‘Seres Vulneráveis’ no MAAT: “A covid-19 não foi um acontecimento isolado”

Andrea Bagnato e Ivan L. Munuera querem alargar o debate sobre epidemias, arquitetura, ecologia, história e formas de coexistência no espaço da cidade, num projeto que começou a ser pensado antes da covid-19 e ganha palco no MAAT, em Lisboa. A primeira assembleia pública aconteceu no último fim de semana, a segunda será no fim…

O que vos juntou em torno deste tópico?

Andrea Bagnato: Em 2013 comecei a fazer investigação sobre epidemias, paisagem e ecologia, vindo da arquitetura. Comecei a pensar enquanto arquiteto o que é que as doenças significavam no espaço. Os livros de História falam de grandes epidemias nas cidades, de cólera por exemplo, mas não de como as cidades se definiram em função disso. Sendo italiano, apercebi-me de que havia por exemplo um passado de malária. A malária não estava nas cidades, estava no campo, e tentei perceber como é que o país se tinha transformado.

Que transformações trouxe para as cidades?

A.B.: Neste caso da malária, em Itália e imagino que em Portugal tenha acontecido o mesmo, havia zonas húmidas, pântanos perto de rios por exemplo e a água teve de ser drenada para evitar a proliferação de mosquitos. Foram transformados em zonas agrícolas. E isso trouxe uma grande mudanças nas cidades, novos espaço de cultivo.

Ivan L. Munuera: O que tentamos pensar nesta reflexão é que a covid-19 não foi a única epidemia e não é algo sem precedentes. No meu caso, comecei por estudar o VIH e como a doença redefiniu a função de espaços da cidade.
Centrando-se na epidemia de sida nos anos 80 em Nova Iorque.

I.M.: Sim, com aspetos comuns em muitas outras cidades. Uma das conclusões foi perceber por exemplo a importância dos clubes noturnos e discotecas. Tendemos a pensar que são espaços de diversão, mas no pico da crise de VIH, quando não havia informação e os media estavam absolutamente confusos sobre o que se estava a passar, foram locais de partilha de informação, era onde as pessoas cuidavam umas outras. E de repente foi nestes espaços, que sempre foram algo marginal, que as pessoas encontraram apoio.

E muitas vezes associados a própria transmissão da doença e não tanto à forma como se construiu resiliência perante ela.

I.M.: Precisamente. Eram locais ‘seguros’. Mas indo mais atrás, sempre houve uma grande centralidade da epidemiologia na arquitetura. Em Lisboa, por exemplo, o Instituto de Medicina Tropical teve a sua primeira localização na Cordoaria Nacional onde hoje se fazem exposições, era ali que se fazia toda a investigação.

A.B.: Era um local importante na cidade mas repare-se que era numa altura em que a investigação era feita de uma maneira colonial, que é um dos temas que vamos explorar. O objetivo era proteger os brancos que iam para zonas afetadas por estas doenças, não os nativos.

Essa acaba por ser uma realidade que as vacinas da covid-19 mostraram que se mantém: a investigação tende a andar mais depressa quando o mundo ocidental é afetado.

I.M.: A medicina continua a viajar com bandeira, ou com uma ideologia. Vimos como certos países não conseguiram sequer comprar vacinas de covid-19 porque as democracias mais fortes compararam enormes quantidades por antecipação. O que pretendemos explorar no fundo é a ligação entre doenças infecciosas e a forma como são abordadas em diferentes momentos da história e em diferentes geografias.

E, no caso das cidades, sublinhar o papel de espaços que não são apenas hospitais e laboratórios e também afetam o curso da doença. E como testemunhámos, é preciso incluir aqui o espaço doméstico, além de todos os espaços públicos em que nos movemos.

Dão a estas assembleias o mote de Seres Vulneráveis, porque as epidemias foram também momentos de opressão e segregação, de algum estigma. Terá sido menor com a covid-19, mas também existiu.

A.B.: Desde o início a ideia era criar um espaço onde diferentes áreas se pudessem juntar: artistas, antropólogos, historiadores, arquitetos, profissionais de saúde. Depois veio a covid-19. Surpreendentemente os nossos planos mudaram muito pouco: com a covid-19 vimos coisas que já tinham acontecido noutras epidemias.

I.M.: No caso do estigma, no VIH, a resposta dos artistas foi essencial para se perceber o que estava a passar e para combater o estigma, por exemplo no projeto Silence=Death Project, criado como grupo de apoio e que se tornou uma imagem icónica.

Foram artistas que se juntaram para dizer que não se podia silenciar o que se estava a passar. Mas noutra esfera, para mostrar como as epidemias estão ligadas, por exemplo a doença de Lyme é também fruto de um problema de arquitetura de certa maneira: decorreu da desflorestação, urbanização e de certas espécies perderem o seu habitat natural, o que favoreceu um salto entre espécies.

Que é o que se pensa que poderá também ter acontecido com a covid-19, com maior proximidade entre homens e animais selvagens. Sentiram que houve falta de discussão e participação das diferentes disciplinas no debate público sobre a pandemia? Mesmo da comunidade artística, falou-se da crise do setor, houve espetáculos virtuais mas não propriamente uma reflexão ou ativismo.

A.B.: Houve uma grande falta de reflexão e vozes diferentes a pensar na experiência da epidemia. Penso que um dos exemplos mais fortes aconteceu logo no início com a falta de discussão sobre o significado da palavra casa. Estava em Itália, que foi o primeiro país europeu a avançar para um confinamento na região de Lombardia. A hashtag oficial era #euficoemcasa. E o meu primeiro pensamento foi casa pode ter tantos significados…

De repente temos o Governo a dar por garantido que toda a gente tem uma casa boa, que toda a gente pode ficar em casa. E para quem conhece a história das epidemias, ou mesmo para quem não conheça, percebe-se que é problemático pensar em casa só nestes termos, que é preciso ir mais longe. Durante a epidemia de VIH em São Francisco, as pessoas eram despejadas quando estavam a morrer. A casa não era segura. Nos dias de hoje temos questões como a violência doméstica.

