“Os casos de abuso na Igreja evidenciam uma clara falta de lucidez por parte dos pais, agravada por uma confiança cega na Igreja”

Líder da comissão que denunciou abusos na Igreja em França defende criação de comissões independentes em todos os países e o lançamento de “campanhas de verdade” que investiguem os abusos contra menores e violência sexual em todas as esferas.

Jean-Marc Sauvé, presidente da comissão que expôs os números avassaladores acerca dos abusos sexuais de menores na Igreja em França ao longo dos últimos 70 anos, defendeu, numa entrevista ao jornal i, que todos os países deviam “pôr em marcha comissões para deitar luz sobre a violência sexual contra menores e pessoas vulneráveis”.

“Penso que todos os países que ainda não o fizeram devem pôr em marcha comissões para deitar luz sobre a violência sexual contra menores e pessoas vulneráveis, tanto na Igreja Católica como no resto da sociedade. O que foi feito nos países anglo-saxónicos e no norte da Europa, bem como no Chile, deve ser generalizado. Hoje estou convencido que o silêncio não significa, em caso algum, que nada aconteceu. Houve demasiado sofrimento. É preciso reconhecê-lo e tirar consequências para que não aconteça novamente”, disse o vice-presidente honorário do Conselho de Estado francês.

Sublinhe-se que as conclusões da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja (CIASE) apontaram para mais de 300 mil menores vítimas de abusos por clérigos e pessoas ligadas à Igreja ao longo dos últimos 70 anos em França. 

Segundo o responsável, desde que o relatório foi conhecido, a 5 de outubro, já foram denunciados mais 200 novos casos e acredita-se que possa haver “muito mais” denúncias ao longo das próximas semanas.

Questionado sobre o que o impressionou mais nos milhares de testemunhos, Jean-Marc Sauvé sublinha a gravidade do “trauma” causado pelas agressões sexuais, além da distorção da “mensagem de salvação” da Igreja “para apaziguar” os impulsos sexuais.

“O mais grave foi a descoberta do trauma causado pelas agressões sexuais. É um ataque à vida, uma verdadeira obra de morte que se traduz numa impossibilidade duradoura de viver e de ser para as vítimas. Mais de metade das vítimas consideram a sua saúde mental má ou muito má, isto décadas depois das agressões a que estiveram sujeitas na infância”, começou por dizer.

“Um segundo aspeto que se tornou muito chocante foi ver como a mensagem de salvação da Igreja foi destorcida para apaziguar os impulsos sexuais. Descobrimos uma verdadeira subversão por parte dos agressores dos ensinamentos da Igreja e da confiança depositada nessa mesma Igreja. Quando o mal se insinua num culto e se veste com as vestes e aparência de salvação, é o cúmulo da perversão”, acrescentou.

Ao falar sobre o facto de apenas 4% dos casos de abusos terem sido sinalizados, o vice-presidente do Conselho de Estado considera este é um número que revela “muitas coisas”, incluindo “uma clara falta de lucidez por parte dos pais, agravada por uma confiança cega na Igreja”.

“Em primeiro lugar [este número] diz-nos que as crianças não falaram. E quando falaram, os pais não acreditaram nelas ou não fizeram nada que fosse útil ou eficaz. Os casos de abuso sexual na Igreja evidenciam uma clara falta de lucidez e de capacidade de resposta por parte dos pais, agravada pela confiança cega muitas vezes depositada na Igreja. Constatei mesmo, nas audições em que participei, que persiste um grande ressentimento das vítimas para com os seus pais. Muitas vítimas culpam os pais por nada terem feito e por os terem colocado, conscientemente ou não, na mão de predadores. Os pais, por sua vez, culpam os seus filhos por não se terem manifestado, por não terem falado”, completou.

Leia aqui a entrevista na íntegra.