Numa noite de calor impiedoso…

«Acontecem mais coisas no campo de batalha do que aquelas que ficam para a História», diz sabiamente uma personagem de Kipling.

A vida é demasiado curta para lermos livros que nos aborrecem», dizia-me um amigo há poucos dias. Como não concordar com esta evidência? E, ainda assim, muitos de nós lemos de uma ponta à outra livros que suscitam um maior ou menor grau de aborrecimento: seja porque sentimos ao início um entusiasmo que depois esmorece (mas não queremos ‘deitar fora’ as horas de leitura já despendidas), seja porque temos esperança de que algo de surpreendente aconteça.

Foi certamente o que me aconteceu com O Homem que queria ser Rei, uma obra de juventude de Rudyard Kipling (Bombaim, 1865 – Londres, 1936), menos conhecida do que Kim ou O Livro da Selva. Comprei-o movido pela enorme curiosidade que sentia em relação à vida no subcontinente indiano sob o domínio britânico. Embora ainda não o soubesse, este era o livro indicado: os dezassete contos aqui reunidos «foram escritos entre 1885 e 1888, altura em que Kipling se encontrava na Índia», esclarece o curto prefácio da edição da Europa-América. «São retratos da vida da comunidade anglo-indiana, captados em toda a sua diversidade e pormenor».

Toda a gente sabe como as primeiras páginas de um livro são decisivas. As de O Homem que queria ser Rei não me entusiasmaram – longe disso! Achei a primeira e a segunda histórias demasiado inverosímeis. Nas seguintes, fui encontrando aqui e ali algum aspeto curioso, alguma ideia provocadora. Mas nada que justificasse o esforço e o tempo consumidos. Talvez a vida no Raj afinal não fosse assim tão entusiasmante… Estava a ponto de desistir da leitura.

Ao décimo conto, porém, o caso mudou de figura. Façamos um pequeno resumo: quatro soldados, um dos quais moribundo, enfrentam uma noite de calor impiedoso na «mais desolada e menos aprazível de todas as fortalezas da Índia». O tédio e o desconforto são tão intoleráveis como a temperatura.

Até que alguém traz umas garrafas de ginger ale e começa a contar uma história. A história de uma batalha dos diabos. O cenário do confronto é um desfiladeiro «tão escuro como um balde e tão estreito como a cintura de uma rapariga». De um lado está o temível regimento irlandês dos Black Tyrone; do outro, os pachtuns, que defendem o seu território com unhas e dentes.

Acontecem muito mais coisas no campo de batalha do que aquelas que ficam para a História», resume uma das personagens.

De facto, já li várias descrições de batalhas, mas nunca uma como esta. «Há alguns homens a quem a guerra deixa como que embriagados», diz Kipling. Nestas páginas testemunhamos essa embriaguez da violência. Talvez por isso, o relato nem sempre é nítido. Aqui não olhamos para a guerra a partir de um mapa:encaramo-la olhos nos olhos.

Não era nada disto que eu esperava encontrar neste livro, devo reconhecer. Mas foi o suficiente para redimir as horas de leitura em que me aborreci. Às vezes a persistência compensa.