelas, as aulas e respetivos trabalhos, assim como a consciencialização relativamente aos principais temas da alimentação por meio das redes sociais e da sua prática clínica.

Como tal, o Dia Mundial da Alimentação, que se celebra este sábado, não passa despercebido à jovem que, em conversa com a LUZ, explica que, de acordo com os dados que conhece, «há cerca de 135 milhões de pessoas em fome aguda, mas a pandemia acabou por trazer muitos mais milhões que, infelizmente, também não têm alimentos suficientes». 

Esta perceção dos factos é baseada no Relatório Global 2020 sobre Crises Alimentares, divulgado pelas Nações Unidas em abril do ano passado, onde constava que cerca de 135 milhões de pessoas no mundo, nomeadamente em 55 países afetados por conflitos e problemas climáticos, estavam à beira da fome em 2019, sendo que este constituiu o número mais elevado apresentado nos quatro anos de existência deste relatório, que foi apresentado ao Conselho de Segurança da ONU pelos organizadores do documento: a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e o Programa Alimentar Mundial (PAM).

Nesse mesmo ano, África ainda era a região mais afetada pela situação de «insegurança alimentar aguda», com 73 milhões de pessoas afetadas, isto é, mais da metade do total citado no relatório. Mas não somente neste continente a fome é um flagelo, pois entre os países que mais sofrem com o mesmo, encontram-se o Sudão do Sul (61%), o Iémen (53%), o Afeganistão (37%), a Síria, o Haiti, a Venezuela, a Etiópia, a República Democrática do Congo (RD Congo), o Sudão e a parte norte da Nigéria.

«Sabemos que, para além de haver um problema de distribuição de recursos e equilíbrio dos mesmos, a fome é multifatorial e interseccional. Por isso, é impossível dissociá-la dos conflitos bélicos, da emergência climática e desastres a outros níveis», esclarece Helena, alinhando-se com a perspetiva da FAO e da PAM que, à época da partilha dos resultados apurados, redigiram que «os conflitos ainda eram o principal motor das crises alimentares em 2019, mas as condições climáticas extremas e os choques económicos tornaram-se cada vez mais importantes». 

O relatório foi elaborado antes do surgimento do novo coronavírus e no dia 21 de abril, data em que os resultados do mesmo foram conhecidos, já haviam sido reportados 2.356.414 casos de covid-19 no mundo e 160.120 pessoas tinham perdido a vida devido à doença. Ainda que as consequências da pandemia nos países mais frágeis não tivessem sido estudadas, foi deixado claro que os 55 anteriormente mencionados tinham «uma capacidade muito limitada ou inexistente de lidar com as consequências económicas e de saúde» da mesma, tendo em conta que se estimava que o número de pessoas que enfrentavam a insegurança alimentar podia duplicar passando de 135 milhões no final de 2019 para 265 milhões no fim de 2020.

No documento, foi igualmente explicitado que, no ano passado, a situação era «particularmente preocupante devido às previsões da evolução da pandemia», na medida em que «a maioria dos países mencionados não tem meios para realizar atividades humanitárias de resposta à pandemia e, ao mesmo tempo, proteger e apoiar os meios de subsistência dos seus cidadãos». Por isso, apesar de os autores entenderem que as restantes nações «podem achar cada vez mais difícil priorizar a ajuda no exterior quando as suas situações sociais e económicas também estão a ser muito afetadas», realçaram que  os Estados-membros abrangidos pelo estudo «não devem ser obrigados a escolher entre salvar vidas e salvar meios de subsistência».

«A efeméride, para mim, é muito importante. Acho que em Portugal tem sido bastante celebrada e acaba por aglomerar alguns eventos para discutir não só a fome como a adequação nutricional e a importância da alimentação», avança Helena, indicando que «também é essencial pelas conversas que despoleta» e, assim, a nutricionista gostaria que o mesmo tivesse mais atenção, reconhecendo, porém, que o seu «viés é muito grande» enquanto profissional de saúde.

No passado mês de julho, mais de um ano depois do início da pandemia, a ONU adiantou que havia sido registado um agravamento dramático da fome mundial em 2020, sendo que aproximadamente um décimo da população global – até 811 milhões de pessoas – enfrentaram a fome no ano passado e, deste modo, não se sabe se será possível erradicá-la até 2030 como havia sido traçado. «Fome zero é possível em 2030, mas para isso nós temos de redobrar os nossos esforços, nós temos de, na verdade, reafirmar os nossos compromissos, aqueles que foram tomados em 2015. Com ações práticas e com exemplos concretos, com mais enfoque na comunidade, nós podemos, de facto, atingir a fome zero», declarou a diretora do escritório da ONU para a Agricultura, em Nova Iorque, Carla Mucavi, no ano de 2018.

