José Lima: “Um quadro não pode ser explicado. A gente olha e ou sente alguma coisa ou não sente”

Considera-se um ‘colecionador invulgar’ porque não estudou e tudo o que aprendeu foi por si, lendo os livros, visitando museus, exposições e ateliês, falando com curadores, galeristas e artistas. Diz que o mundo da arte contemporânea é elitista e que há quem fale só para a sua barriga.

N atural de Águeda, teve de abandonar os estudos muito cedo para trabalhar na sapataria dos pais. Mas nos tempos livres ia lendo os livros de filosofia ou de política que os amigos lhe emprestavam. Aos poucos, sem se aperceber, José Lima ganhou o interesse e o gosto pela arte e, já na casa dos vinte anos, quando começou a visitar as feiras internacionais de calçado em Itália e na Alemanha, tirava algum tempo para visitar os museus.

Hoje tem uma coleção de arte contemporânea composta por cerca de 1300 obras, sediada no Centro de Arte Oliva, em S. João da Madeira, onde estão representados artistas nacionais como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Mário Cesariny, Julião Sarmento ou Pedro Cabrita Reis, e internacionais, como Andy Warhol, Victor Vasarely, Cindy Sherman, Anish Kapoor ou Damien Hirst.

Parte deste acervo excecional pode ser agora visto no Centro Cultural de Cascais / Fundação D. Luís I. Foi aí que nos encontrámos com o empresário e colecionador, entre pinturas de Cesariny, Pomar, Julião, Fernando Lanhas e Álvaro Lapa, o artista que esteve na génese da coleção.

A exposição Entre as Palavras e os Silêncios – Obras da Coleção Norlinda e José Lima, com curadoria de Luísa Soares de Oliveira, está patente em Cascais até 6 de fevereiro de 2022, altura em que viaja para S. João da Madeira.

Talvez seja preconceito meu, mas tinha a ideia de que os empresários são homens pragmáticos, que só se interessam por números e negócios, e acham a arte – em especial a arte contemporânea… – um devaneio ou coisa parecida. É para mim uma surpresa que um empresário do calçado tenha tanto gosto nisto.

A primeira vez que apresentei esta coleção, o presidente da Câmara disse uma coisa curiosa: ‘Normalmente os empresários, em particular os ligados aos sapatos, fazem uma casa muito grande, com uma piscina que nunca usam, e compram Ferraris. Este indivíduo tem uns carros que ninguém dá por eles, vive numa casa alugada e compra quadros’. [risos] É uma coisa estranha.

Uma singularidade?

É um bocado inexplicável. Considero-me um colecionador invulgar. O colecionador normalmente tem alguma coisa de trás. Eu, felizmente ou infelizmente, não tenho. Não estudei, depois foi a lidar com esta gente [dirige-se à curadora Luísa Soares de Oliveira, que nos acompanha na conversa] que fui aprendendo algumas coisas. Nem é uma questão de gosto, porque comprei coisas que não se pode dizer que são bonitas nem que são feias. Sei que comprei aquilo de que gostava – razões que a razão desconhece. Isto para dizer que os empresários normalmente não são colecionadores e vice-versa. Diz que são pragmáticos. Temos que ser – e eu também sou. A empresa é pequena, fatura cinco milhões de euros por ano, só vende para o estrangeiro, temos de ser muito pragmáticos, porque a competição é muito grande. 

Então como se torna colecionador?

Como ganhei o gosto por isto nem eu propriamente sei. Quando era rapazola, não tive tempo de estudar, o meu pai mandou-me trabalhar. E como mandou trabalhar eu tive sempre aquela ânsia de saber mais alguma coisa.

Fazia o quê?

O meu pai tinha uma pequena loja e uma oficina onde arranjava sapatos. Foi ali que comecei. A minha mãe também trabalhava lá. Depois, os rapazes que andaram na primária comigo – eu sou de Águeda, Coimbra fica a 40 km, Aveiro a 25 – foram para os liceus e para as universidades, e eu não tinha hipótese, tinha de estar a trabalhar. Quando eles estavam para Coimbra e para Aveiro traziam-me livros, porque quando trabalhamos no comércio há sempre tempo para ler alguma coisa. E os livros caíam-me: Sartre, Nietzsche… eu lia aquilo tudo.

