Saúde. Gestores e médicos criticam Governo por ‘mascarar’ problemas

À metáfora de supermercado a funcionar mal, secretário de Estado respondeu com compromisso de melhorar e vantagens de ter paciência antes de “mudar de fila”.

Mantendo-se a atual trajetória, no final de 2021, mesmo com recuperação da atividade do Serviço Nacional de Saúde este ano, haverá um balanço de menos 13 milhões de consultas presenciais nos cuidados primários nos últimos dois anos, menos 2,8 milhões de atos nos hospitais (entre consultas, cirurgias e atendimentos urgentes) e menos 17 milhões de exames complementares de diagnóstico, estimando-se que 4400 diagnósticos de cancro tenham ficado por realizar com a diminuição dos rastreios oncológicos da mama e do cólon e reto em tempo de pandemia. O cenário foi traçado ontem em mais uma conferência promovida pelo Movimento Saúde em Dia, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Ordem dos Médicos e farmacêutica Roche, com recomendações mas também críticas ao Governo pela falta de um plano de recuperação de cuidados adiados por causa da pandemia. 
Além da análise de indicadores de atividade no SNS, um inquérito à população concluiu que sete em cada dez portugueses consideram insuficiente o investimento feito pelo Estado na saúde e quase 80% apontam a falta de profissionais e os tempos de espera como os principais problemas, defendendo parcerias com o setor privado e social e mais investimento.

Na sessão, Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), defendeu que a universalidade do acesso à Saúde em Portugal está neste momento em causa, pedindo um “debate sério” e considerando que não se pode adiar mais uma resposta estruturada de recuperação de atividade e mascarar quer sintomas – o apelo do movimento à população – quer os problemas do setor. 

Comparando a situação no SNS à de um supermercado em que os utentes, confrontados com listas de espera, pedem para ser abertas mais caixas, enquanto nas caixas estão muitas vezes funcionários a trabalhar mais de 12 horas, com caixas registadoras que não funcionam, o dirigente defendeu que “voltar aos níveis de atividade de 2019 é poucochinho”, acrescentando que “esconder que o serviço de saúde enfrenta tremendos desafios não é o caminho”.  
Lembrando que nos últimos seis anos o orçamento do Serviço Nacional de Saúde teve um reforço de 3,5 mil milhões de euros e contratou milhares de profissionais sem melhorar a resposta, Alexandre Lourenço defendeu ainda que se não houver uma reinvenção do serviço público de saúde, da administração pública com flexibilidade e autonomia para concorrer com o setor privado, o SNS corre mesmo o risco de “claudicar”.

A conferência teve ainda a intervenção da ex-ministra de Saúde Maria de Belém Roseira, que defendeu a complementaridade do SNS com o setor privado e social, e do psiquiatria Daniel Sampaio, que falou de problemas como o atendimento telefónico “péssimo” e denunciou uma cultura de laxismo, nomeadamente no atendimento administrativo, defendendo formação aos funcionários.

Numa intervenção à distância, o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, defendeu que o “SNS não pode continuar a funcionar como há 42 anos”, referindo-se à falta de autonomia das instituições para contratar e à articulação entre setores. “Normalizar não é igual a recuperar”, insistiu. “É importante que se fale em recuperação, é emergente, mas recuperar não é fazer o mesmo em 2021 que se fez em 2019 ou até um bocadinho acima. Recuperar significa recuperar 30 milhões de exames que não foram feitos em 2020, que significam milhares de diagnósticos por fazer e doenças por estadiar, recuperar milhares de consultas presenciais que não foram feitas e recuperar milhares cirurgias”, disse.  

Considerando que “o Governo já perdeu muito tempo”, Miguel Guimarães defendeu mais uma vez um programa extraordinário de recuperação de atividade. A resposta do Governo chegou no final. O encerramento coube ao secretário de Estado Adjunto e da Saúde António Lacerda Sales, que assumiu dificuldades e o objetivo de superar a atividade de 2019, que tinha sido o ano com mais consultas e cirurgias no SNS, mas respondeu também às críticas.
Respondendo diretamente a Alexandre Lourenço, Lacerda Sales disse estar de acordo com a necessidade de defender o serviço público, mas deu outro fim à metáfora do supermercado. “De vez em quando também vou ao supermercado. Quando vejo a fila tão grande, tenho tendência a mudar de fila. Depois arrependo-me. Vejo que se tivesse sido um pouco mais paciente e tivesse ficado na fila, tinha saído primeiro.”  

O governante defendeu a necessidade de recuperar o nível de atividade de 2019 “para ir mais além”, disse, apelando à adesão aos rastreios oncológicos. “Não esperem que venha dizer que está tudo bem, mas não contem (comigo) para dizer que está tudo mal. Até porque o passado recente veio provar que as notícias do colapso eminente do SNS eram manifestamente exageradas”, disse Lacerda Sales, que associou também a contestação e notícias de dificuldades nas últimas semanas ao período de discussão do OE.

 Agradecendo as recomendações, Lacerda Sales apontou outras “soluções” para os problemas do SNS que o Governo entende que estão do lado dos promotores do movimento, como o aumento de capacidades formativas para médicos nos hospitais (vagas que são identificadas pela Ordem e têm sido um dos braços de ferro da legislatura com os médicos) e a qualificação das administrações hospitalares. Mesmo sem novo Orçamento, a discussão na saúde continua ao rubro.