O caso português

Em Portugal, mais de um em cada dez trabalhadores (11%) está em situação de pobreza e o mais preocupante é que a maior parte dos pobres não o são por não terem emprego ou por dependerem de apoios sociais que levam a que, muitas das vezes, não recebam mais qualquer valor monetário, mas sim por auferirem salários baixos ou terem empregos precários. Estas são conclusões do estudo Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado pelo investigador e professor universitário Fernando Diogo, que leciona Sociologia na Universidade dos Açores.

O também investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais quis perceber quem são as pessoas em situação de pobreza, assim como conhecer a sua história, trajetória e o modo como vivem. Da investigação sai pela primeira vez uma análise sobre quatro perfis de pobreza em território nacional: reformados, precários, desempregados e trabalhadores.

Em abril, o docente, em entrevista ao jornal i, clarificou que os inquiridos foram questionados acerca da forma como fazem a gestão do orçamento mensal para sobreviverem. «A maior parte diz que o dinheiro não chega ou que adequa as despesas ao mesmo. ‘Roubar a Pedro para dar a Paulo’ é a expressão que mais encaixa neste panorama», confessou o autor, contando que se deparou com pessoas «que não compram medicamentos ou cortam na comida» para conseguirem fazer face a todos os encargos.

Sabe-se que, em 2019, deu-se uma subida dos rendimentos dos portugueses para uma média anual de 10 800 euros, o que levou ao aumento do limiar da pobreza, que corresponde a 60% deste valor. Assim, o valor abaixo do qual alguém é considerado pobre, em Portugal, passou para os 6480 euros anuais que correspondem a 540 euros por mês – antes 501,16 euros –, de acordo com informação avançada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) no final do passado mês de fevereiro, no contexto da divulgação dos dados provisórios do Inquérito ao Rendimento e Condições de Vida.

A seu lado, Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa de Bancos Alimentares Contra a Fome, explicitou, no início de dezembro de 2020, que «nunca tínhamos tido uma crise tão forte como a que temos hoje» e que recebia, então, 52 pedidos diários de ajuda. E este correspondeu também ao panorama de outras associações de solidariedade social que se dedicaram cada vez mais ao auxílio em termos alimentares. Seguindo a mesma linha de pensamento, Helena refere que «a fome também está escondida. Por vezes, no contexto europeu, existe a ideia de que esta já não é um problema nosso e isso está errado. Pensamos em países com situações mais extremas».

«Durante a pandemia, pelo menos dos dados que se recolheram em Portugal, houve uma resposta muito polarizada: umas pessoas aumentaram a ingestão de hortícolas e fruta, outras consideram que pioraram os seus hábitos, mas isso tem a ver com a disponibilidade alimentar que as pessoas têm em casa e o facto de ser uma situação de stress muito elevado».

«Acabou por ser complicado porque sentiram que não se conseguiam alimentar da forma que quereriam. Não consigo considerar uma situação positiva per si, embora tenhamos registos: existem situações distintas. No geral, penso que o impacto não foi o melhor», continua, abordando de seguida a vertente daqueles que sofrem de distúrbios alimentares.

A título de exemplo, já em agosto de 2020, em entrevista à agência Lusa, a médica Maria de São José Tavares disse que a pandemia de Covid-19 agravou muitas situações de ansiedade, depressão e perturbações do comportamento alimentar, consumos de álcool e tabaco nas camadas mais jovens da população. No âmbito do confinamento, «os jovens ficaram em casa, comeram mais, engordaram. Outros começaram a fazer dietas restritivas porque tinham engordado muito», indicou a coordenadora do centro de atendimento para adolescentes Aparece.

«Embora não haja dados, a minha experiência clínica dizia-me que parecia haver um aumento e também algumas dificuldades por parte dos doentes com estas perturbações para voltar aos seus mecanismos de defesa da doença, havia remissão em alguns casos. A nível mundial, esta situação piorou, portanto, não me surpreenderia nada que esse panorama fosse também o português», concorda Helena, para quem a relação emocional, cultural e social que temos com a comida é indissociável do seu valor e, estando sensível ao seu valor nutricional e ao impacto na saúde, devido à área de atuação, não pode ignorar essa riqueza. 

«Hoje em dia penso que, infelizmente, com o algoritmo a não ajudar e as redes sociais a nem sempre fomentarem uma boa relação com a comida, ficamos assoberbados com a informação. E daí ser importante, nas Ciências da Nutrição, fomentar uma relação mais gentil com aquilo que comemos e com a própria visão do corpo», recomenda a profissional.

«Muitas das vezes, acabo por receber testemunhos porque, infelizmente, a própria questão da relação com a comida é uma epifania que vem um bocadinho mais tarde. As pessoas podem ter comportamentos menos saudáveis e não perceberem. A nutrição é muito mais do que dietas restritivas».