Isso era leitura ‘da pesada’. Para quem não tinha estudado…

Aparecia filosofia, política, entre outras coisas. Tínhamos umas tertúlias, à noite, juntávamo-nos todos, conversávamos. Isso talvez me tivesse levado a começar a gostar de arte. Por outro lado, a partir dos vinte e poucos anos comecei a ter necessidade de ir às feiras internacionais de calçado, a Milão, a Düsseldorf, e arranjava sempre meio dia para ir aos museus. Primeiro em Milão e em Florença, fui lá para os clássicos do Renascimento e achei aquilo muito bem pintado, espetacular. Mas já não se podia fazer coleção daquilo. Em contrapartida, via um museu de arte contemporânea e havia coisas que me entusiasmavam. Olhe para aquele quadro que está ali. 

O do Cesariny?

O que está ao lado, do [Álvaro] Lapa. Quando vi aquele quadro, disse: ‘Se tiver dinheiro vou comprar aquilo’. Não sabia porquê. Aquilo entusiasmou-me tanto que andei à procura dos papéis [desenhos ou pinturas sobre papel] do Lapa, tenho seis ou sete. Ou este do Chillida [um dos grandes escultores espanhóis do século XX]. Isto está à frente da minha cama há vinte anos. Todos os dias. Nunca saiu de lá.

E sempre teve recursos para comprar tudo o que desejava?
 

to é um gosto caro. O dinheiro nunca foi demais. Mas houve uma fase da minha vida em que tive um bocado de sorte e comecei a ‘soltar’ algum dinheiro. Fui para as ações e fui para o imobiliário. Nas ações ganhei muito dinheiro, mas sempre com aquele princípio: quando tiveres o dinheiro que ganhaste, o que investiste é o que trabalha, o outro pões de parte. Não punha de parte, comprava quadros. No imobiliário, no Algarve, estavam a fazer as fundações dos prédios – isto há uns 40 anos – e eu comprava aquilo quando ainda estava nos buracos. E depois ia vendendo à medida que ia subindo.

Isso deu-me, materialmente, muita vantagem, porque comprava na planta, pagava 200 contos, 300 contos para a assinatura, depois ia pagando todos os meses. A verdade é que quando chegava lá acima, ao 11.º, 12.º, 13.º andar – já tinha tudo vendido, e ficava com um para mim. E aquilo deu-me uma certa liberdade material. 

O facto de estar habituado a negociar foi-lhe útil enquanto colecionador?

Sim, fui sempre negociador. Por exemplo, quando me aparece isto [indica um quadro de Julião Sarmento]. Vim a casa dele em Cascais comprar-lhe três quadros. Já mais recentemente, ele um dia diz-me: ‘Não tens mais nada meu’. E eu: ‘Agora não, agora vou-me embora’. Tenho cinco, seis quadros, que são todos dos anos 90. Hoje não se pode comprar um quadro do Julião Sarmento, que custa uma fortuna.

Quando um quadro valoriza assim tanto não há a tentação de vender para arrecadar os ganhos?

Comigo não. Nunca vendi. Quando muito troquei. Por exemplo, com a Paula Rego, para conseguir aquele andei quinze anos. Primeiro comprei uma pequenina, depois comprei uma maior, depois apareceu esta e pensei: ‘Agora tem de ser’. Fui ao banco, o banco emprestou-me umas massas e comprei aquilo e depois fui pagando.

Foi fazendo upgrades, portanto.

Houve muitos casos como esse. Ainda o último Pomar que comprei também foi assim. Tinha uns papéis, umas coisas, e pensei: ‘Quero melhor’. Foi assim que fui fazendo a coleção. Não tenho aquilo que quero, longe disso, tenho aquilo que posso. E nunca misturei muito a parte empresarial com isto, são coisas completamente diferentes. Isto é um vício, quase como o jogador [de casino]. Houve uma dada altura em que era compulsivo. A minha mulher às vezes dizia-me: ‘Preciso de um fogão, que este está velho’. E eu comprava mais um quadro.

Às vezes é preciso pôr alguma racionalidade.

Racionalidade eu tinha. Era vício.

Luísa Soares de Oliveira [LSO]: Mas isto é um investimento.

JL: Luisinha, não é um investimento porque eu nunca vendi.

LSO: Mas sabe que tem o património.

JL: Isso sim. Mas se me perguntar ‘Quanto vale isto?’, não faço a mínima ideia. Isto do Julião, hoje, deve custar uns 50 mil…

LSO: Cinquenta?! Muito mais.

