A Afrodite e o sapateiro

O nome de Apeles poderá ser hoje pouco familiar mesmo às pessoas bem informadas. Mas é ele o protagonista de uma história que todos conhecem.

E mbora o seu nome esteja hoje praticamente esquecido, Apeles foi o mais famoso pintor da Grécia Antiga. Dele não nos chegou qualquer obra (haveria uma no palácio dos césares, em Roma, que ardeu num incêndio), apenas descrições das suas proezas. Dizia-se que tinha pintado um retrato tão realista de Alexandre o Grande segurando um relâmpago que os dedos pareciam ter relevo e o raio emanar luz própria.

Apeles foi o primeiro pintor a usar verniz para fixar e dar brilho às suas pinturas e mesmo aqueles que nunca ouviram o seu nome conhecem certamente uma história de que foi protagonista.

Tinha o hábito de expor os seus trabalhos em frente à sua oficina e de se esconder para ouvir os comentários feitos pelos transeuntes. Um dia, ouviu um sapateiro tecer alguns reparos à forma como uma sandália estava pintada. Dando-lhe razão, o pintor corrigiu o problema e no dia seguinte voltou a colocar a pintura em exposição. Por coincidência, o sapateiro passou por ali novamente. Quando este começou a criticar o desenho da perna da figura representada, Apeles saltou do seu esconderijo: ‘Não vá o sapateiro além da sandália!’. Numa versão mais popular, há quem diga: ‘Não vá o sapateiro além da chinela’.

No livro The Heritage of Apelles (A Herança de Apeles), o grande historiador da arte Ernst Gombrich (1909-2011) investiga até que ponto as referências literárias a Apeles e às suas obras podem ter influenciado o curso da pintura nos séculos posteriores. E discorre acerca dos artifícios que o famoso pintor usava para obter efeitos que deixavam os seus contemporâneos de boca aberta.

Tenho perfeita noção de que a representação da luz e dos brilhos, e de como diferentes superfícies refletem a luz de diferentes maneiras, pode parecer uma questão demasiado técnica ou até esotérica. Mas é decisiva para o grau de fidelidade ao real de uma pintura.

Numa passagem do seu livro, Gombrich fala das «evocações mágicas de cada substância e superfície» – a refulgência das joias, o toque da lã, a dureza do mármore… – «obtidas através da misteriosa e miraculosa técnica de Jan Van Eyck», o mestre dos mestres da pintura flamenga do século XV. E continua: «Em certo sentido é justo dizer que tudo foi feito com espelhos, pois Jan Van Eyck está supremamente consciente do facto de que cada brilho é feito de uma imagem invertida».

Todos já vimos aquelas pinturas em que uma pincelada de tinta branca, às vezes apenas um minúsculo ponto, imita um reflexo numa armadura ou ilumina o olhar de um retrato. Segundo Gombrich, Apeles, no século IV a.C. já tinha descoberto esse truque para abrilhantar as suas criações. Havia uma Afrodite sua, em particular, que se erguia das águas e torcia os cabelos encharcados para os secar. «É difícil imaginar», avança Gombrich, «como poderia isto ter sido pintado sem o recurso ao splendor, ou pontos de luz cintilantes nas gotas de água que caíam».

Jan Van Eyck foi mais longe, ao perceber que cada um desses pontos de luz corresponde, na realidade, a uma imagenzinha invertida do ambiente circundante. Embora a descoberta tenha cerca de seiscentos anos, só ao ler o livro de Gombrich me dei conta disso. É caso para dizer, sem exagero, que a grande pintura é mais do que um passatempo: ela pode literalmente ensinar-nos a ver o mundo.