Santa Maria. Chefes de urgência cirúrgica ameaçam demitir-se

Médicos dizem que escala da urgência de Cirurgia Geral não é exequível e invocam novo regulamento da Ordem, ainda em consulta pública.

A dificuldade em assegurar escalas com médicos a recusar fazer, com as atuais condições de trabalho, mais horas extra do que aquelas a que estão obrigados e os rácios mínimos de equipas nas urgências apresentados pela Ordem dos Médicos – na reta final de consulta pública – levaram esta quarta-feira os chefes de equipa de urgência cirúrgica do Hospital Santa Maria, em Lisboa, a ameaçarem demitir-se a partir de 22 de novembro. Numa carta endereçada ao diretor clínico do Centro Hospitalar e Universitário Lisboa Norte, a que o i teve acesso, os dez chefes de equipa da urgência cirúrgica dizem que a situação se vem degradando nos últimos anos, agravada pela posição recente dos médicos do departamento que recusam ultrapassar, com as atuais condições de trabalho, o limite de horas extraordinárias considerado na lei – 150 horas por ano – um protesto a que os chefes de equipa se solidarizam. “Posto isto, a escala de urgência de Cirurgia Geral não é exequível”, alegam, invocando também o regulamento de constituição das equipas de urgência publicado em Diário da República a 15 de outubro, em que a Ordem define pela primeira vez os médicos necessários de cada especialidade nos serviços de urgência. O documento não está no entanto ainda em vigor: o prazo de consulta termina no próximo dia 15 de novembro, seguindo-se a aprovação do documento final.

Num comunicado enviado às redações, o Centro Hospitalar confirmou a receção da carta, documento que considera apontar questões de organização interna e distribuição de serviço “a serem resolvidas até 22 de novembro.” Nessa expectativa, o hospital adianta que foram marcadas reuniões para a próxima semana com os respetivos serviços, dizendo ter “total abertura e empenho na melhoria das questões identificadas”. 

Alguns temas, nomeadamente a melhoria de remuneração de horas extra na urgência, estavam no entanto previstas no Orçamento do Estado para 2022, chumbado – e os hospitais não têm autonomia para fazer diferente, nomeadamente no que toca à equiparação do pagamento das horas extra da casa às dos médicos tarefeiros, que tem vindo a ser reclamada pelas associações médicas. Já os moldes do aumento do pagamento das horas extra que estava previsto no OE2022, apenas a partir da 250ª hora anual, foi considerado indigno pelos sindicatos, por perpetuarem o recurso a trabalho suplementar para garantir o funcionamento das urgências. Por outro lado, o Governo colocou em discussão pública o novo estatuto do SNS, que prevê também um regime excecional de trabalho suplementar, mas a previsão da tutela era a entrada em vigor com o OE 2022.

Quanto ao regulamento de equipas médicas nos serviços de urgência, para já em consulta pública, não é a primeira vez que, com os atuais recursos, é considerado impraticável mas é a primeiro aviso de demissão em bloco a invocá-lo. O documento define os médicos de cada especialidade exigidos nas urgências e por exemplo que podem ser escalados internos a partir do último ano de formação mas só se houver um médico especialista da mesma especialidade pelo menos de prevenção. Regras que, defende a Ordem dos Médicos no diploma, são uma “referência ética e deontológica para todos os médicos, e uma garantia de qualidade e segurança para os doentes e para a comunidade em geral”.

Há quem conteste no entanto que a melhoria da situação das urgências do SNS, a viver de novo uma afluência ao nível pré-pandemia e com tempos de espera que têm ultrapassado o definido na triagem de Manchester, passe por aqui. Em entrevista ao i, Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do Hospital de São João, considerou que o documento é uma “soma aritmética, não articulada, das visões individuais dos colégios das várias especialidades e não responde a uma visão reformista da estruturação da rede de urgência e dos serviços de urgência em si mesmo”, defendendo medidas como a limitação do acesso às urgências por doentes não urgentes, que sobrecarregam os serviços. Para o médico, o regulamento “em muitos aspetos é impraticável por exigir recursos que são inverosímeis”, prevendo que a ser aprovado nos termos propostos implicaria “uma provável entrada em incumprimento de virtualmente todos os serviços de urgência”, afirmou.

A ameaça de demissão no Santa Maria, mantendo-se por agora os médicos em funções, segue-se a pedidos de demissão dos diretores da urgência no Hospital de Braga e de 87 diretores e chefes de equipa do Hospital de Setúbal.