JL: Não sei. Comprei dois ao Giorgio Persano [galerista de Turim]. Passei lá e vi um quadro do Julião. Entrei e o indivíduo, que não me conhecia de lado nenhum, disse-me: ‘Isto é de um português. Faço-te barato. Vendo-te por X’. E eu: ‘Isso é caro’. ‘Caro?! Em Portugal vende-se por cinco vezes mais’. ‘Para mim é caro. Dou Y’. ‘Está bem, leva, tira-me isso daqui’.

Comprei três ao Persano. Um deles tinha quatro metros, era tão grande que não me cabia em casa. Cheguei a Lisboa e disse a uma amiga galerista: ‘Tenho aqui um quadro do Julião que é muita grande’. E lá lhe expliquei como era. ‘Dou-te X por ele’. Pagou-me esse valor e eu fiquei com os outros dois de borla. Tenho muitas histórias deste género.

Houve alguma altura em que o vício que referiu começasse a interferir-lhe com a sua vida ou com as finanças de casa?

Nunca interferiu. O que interferiu é que cheguei a dada altura e tinha quinhentas coisas destas em casa… E pensei que ou parava ou tinha de fazer qualquer coisa. Entretanto o presidente da Câmara lá da terra, o dr. Castro Almeida, falou-me, queria fazer um centro de arte e precisava de ter uma coleção como base.

Depois, o presidente da Câmara de Águeda, Gil Nadais, que era meu amigo, disse: ‘Zé Lima, sei que tens uma coleção de arte, podias pôr isso aqui, que nós fazíamos um centro baseado nisso’. Iam buscar dinheiro à Europa. Como sou de Águeda, disse: ‘Porreiro’. Depois a família intercedeu. A minha mulher e os meus filhos, que são de S. João da Madeira, disseram: ‘Pai desculpa mas isto tem de ficar aqui em S. João da Madeira’.

Um bocado contra a minha vontade, a verdade é que foram para lá. Fizeram um centro, isto foi entregue à Câmara, fiz um protocolo e está lá até hoje. Se tomei uma boa atitude ou não, ainda hoje não sei. Queria que isto fosse pelo menos muito conhecido ali na zona, S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis, Ovar, porque não há nada a nível da arte contemporânea, e que fosse mais publicitado. Ainda não consegui isso.

Mas eu tenho visto divulgação das exposições…

Sabe, nós, colecionadores, somos um bocado exigentes. Se calhar demais. Mas o facto é que toda a gente me diz: ‘A tua coleção é extraordinária, a tua coleção é muito boa’. E eu respondo que isto não é conhecido nem em S. João da Madeira. Faço uma exposição, a inauguração é muito bonita, estão lá 30 pessoas, sempre as mesmas, o presidente discursa, a diretora discursa, eu digo umas coisas, depois aquilo…

Morre ali?

Fica parado. Reconheço que efetivamente aquilo está perdido ali. Ou melhor, está adormecido, está esquecido. Só que não tenho força para fazer aquilo que quero.

Que era o quê?

Pôr aquilo a andar, a mexer, protocolos com universidades, com Serralves, etc. Mas as câmaras são organizações pesadas, muito burocráticas. Demoram três meses a fazer aquilo que nós empresários fazemos em três minutos. A gente tem de pensar nas coisas e decidir. Eles não, é um ‘nim’…

Nem sequer tenho um inventário disto feito pelo centro de arte, o que é lamentável. Acho que tenho aqui algumas coisas valiosas – valiosas no aspeto da arte, não no aspeto material. E ainda não consegui naquele raio de dez, 15 quilómetros de onde a coleção está, que as pessoas se interessassem por isto. Não sei se o defeito é meu, se é da coleção, acho que não, nem é meu, nem é da coleção. Gostam muito de fazer os discursozinhos da ordem na inauguração, mas a partir daí o trabalho de sapa não é feito.

Mas então dizia-me que houve um momento em que já não tinha paredes em casa para tanta pintura…

[com ironia] Estava a ver que a minha mulher se divorciava… Havia pinturas nos corredores, já nem se podia passar. Mas depois comprei um apartamento bastante grande só para meter isto.

Ao início falei de um preconceito meu, de os empresários não ligarem a estas coisas. Talvez também seja um cliché, mas como é que o mundo dos artistas, dos curadores, que têm um discurso mais intelectual, casa com a sua postura mais terra-a-terra?

Continuo a dizer que a arte contemporânea, que é aquela a que estou ligado, é muito elitista. A maneira como falam é para a barriga deles. Uma vez houve uma exposição numa galeria, e um curador de quem até sou amigo escreveu o texto.

