OE. O chumbo que chegou sem grandes surpresas

Resultado não surpreendeu especialistas de ciência política contactados pelo i e há quem aponte para a vitória do PS, mesmo sem maioria absoluta. Esquerda fragmentou-se entre “questões ideológicas” e “ambição de chegar ao poder”.

Sem surpresas. O Orçamento do Estado para o próximo ano foi chumbado – com 108 votos a favor, 117 deputados contra e cinco abstenções – e nem os apelos de António Costa ao garantir que a proposta era “boa” e que estava “centrada nas necessidades do país” conseguiu salvar o documento, garantindo que tudo fez o que estava ao seu alcance.

O primeiro-ministro garantiu que saía desta votação de consciência tranquila e cabeça erguida, falando em derrota pessoal. “Nunca voltaremos as costas às nossas responsabilidades e aos nossos deveres para com os portugueses”, afirmando que cabe agora ao Presidente da República avaliar esta situação e tomar as decisões que entender. “Cá estaremos para fazer o que resultar da decisão do Presidente da República. Governar por duodécimos se for essa a sua decisão, ir para eleições se for essa a decisão”, remata.

Um desfecho de morte anunciada que não surpreendeu os especialistas da ciência política contactados pelo i. “Este era o cenário mais que evidente. O voto do PCP foi ideológico, o que representou uma tentativa de suster a hemorragia que tem vindo a sofrer em diferentes atos legislativos, já o Bloco deixava implícito que essa era a grande ambição do partido: chegar ao poder por coligação com o PS”, diz ao i José Filipe Pinto. 

No entanto, deixa um alerta: essa aliança do BE com o PS só será possível se no novo ato eleitoral o Partido Socialista obtiver um resultado que lhe permita vencer. E nesse caso, garante que tem poucas dúvidas em relação ao desfecho, mesmo sem maioria absoluta. Ainda assim, acredita que ficará muito próximo desse resultado. “A menos que a conjuntura nacional seja de tal maneira severa que acabe por ter reflexos a nível interno. E, como tal, António Costa quererá as eleições no mais curto espaço de tempo possível”, salienta. 

Também Paula Espírito Santo admite ao i que teria sido uma “grande surpresa” se o Orçamento fosse aprovado. “Não estava a ver que os partidos voltassem atrás com a palavra, mas a negociação ia até ao último minuto. É claro que houve ali um esforço até ao último minuto da parte do Governo”, refere.

A especialista diz ainda que não fica surpreendida com a manutenção de António Costa na liderança. “Faz parte da forma de António Costa atuar. Demitir-se significaria que terminaria o seu mandato e enquanto governante daria azo a que houvesse depois um número dois a assumir a continuidade ou depois convocasse eleições internas”. No entanto, deixa uma garantia: “Seria um processo mais complexo”. 

Sócrates II? José Filipe Pinto afasta um cenário de demissão tal como aconteceu com José Sócrates, após o chumbo do PEC 4. “Neste momento, António Costa dispõe de um ativo, em que ele concedeu e os outros não aceitaram. Já José Sócrates dispunha de um passivo que tinha feito de exigência em exigência até à derrota final. São situações diferentes”.

E para o especialista não há dúvidas: “O PS vai sair reforçado desta posição, apesar de o Governo estar desgastado”, acrescentando que “o Partido Socialista sabe que os próximos tempos não vão ser fáceis por causa da crise energética e dos combustíveis. Ainda assim, pode funcionar como um balão de oxigénio, porque António Costa pode sempre dizer que, afinal de contas, os partidos da oposição – que acabaram por ser da esquerda à direita – lhe recusaram aquilo que satisfazia os interesses do cidadão português”, diz ao i. 

Onda de críticas No debate de ontem, o primeiro-ministro ainda alertou para as consequências do chumbo do Orçamento do Estado e deu alguns exemplos. “O que se vai votar é se a Saúde tem mais 700 milhões de euros e se iniciamos o processo de gratuidade das creches”, citando a deputada do PAN, Inês Sousa Real.

