Ordens. “Governo quer calar vozes incómodas”

Diploma do PS foi aprovado na generalidade, à boleia da abstenção em São Bento. Ordens acusam o Governo socialista de querer governamentalizar as associações profissionais, prejudicando a sua autorregulação. 

Ordens. “Governo quer calar vozes incómodas”

O projeto de lei do PS que introduz alterações no funcionamento das ordens profissionais – e que várias qualificam como inaceitáveis – foi  na sexta-feira aprovado na generalidade. Passaram também na Assembleia da República os diplomas do PAN e da deputada Cristina Rodrigues, que incidem nos estágios de acesso às profissões.

A proposta do PS, que visa trazer «maior transparência e independência naquilo que é o exercício e a função de uma ordem profissional», mereceu o voto a favor do proponente, do PAN e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira, a abstenção de PSD, BE, PCP, PEV, Iniciativa Liberal (IL) e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues.Votaram contra este diploma o CDS-PP e o Chega.

A iniciativa propõe que os órgãos de supervisão das ordens tenham membros externos às organizações profissionais e ainda que a figura do provedor dos destinatários dos serviços, já prevista na lei, se torne obrigatória e «seja designada pelo bastonário da ordem ou presidente da associação pública profissional de entre três candidatos propostos pela entidade pública responsável pela defesa do consumidor», sendo que este não pode ser destituído, «salvo por falta grave no exercício das suas funções».

No que se refere às condições de acesso às ordens, propõe ainda um limite máximo de 12 meses para os estágios profissionais e que as fases de formação não possam reproduzir os conteúdos que já foram lecionados durante os cursos no ensino superior.

As associações representativas das profissões reguladas contestaram aquilo a que chamam «uma ingerência direta» na atividade que desenvolvem e acusam o Governo socialista de uma tentativa de colocar as ordens «sob tutela externa».

Para o bastonário da Ordem dos Advogados, a alteração proposta pelo PS constitui um «ataque à independência e à autorregulação dos profissionais que [as ordens] representam». «Por mais que se procure disfarçar as intenções políticas do PS de governamentalizar as Ordens, essas intenções estão à vista de todos», diz Luís Menezes Leitão, criticando ainda «quem opte por se abster perante este ataque às ordens».

Já a Ordem dos Enfermeiros diz que o PS «sempre lidou muito mal com quem tem pensamento próprio». «Este Governo lida mal com quem, como nós, coloca a nu as fragilidades de um SNS historicamente subfinanciado e desvalorizado», lamenta Ana Rita Cavaco.

No entender da bastonária, quem dificulta o acesso à profissão é «quem paga salários indignos e sujeita os enfermeiros a condições de trabalho desumano». «Sob o pretexto de que o que está agora em causa são os estágios e as remunerações, o PS esconde a sua verdadeira motivação: calar as vozes incómodas das Ordens Profissionais e colocá-las refém do Estado», sublinha.

Na passada segunda-feira, o Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), que representa 471 mil profissionais de 17 ordens, tinha apelado aos deputados para que ponderassem «devidamente as consequências deste projeto de lei».

Na ótica do CNOP, o diploma em causa «tem normas prejudiciais ao serviço público que prestam à sociedade, porquanto atentam contra o seu funcionamento eficaz, democrático e independente e configuram uma tentativa de governamentalização das mesmas». De igual forma, as ordens dos Médicos, Advogados e Engenheiros recusam ficarem sujeitas ao controlo do Estado.

Em conferência de imprensa conjunta, na semana passada, as três ordens anunciaram que vão avançar com um pedido à Provedora de Justiça para averiguar a constitucionalidade do diploma. Numa perspetiva mais comedida, a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados defende que se deve «olhar positivamente para as normas e ver o que trazem positivo para o interesse público», disse numa entrevista ao i.

«Quando se fala de o Estado querer controlar mais as ordens não deixa de ser verdade, mas é algo que já acontece porque têm a tutela dos próprios ministérios que lhes estão atribuídos. Se existem ordens que não cumprem a parte disciplinar então o Estado tem de agir aí. Politizar e extravasar aquilo que é a nossa realidade acho que não deve ser feito», argumentou Paula Franco.

No debate sobre os quatro projetos de lei, na passada quarta-feira, o projeto do PS foi amplamente criticado, tanto à Direita como à Esquerda, mas os partidos com assento parlamentar mostraram abertura para discutir o diploma em sede de especialidade.

A deputada Emília Cerqueira do PSD, acusou os socialistas de quererem governamentalizar de forma «clara e ostensiva» as ordens profissionais «pela porta lateral», alegando que a figura do provedor dos destinatários dos serviços, apesar de ser escolhida pelo bastonário de cada ordem, é feita «dentro de um catálogo de três personalidades apresentado pelo Governo».

Também a deputada social-democrata Clara Marques Mendes acrescentou que «o Governo não gosta de sociedades independentes» e de ordens «frontais, autónomas e exigentes nos seus posicionamentos» que corrigem «os excessos do poder político», argumentou. «Alterar o regime das ordens profissionais tem que ser em articulação com as ordens e não contra as ordens. Amordaçar as organizações não faz bem à sociedade e não faz bem à democracia», reiterou a deputada.