E eu olhei para aquilo e digo-lhe: ‘Desculpe, mas não consigo perceber aquilo que escreveu. Você está a escrever para a malta que vem cá ou está a escrever para os seus colegas?’. O que alguns curadores escrevem é tão intrincado que só eles é que percebem… quando percebem. Isto devia ser ensinado nas escolas primárias, nas escolas secundárias, as pessoas deviam ser puxadas quase pelo braço. Um dia destes peguei numas fotografias e fui a uma escola. Estava lá a diretora e umas professoras.

‘Tenho uma coleção ali em baixo, a um quilómetro daqui. Vocês passam lá de vez em quando, podem ver a exposição’. ‘Centro de Arte Oliva? Não sei onde é’. Está a um quilómetro! Uma professora que não sabe que existe ali uma coleção e um centro de arte contemporânea?! ‘Eu sei que a senhora todos os anos vai para Serralves, o autocarro desce por esta estradinha e vai ter lá abaixo ao Oliva. Está lá um bocado e depois segue para Serralves’. Insisti com ela, disse-lhe que arranjava um indivíduo para lhe fazer uma visita. E então ela diz-me assim: ‘Sabe? É que nós temos um programa tão apertado que não podemos perder duas horas a ver uma exposição’. ‘Perder’ duas horas!

Olhei para ela e disse: ‘Pois não, se calhar não pode perder duas horas para ver uma exposição. Peço desculpa’. Não consegui dar outra resposta. Uma professora de artes visuais que me diz ‘não posso perder duas horas’. Isto é uma coisa que sistematicamente me sucede. 

Estas pinturas que temos aqui à nossa volta não são propriamente fáceis, das mais acessíveis. O que têm elas que o atrai?

Acho que ninguém pode explicar um quadro. Ou se gosta, ou a gente tem alguma sensação, olha para aquilo e fica um bocado abismado, atónito, parvo. Tenho quadros que encosto à parede e fico ali… não é ser giro ou bonitinho. Eu digo: ‘Há qualquer coisa aqui no meio disto’.

A coisa que mais detesto é ver um indivíduo que esteja a fazer uma visita guiada a explicar um quadro. Os quadros não são explicados. A gente olha para eles e ou gosta ou não gosta. Ou sente alguma coisa ou não sente. E acho que isso é um problema de educação. O trabalho de sapa não é feito. Por ninguém. As coleções particulares são muito particulares – os indivíduos são muito ciosos daquilo, não põem as peças cá fora. Conheço muitos colecionadores mas a verdade é que não sei qual é a coleção que eles têm.

LSO: Tem a Coleção Berardo…

JL: O Berardo é diferente. Passar os cheques e ter alguém para fazer a coleção, isso é fácil. Mas vou contar um pequeno episódio que se passou comigo. Aqui há tempos chamaram-me para participar numa conferência. Estavam três colecionadores, a moderadora e um programador cultural. Um deles diz assim: ‘A minha coleção não é para se mostrar.

Eu gosto muito é quando cá vêm os grandes colecionadores internacionais, de os levar a minha casa’. Ouvi e não disse nada. Outro diz: ‘O meu gosto é que a minha coleção vá para Espanha e seja vista pelos espanhóis’. E depois a moderadora perguntou-me: ‘O que é que o senhor pensa?’. ‘O que eu quero é que a minha coleção seja bem trabalhada em S. João da Madeira e S. João da Madeira conheça aquilo. Desde os miúdos da escola primária aos seniores’. Quando conseguir isso tenho o meu trabalho feito, estou satisfeito. O resto virá por acréscimo, mas primeiro é preparar os indivíduos que andam nas escolas para começar a gostar disto. Isto devia ser como ensinar a tabuada. Devia ser uma disciplina como outra qualquer.

Falou-se no nome de Berardo. No seu caso é sempre o senhor que escolhe. Não tem quem o aconselhe?

Inicialmente foi assim. Não havia ninguém. Aliás, quando havia alguém a tentar aconselhar-me eu fugia.

Aconselhar ou impingir, se calhar…

Pois, mas eu já tinha um bocado de experiência disso, por causa do negócio. Quando vejo as pessoas a insistirem, fujo e vou para outro lado. Nesse aspeto faço aquilo que quero. Agora, falo com os curadores todos, com os galeristas todos. E quando são amigos e me dão uma dica, eu procuro lá ir, especialmente nos novos artistas, porque não os posso seguir. Não sou um expert. Mas as sensações que tenho são minhas. E quando esta gente [curadores] começa a falar eu calo-me.