I.M.: E há bocado quando falava de espaço físico e mental, isso é um aspeto importante. O que está em causa numa epidemia não é só a nossa doença física ou mental, mas o nosso estado coletivo. Se há algo que todos partilhámos e que se tornou desafiante foi como nos relacionarmos uns com os outros numa pandemia. E isto vai além de usarmos máscaras, termos as vacinas, mas como construir ambientes seguros.

E se é preciso ficar em casa, como garantir que as vitimas de violência doméstica podem estar seguras e que alguém que não tenha condições em casa pode estar seguro, alguém que tem um apartamento muito pequeno.

Durante um dos momentos críticos da pandemia, estive numa casa muito pequena onde havia uma família de sete pessoas em isolamento. ‘Cumprir’ foi uma experiência dramática para muitas pessoas.

I.M: Como comunicar essas experiências? Como encontrar uma linguagem que nos permita partilhar o que vivemos e com lidamos com isso. É um bocado isso que tentamos fazer, juntando pessoas de diferentes geografias, de diferentes linguagens.

Para levar as pessoas a pensar sobre o que aconteceu e o que pode ser diferente?

A.B: Sim, de uma maneira muito simples, gostaríamos dar às pessoas um bocado de contexto para que se perceba que a covid-19 não foi um acontecimento isolado, mas que há uma longa história de epidemias similares com pontos em comum. E que as epidemias noutras parte do mundo são muito diferentes e que continuam a existir. E que algumas pessoas são mais afetadas. Uma das apresentações é sobre a malária na Grécia, como regressou no período da crise financeira e afetou sobretudo famílias de trabalhadores migrantes e que é um dos resultados esquecidos dessa crise, de que se pouco se fala.

I.M: O objetivo final, digamos assim, é olhar para as nossas vulnerabilidades. Vimos com a covid-19 que somos todos muito vulneráveis. Este estado de vulnerabilidade pode ser uma oportunidade para discutir como nos relacionamos uns com os outros e com o ambiente e como podemos encontrar novas formas de coexistência uns com os outros e com o ambiente. 

A segunda assembleia pública vai ser no último fim de semana de novembro. Têm ideias à partida de como devem ser as cidades do futuro?

A.B.: Temos uma ideia do que não devem ser. Penso que a questão não passa tanto por alterar design ou alguns elementos para garantir que conseguimos manter a distância física mas como podemos estar mais abertos a diferentes maneiras de viver e diferentes formas de organização.

Estamos muito longe dos tempos em que a comunidade gay era perseguida por se reunir em clubes mas a forma como aceitamos e compreendemos diferentes realidades pode aumentar a nossa capacidade de enfrentar a doença. Se alguém vive sozinho num estúdio, vai sentir muito mais o isolamento. Podemos pensar em formas mais coletivas de nos organizarmos.

I.M.: E pensar que a arquitetura não se resume a edifícios ou planeamento urbano, é sobre regulação, legislação, a maneira como as decisões são tomadas para tornar uma cidade mais acessível para todos ou não. E pensar cada vez mais que cidades não são entidades isoladas em que as decisões podem ser tomadas pelo Governo ali sem terem mais impactos, porque a certa altura têm de vir máscaras e luvas de látex do outro lado do mundo e as pessoas têm de estar com os seus familiares.

Assembleias públicas são, nesse sentido, um exemplo do que pode ser essa cultura de participação?

Sim, e vamos ter pessoas a vir de diferentes geografias e instituições e de campos de saber para podermos ouvir diferentes linguagens a falar de epidemias e não apenas a epidemiologia.

Houve uma grande polarização no debate. Tiveram algum cuidado para não serem considerados negacionistas?

A.B: Não creio que isso nos tenha preocupado. É verdade que houve uma grande polarização, mas temos uma visão articulada e desde logo esta não é uma conversa apenas sobre a covid-19. 

I.M: E não somos negacionistas, não estamos a dizer que não acreditamos na pandemia, nem vacinas, nem nada disso. O que estamos é a tentar perceber porque é que às vezes a posição perante a ciência moderna pode ter manifestações diferentes. E para isso é preciso perceber a história, nem que seja para o mudar. Os nativos americanos durante muito tempo tiveram receios sobre a medicina e a ciência moderna porque foram cobaias.

O mesmo com a comunidade afro-americana. E isto não foi há 200 anos, estamos a falar de coisas como o estudo Tuskegee há uma geração em que os afro-americanos foram cobaias de uma experiência sobre a sífilis que se prolonga até aos 70. Não queremos destapar nenhuma conspiração, mas perceber que reações por exemplo à medicina moderna podem vir de determinados lugares que temos de conseguir ver. Para nós o importante foi dar voz a pessoas que muitas vezes não estão à mesa na discussão. E mesmo no campo da arquitetura, falar da necessidade de passarmos da discussão sobre como se desenha uma casa para o que significa uma casa.

Em futuras pandemias, isso levaria a políticas mais inclusivas?

I.M: Continuamos a viver diferentes pandemias. Não nos podemos esquecer que a covid-19 é apenas uma entre muitas outras. A principal causa de morte na África subsaariana são doenças infecciosas

A.B.: Sim, não precisamos de uma nova. O que esperamos que mude é que haja um pensamento mais coletivo e a ideia de que ganhamos se juntarmos forças.