Também o CDS-PP, pela voz de Telmo Correia, criticou o facto de se passar a ter nas ordens «elementos que não são da profissão», o que, «é muito evidente, faz diminuir o poder de independência das mesmas», acusando o PS de tentar limitar «o papel de ordens profissionais particularmente incómodas para a governação socialista».

De igual forma, o deputado único do Chega culpou o PS de querer «acabar com aqueles que lhe fizeram frente». «Isto não é um projeto-lei, é um projeto para acabar com os poucos órgãos independentes que ainda existem. É o maior atentado à liberdade profissional nos últimos 45 anos», atirou André Ventura.

Pelo PCP, António Filipe salientou que está em causa «substituir uma fiscalização corporativista com uma fiscalização que corre o risco de ser governamentalizada». Para o deputado, «as entidades que integram esses órgãos devem ter garantias de independência». 

Do PS, a resposta foi clara: «nada nas medidas» apresentadas no projeto de lei «coloca em causa o autogoverno e a autonomia funcional das ordens». «Essa é uma visão atávica e corporativista de quem ou não leu o projeto de lei ou está de má fé», defendeu a deputada Constança Urbano de Sousa, garantindo que «a narrativa de que esta é uma retaliação do PS às ordens» é falsa, uma vez que envolveu «um longo processo de audições com as ordens, com associações públicas profissionais, sindicatos e associações de estudantes».

Em resposta direta ao PSD, a deputada socialista disse que o provedor do destinatário de serviços tem que ter idoneidade e perfil para defender os consumidores. «Quem é que pode atestar neste país que alguém tem idoneidade e perfil para defender consumidores? É a autoridade – que não é o Governo – que, em Portugal, é competente e que está acima de qualquer Governo para a defesa do consumidor».

O Governo, representado no debate pela voz do secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, afastou igualmente a teoria de que o projeto de lei «se destina a controlar as ordens profissionais ou a permitir a ingerência do Governo na sua atividade».

«Não há rigorosamente nada nos projetos-lei em discussão que comprove esta teoria. O relacionamento entre o Governo e as ordens consiste e continuará a consistir numa tutela de mera legalidade», salientou.

«Os objetivos desta legislação são simples e bastante evidentes para qualquer pessoa de boa-fé: pôr termo às restrições injustificadas e desproporcionais que limitam o acesso a determinadas profissões», frisou.

Especialidade acerta pontas

Em debate esteve ainda o projeto de lei do PAN, aprovado também na generalidade na sexta-feira, que propõe que os estágios obrigatórios de acesso às profissões – como acontece no caso dos advogados, dos contabilistas certificados ou dos economistas – passem a ser obrigatoriamente remunerados, prevendo um valor variável «consoante o estudante tenha licenciatura ou mestrado».

Já o projeto de lei da deputada não inscrita Cristina Rodrigues, aprovado na generalidade com a abstenção de PSD, PCP, CDS-PP, PEV e Chega e os votos a favor dos restantes, aplica-se especificamente às condições de acesso à Ordem dos Advogados, propondo que seja obrigatória a remuneração dos estágios de acesso à profissão  e que a sua duração diminua dos 18 meses atuais, para 12 meses.

Por seu lado, a IL que considera que «ao longo dos anos têm sido constituídas várias ordens, sem lógica nem critério, a não ser por motivos eleitoralistas de alguns partidos presentes na Assembleia da República», pretende eliminar «mais de metade das ordens existentes», bem como «abolir as regras profissionais que consubstanciam um obstáculo desproporcional e desnecessário à livre prestação de serviços, à liberdade de escolha de profissão e à iniciativa privada».

O projeto da Iniciativa Liberal desceu a comissão sem votação, por 60 dias, depois de os deputados aprovarem um requerimento do proponente nesse sentido.

A Ordem dos Fisioterapeutas, que consta da lista das ordens profissionais que a IL considera que deviam ser extintas, mostrou a sua  indignação perante a iniciativa dos liberais. 

Em declarações ao Nascer do SOL, António Lopes, candidato a bastonário desta Ordem, expressou que esta posição da IL «demonstra desconhecimento da profissão e coloca em causa a saúde de todos os portugueses».

«Este terá sido certamente um equívoco provocado pelo pouco conhecimento que o partido terá́ do desenvolvimento da saúde em Portugal e das suas perspetivas de futuro, no que é particularmente relacionado com a fisioterapia», acrescenta.

O fisioterapeuta salienta que a fisioterapia é a terceira maior profissão de saúde, que conta com mais de 12 mil profissionais no ativo. «Como tal, a Ordem dos Fisioterapeutas é fundamental para a regulação da fisioterapia em Portugal como garantia da qualidade dos serviços prestados e equidade dos mesmos a todos os cidadãos», defende. 

A primeira ordem profissional criada em Portugal foi a dos Advogados, criada em 1926, tendo tido a sua génese na Associação dos Advogados de Lisboa, constituída em 1838. A Ordem dos Engenheiros nasce em 1936 e, dois anos depois, é fundada a Ordem dos Médicos. A Ordem dos Arquitetos foi constituída em 1945. Hoje são 20. A mais recente é precisamente a Ordem dos Fisioterapeutas.