Falemos por exemplo deste quadro aqui cinzento. O que viu nele?

Fui lá ao Calhau antes de ele morrer. Estava a fazer uns papéis, já não fazia pintura. Estive a olhar uns minutos para ele a trabalhar. ‘Você é um mestre’. 

LSO: O quadro parece preto mas não é. São camadas e camadas e de cor. Deve ter verde por baixo. É uma citação do Romantismo. Há o conceito de sublime, que é um misto de terror e de reconhecimento do sentimento da natureza. O Fernando Calhau citava o Romantismo, e estes quadros negros dele andam por aí…

Para o senhor, o facto de o pintor citar o Romantismo é importante? Acrescenta?

Isso é a posteriori. Depois é que eu vejo…

LSO: A ideia aqui era criar conversas, entre o Vasarely [que simula uma espécie de vertigem], deste lado, e o vazio do Calhau.

JL: Isto que está a dizer a professora já eu tenho de aprender. Agora estou a entender. Eu gosto de ver, mas não conseguia discernir isto. Porque de facto não sou expert. Mas gosto muito disto, é a minha paixão. E quando tratam mal isto, tratam-me mal a mim.

No seu contacto não lidou com artistas difíceis, elitistas, altivos?

Encontra-se de tudo. Há aquele indivíduo que só quer uma tela à frente para pintar, anda com uma camisa toda rota, tudo sujo, cheira a tinta, mete lá o nariz. Outros são…

Distantes?

São todos importantes. Cada um tem a sua personalidade. A única coisa que eu tenho é de observar, pensar, não comentar, e aceito só aquilo que quero. Há todo o tipo de personalidades entre os artistas. Mas diria que 75 ou 80 % deles têm um amor a isto que não acaba, não precisam de comer, comem de três em três dias.

Passam fome para poderem pintar?

Não diria que passam fome. Não lhes apetece comer [risos].

Aprende-se muito a ver os artistas a trabalhar e a falar com eles?

Sempre. Mas lá está, cada um tem a sua personalidade e cada um tem a sua mania.

No bom ou no mau sentido?

Mania. Não sei se é bom se é mau. Há algumas coisas que já posso criticar. Há trabalhos que já estou farto de ver. 

Há artistas que se repetem muito.

Ainda agora fui ver uma exposição. Eram mais de cem papéis tudo parecido, tudo do mesmo tamanho, as mesmas cores. Noutra grande exposição também achei isso, e até perguntei ao artista se aquilo era o lixo que lá tinha no ateliê. ‘Mas porquê? Não gostaste?’ ‘Gostei. Mas 10% chegava’. Depois é o problema do dinheiro. Um borrão qualquer vale uma fortuna desde que tenha lá o nome deles. Mas isso não é só aqui.

A gente vê os grandes artistas internacionais, o Jeff Koons, o Damien Hirst, são os assistentes que fazem aquilo e eles nem veem. Já nem assinam. O Jeff Koons fez três mil daqueles bonequinhos, vende cada um a cinco mil euros. Aquilo é uma máquina infernal de fazer peças.

Há algum desses artistas muito conhecidos de quem gostasse mesmo de ter uma obra?

Há muitos. Gostava muito de ter um [Roy] Lichtenstein, um [Anselm] Kiefer… E de alguns deles gostava de ter outras peças. Mas agora só compro novos, rapaziada.

Porque quer ajudar?

Não, não é essa questão. O interesse é meu. Está ali um Sérgio Fernandes – na altura comprei dois muito baratos. E, se ele for por aí fora, é bom para mim e bom para ele. Mas a verdade é que quem comprou fui eu, e muito barato. Se custasse dez mil euros eu não comprava, mas custava 1500 e comprei. E quem diz esse diz outros.

Ainda não me falou sobre a origem da coleção. Qual foi a primeira obra que adquiriu?

Foi um [Álvaro] Lapa. Foi num leilão, nos anos 80. Olhei para aquilo, não percebia muito bem o que é que o Lapa queria – o Lapa era um indivíduo muito complexo –, depois li umas coisas dele e a dada altura comprei uma quantidade de peças. Seis ou sete. Olhamos para aquilo e vimos… Ou melhor, eu olho e vejo qualquer coisa. Tem de me dizer alguma coisa. Agora, se é bonito, se é feio…

É o mistério que o atrai?

