Solidão Povoada

Recordo-me perfeitamente de passar no Saldanha, e todas as noites lá estava o ‘Senhor do Adeus’ a acenar a todos os que passavam de carro. Sempre com um sorriso no rosto e impecavelmente vestido.

Por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Tu, que agora és mais jagoza do que alfacinha, passas tanto tempo sem vir a Lisboa que, quando vens, está tudo mudado! Já deste conta que o Monumental já não é o que era? Foi tudo remodelado. Dizem que vai ser mais um… hotel.

Lembro-me tão bem de ouvir o Varela Silva (havemos de falar dele no nosso “Diário”), dizer «Não tem ontem!» – quando se referia a pessoas sem conhecimento do passado.

Realmente, ‘não tenho ontem’ em relação ao Teatro Monumental. Recordo-me do edifício, e da polémica quando este foi demolido para dar lugar a um Centro Comercial. 

O edifício, que era uma das mais belas salas de Teatro de Lisboa, deu lugar a um edifício de vidro para comércio e escritórios. Enfim!

Mas não é o Monumental que venho aqui recordar, mas sim João Manuel Serra, aquele que ficou conhecido pelo ‘Senhor do Adeus’.

Recordo-me perfeitamente de passar no Saldanha, e todas as noites lá estava o ‘Senhor do Adeus’ a acenar a todos os que passavam de carro. Sempre com um sorriso no rosto e impecavelmente vestido.

Não era uma figura pública, no entanto todos o conheciam e, acima de tudo, todos o adoravam.

Muitos chamavam-lhe louco mas, na verdade, tentava apenas combater a solidão.

Uma vez li uma entrevista dele em que dizia: «Essa senhora [a solidão] é uma malvada, que me persegue por entre as paredes vazias da casa. Para lhe escapar, venho para aqui. Acenar é a minha forma de comunicar, de me sentir gente».
Nasceu perto da tua casa, num palacete da família. Aqui está uma prova de que a solidão não tem a ver com classes sociais.

Se fosse vivo, faria esta semana 90 anos. Penso que preferia ser conhecido pelo ‘Senhor do Olá’, mas foi, e será, conhecido como ‘Senhor do Adeus’.

Posso não ‘ter ontem’ para umas coisas, mas tenho para outras. Já tu precisavas de várias páginas para recordar o Monumental, o João Manuel Serra, que provavelmente conhecias perfeitamente, e muito mais.

Bjs

 

Querido neto,

Antes de mais, nunca acreditei que o Monumental fosse abaixo. Lembrava-me de ter lá ido logo na inauguração do cinema, ver o filme O Facho e a Flecha, com o Burt Lancaster e a Virginia Mayo. 

E, no último dia em que ele esteve de portas abertas, eu mandei um cartão aos donos: 

«Fui ao ‘Facho’, vou ao fecho».

Muito simpaticamente, responderam-me, dizendo que ia reabrir assim que as obras estivessem prontas, e que eu tinha um bilhete em meu nome na bilheteira para assistir à estreia.

Ainda hoje estou à espera.

E fez-me tanta falta…Em frente ficava o café ‘Paulistana’ (alguns anos depois engolido por outro Centro Comercial), frequentado por todos os atores, e eu adorava estar com eles…

Mas vamos lá mudar de assunto.

Claro que me lembro do ‘Senhor do Adeus’. Mas não fez parte das minhas amizades. Disse-lhe adeus para aí uma meia dúzia de vezes e pouco mais.

Dessas pessoas míticas de Lisboa a única que vem logo à minha cabeça é o Catitinha. O Catitinha era um velho enorme, vestido de preto, que andava sempre com uma data de crianças pela mão – e um apito, para que o trânsito parasse quando ele e os miúdos atravessassem a rua.

Dizia-se que lhe tinha morrido uma filha atropelada e por isso ele ficara assim. Ia de casa em casa buscar crianças e ia com elas passear, normalmente para o Parque Eduardo VII

Lembro-me de ele chegar a minha casa e a criada dizer à minha tia:

«Está aqui o sr. Catitinha».

Ele entrava, almoçava connosco e depois pegava em mim e levava-me para o Parque – e ensinava-me o nome das plantas, das árvores, e como era bom comer azedas. E nunca tínhamos hora de regressar.

Ainda hoje não entendo como é que a minha tia, que mandava em todos com mão de ferro, que nunca me deixava sair de casa nem sequer brincar com outros miúdos – me abandonava a tarde inteira nas mãos do Catitinha!

Mas garanto-te que foi o melhor tempo da minha infância.

Bjs e boa semana.