E acrescentou: “Chumbar esta proposta de lei na generalidade é impedir a consolidação destes avanços e fechar a porta a novos avanços na especialidade”, questionando: “Quem quer melhorar o OE, rever a legislação laboral, não deve inviabilizar o debate deste Orçamento”.

O primeiro-ministro aproveitou ainda para fazer balanço dos anos de liderança. “Nasci à esquerda, fui criado à esquerda e a esquerda é a minha família. Acho que pode ser muito mais a mão direita ou a mera oposição à direita. Acredito que tem todo o potencial para construir o futuro e que não está condenada ao protesto”.

Sobre o futuro, o primeiro-ministro disse esperar que a direita não vença as próximas legislativas e que a esquerda possa contar com uma “maioria reforçada e estável”. “Este foi um debate à esquerda em que a direita esteve praticamente ausente”. E acusou: “A direita fechou para obras e manifestamente não é ainda uma alternativa à governação do país”.

A esquerda descarta responsabilidades. Do lado do PCP, João Oliveira garantiu que “com esta proposta de Orçamento ou sem ela, os problemas continuam cá para resolver, e o país precisa dessa solução”, defendendo que os portugueses precisam que se continue a lutar. “Recusamos o guião de passa culpas”, atirou. E foi claro, justificando o voto contra: “A falta de resposta pesa no destino da votação”.

O argumento do Governo de afirmar que “este é o Orçamento mais à esquerda de sempre” não convenceu os bloquistas. “A frase é tão oca que nem a direita resistiu a repetir”, começou por dizer Catarina Martins, referindo que não há dúvidas que “a proposta do OE é de um investimento anémico”. De acordo com a mesma, “a bazuca não tem correspondência” no documento e lembra que “a geringonça foi morta” pela “intransigência que mantém a troika na legislação laboral”. 

“Paz à sua alma” Rui Rio lamenta a “política económica errada e errática” deste Governo e a recuperação lenta do país. “Apenas no final de 2022 Portugal terá recuperado o nível do final de 2019”. E foi mais longe ao garantir que o Executivo “está desde o início da pandemia à espera do milagre europeu, à espera que um disparo de bazuca traga o milagre da recuperação”.

Rui Rio acrescenta ainda que a crise pandémica mostrou que a consolidação orçamental do Governo era “um castelo de areia”, uma vez que “Portugal foi dos estados que menos apoiou as famílias e as empresas”.

Já o deputado Adão Silva acusou António Costa de se ter “armado em engenheiro político”, e declarou “paz à sua alma” à “geringonça”, cuja morte previu. “O país está pior, e os portugueses estão sobressaltados, mais endividados e a regredir face aos nossos parceiros da UE”, acusou o deputado social-democrata. E foi mais longe: “A gerigonça é um cadáver que vamos hoje enterrar”.

Um argumento repetido pelo deputado do Iniciativa Liberal. “A geringonça esgotou-se nas suas contradições. Não é só uma frustração sua, é mesmo uma derrota sua. O PS achou que podia governar eternamente com a extrema-esquerda”, diz João Cotrim de Figueiredo. 

Também para André Ventura “a maioria de esquerda deu-nos o maior empobrecimento que o país já tinha visto”. Para o líder do Chega, “este Orçamento engrossa o Estado e as clientelas de política”, referindo que “os portugueses estão fartos deste sistema e que se vão livrar dele quando forem às urnas”.

Já para Cecília Meireles não há dúvidas que “a geringonça não consegue sequer aprovar um Orçamento do Estado”. A deputada do CDS acrescentou ainda que “Portugal precisava de tudo menos de uma crise política” e lamenta que tenham de ser os portugueses “a colher os ventos da tempestade do oportunismo da geringonça” por “razões eleitorais”.