Absoluto. Diria que é o mistério, porque também não sei explicar. Vejo daqui aquele [Joaquim] Rodrigo, aquele amarelo que está acolá. Parecem uns desenhos de criança. Não me digam que é bem pintado ou mal pintado. Aquilo é um quadro, tem peso, tem conteúdo.

Então começou com o Lapa.

E depois cheguei a uma altura em que já tinha para aí sessenta, já estavam as paredes todas cheias.

E já tinha uma coleção.

E aí comecei a comprar demais. Chegou uma altura em que disse: ‘Isto já não é para mim, deixa abrir’. 

E a sua mulher?

A minha mulher sempre a chatear.

LSO: A coleção também tem o nome dela.

Isso foi um golpe de mestre.

Foi para a envolver?

Na inauguração da primeira exposição, quando o presidente da câmara diz ‘Coleção Norlinda e José Lima’ a minha mulher estava ao meu lado: ‘Então é a coleção Nor…’. ‘É, pois. Então não és minha mulher? Fica chique’ [risos] 

E depois, a coleção continuou sempre a aumentar?

Depois há uma dada altura em que a gente tem de andar atrás de nomes. Por exemplo: nos anos 60-70 portugueses, o Pomar, o Resende, o Lapa, temos de ter uma ou duas pecinhas de cada um porque se não, não é uma coleção.

Mas isso já é quase andar à procura dos cromos que faltam na caderneta…

E não podemos ter os melhores. O grupo KWY [coletivo artístico em que pontificavam Lourdes Castro, René Bertholo e Costa Pinheiro, entre outros artistas nacionais e estrangeiros], andei atrás da Lourdes e do Escada. Andei mesmo atrás deles. Já não tinham as melhores peças, mas tenho-os todos. Do grupo El Paso, espanhol, também andei atrás deles todos. Isso já vem daquilo que se lê. De facto a minha instrução foi a leitura. E depois a conversa. Com curadores, com artistas – especialmente com curadores.

Olhando para a sua coleção, vê-a como um luxo, como uma excentricidade?

Nem uma coisa nem outra. Direi que depois somos empurrados para uma elevação social que não tem para mim interesse nenhum.

A tal história das inaugurações e vernissages?

Há assim umas pessoas que me cumprimentam só porque tenho uma coleção, mas isso para mim não é muito importante. Importante para mim era as pessoas que não sabem nada disto serem chamadas. É aquilo que ainda não consegui fazer.

No fundo como o seu caso: também não estudou e no entanto foi ‘puxado’ para aqui.

Não sei se fui puxado. Os amigos foram muito importantes. Eu vivia numa terra, Águeda, desde pequenito, em que não havia castas. As pessoas eram todas iguais. Os pais de alguns tinham mais posses e eles iam para os liceus e as universidades. Os que não tinham iam para as fábricas, ou para isto ou aquilo, mas depois juntávamo-nos todos e conversávamos. Infelizmente fui para uma terra, S. João da Madeira, onde há umas famílias que formam umas cliques especiais e nunca me dei muito bem com aquilo. Lá sou um bocado imigrante.

Quantas pessoas trabalham na sua fábrica?

Cerca de 60.

E já lhes mostrou a coleção?

Claro. E um dia destes vou levá-los outra vez. É evidente que a coleção precisava que estivesse lá uma pessoa sistematicamente para acompanhar. Infelizmente não temos, são pessoas que estão no desemprego, a câmara paga-lhes o almoço e eles andam ali só para não deixar tocar nos quadros. Isso é uma pena.

E há algumas obras que continua a ter em sua casa porque gosta de as ver?

Por exemplo, esta Paula Rego normalmente está em minha casa. Mas quando tenho uma exposição, ela sai. As paredes estão mais ou menos todas tapadas. [risos] Posso não ter mais nada, às vezes o sofá está um bocado roto, mas pintura não falta.

Só tenho uma última pergunta, mas não tem nada a ver com arte nem com a coleção.

Diga.

Os sapatos que está a usar são da sua fábrica?

São.

Só usa sapatos feitos lá?

Todos. Não produzimos muito, fazemos cerca de 400, 500 pares/ dia, faturação de cinco milhões de euros, mais ou menos, mas é um produto hoje muito difícil de vender porque é muito pouco competitivo. Os chineses, o Sri Lanka, o Paquistão produzem melhor e muito mais barato. Isto no Sri Lanka custa 7, oito euros. Eu não posso vender por menos de 30.