Dr. Fu Manchu, o famoso bigode que nunca existiu

Nascido da imaginação de Arthur Henry Ward, escrito com o pseudónimo de Sax Rohmer, o homem que encarnava o Perigo Amarelo nunca foi descrito pelo seu autor como usando o tal ornamento piloso. Mas assim ficou para sempre, também como uma personificação de racismo contra o Oriente.

Sax Rohmer, que por acaso se chamava Arthur Henry Ward e tinha Sarsfield como alcunha, foi um daqueles novelistas prolíficos, que escrevia como respirava, mas que não teve a sorte de o sol da literatura ter incidido os seus raios mais quentes sobre ele. E, por isso, continua na sombra.

Nascido em Birmingham, em 15 de Fevereiro de 1883, filho de gente trabalhadora vinda da religiosa Irlanda, como lhe chamava Cesário Verde, trabalhou ao serviço de vários patrões, fazendo daquele tipo de tarefas que só são disputadas pelos que conhecem a fome, antes de declarar a independência, encher as veias de sangue revolucionário e os tinteiros de tinta, e sentar-se a uma secretária pronto a escrever e ganhar dinheiro com isso. Tentou a poesia ao mesmo tempo que escrevia letras para canções.

Davam bem mais lucro as segundas do que a primeira, como está bem de ver. Eram versos maliciosos utilizados em musicais que lhe traziam pão para a mesa. Mas ele queria entrar no universo dos novelistas. Sentiu que precisava de não confundir funções. E inventou o pseudónimo de Sax Rohmer que, convenhamos, não é particularmente feliz para quem quer ser falado por toda a gente, das esquinas aos pubs.

Fascinado pela Hermetic Order of the Golden Dawn, uma sociedade secreta dedicada ao ocultismo, à metafísica e aos fenómenos paranormais, com fortes ligações à maçonaria por via dos seus fundadores, William Robert Woodman, William Wynn Westcott e Samuel Liddell Mathers, Sax rapidamente se tornou um estudante aplicado de tudo o que o fascinava nos confins da natureza humana.

Por isso, foi sem surpresa que a sua primeira novela a ser publicada, em 1903, levasse um nome abracadabrante The Mysterious Mummy [A Múmia Misteriosa]. Estava nas suas sete quintas, ele que tinha uma admiração profunda por outros autores muito coniventes com chamados do além: Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle.

Em 1911, já depois de ter casado com Rose Elizabeth Knox, figura com pouca importância para a nossa história e para a sua vida para lá de Arthur, continuava a sobreviver aflitivamente às custas do que os produtores de music hall lhe ofereciam, aqui e ali. Ansiava urgentemente ser alguém e de tirar proveito disso. Foi aí que um clic ligou a lâmpada que estava apagada dentro da sua cabeça e se fez luz sobre uma razoável quantidade de Libras Esterlinas.

Tudo por causa de um livro chamado The Mystery of Dr. Fu Manchu, inicialmente editado em folhetins que foram sendo espalhados entre Outubro de 1912 e Agosto de 1913. Os leitores ficaram de tal forma amarrados à trama e ao exotismo da personagem que faziam fila de forma a não perderem nenhum dos novos fascículos.Rohmer empinou a peitaça. Mas nem por isso era reconhecido nas ruas.

Um homem misterioso

Por argúcia do autor ou por simples questão de sorte, os primeiros folhetins em que surgia o Dr. Fu Manchu caíram sobre um movimento gradual de emigrantes chineses, tanto para o Reino Unido como para os Estados Unidos. Ou seja, os chineses estavam na moda e toda a gente queria saber algo sobre a sua existência guardada em silêncio durante milénios para lá da Grande Muralha.

Fu Manchu era um génio do mal e, de certa forma, personalizava aquilo que no ocidente se falava como Perigo Amarelo, na verdade algo mais parecido com ignorância do que com receio e que se apoiava na inescrutabilidade do Oriente. Para os ingleses, sempre disponíveis para menosprezar o que vem seja de que lado for menos da sua Grande Ilha, tanto fazia que a obra que Rohmer foi idealizando se baseasse numa série de estereótipos com muito de racismo à mistura.

Adoraram a figura. Sax também. Além das aventuras do Dr. Fu Manchu, dedicou-se em exclusivo aos livros policiais, com outras personagens como os detetives Paul Harley, Gaston Max, Red Kerry e Morris Klaw, tornando-se num dos mais bem pagos escritores das décadas de 1920 e 1930 em Inglaterra. De tal forma que, farto de ser um plebeu num país de reis e príncipes, resolveu ser um cidadão numa república, mudando-se com armas, bagagens e a mulher para Nova Iorque.

Mas, afinal, que estrambóticas ideias rodeavam o Dr. Fu Manchu para que se tornasse tão querido dos leitores? O misticismo, naturalmente, um dom que impregnara Arthur Ward desde muito cedo, como vimos. Chefe máximo do culto de Si-Fan, criado para destruir a Civilização Ocidental e criar um império universal a Oriente, Fu Manchu possuía uma inteligência inacreditável e um cérebro tão elaborado que conseguira tornar-se eterno à custa de uma poção por si inventada.

A droga criada para o manter sempre jovem e forte era o Elixir Vitae [O Elixir daLonga Vida], e a sua forma de desarmar e derrotar adversários era simples como uma nuvem dispersa num céu limpo de verão: fixava-lhes os olhos por segundo e tinha-os logo ali, hipnotizados, prontos a virem comer à sua mão.

Mas as suas capacidades não se ficavam por aí. Nem de perto nem de longe. O mamífero era completo. Dominava com a maior das facilidades todas as mais antigas artes da China e era capaz de fazer uso de toda a parafernália científica do mundo moderno para a colocar ao serviço das suas ideias diabólicas. É compreensível que, aqui chegados, já os seus seguidores estivessem fascinados pelo figurão e até mesmo dispostos a oferecer-lhe a sua simpatia. O restante grupo do culto de Si-Fan era uma espécie de rebanho. Obedecia cegamente às suas ordens, fosse por medo ou por convicção. 

«Quem sai aos seus não degenera», como gosta de dizer o povinho, de Santiago de Riba-Ul a Chão de Meninos, e por isso Fu Manchu tinha uma filha tão diabólica quanto o papá. Tinha e tem. Embora Arthur Henry Ward tenha decidido morrer em 1959, com 76 anos, vitimado por um ataque de Gripe Asiática, algo que faria muitos dos crentes da existência real do amarelado Dr. desconfiarem que poderia ter sido vítima das suas maquinações, Fu Manchu continua vivo e bem vivo no interior das páginas de livros que, nos dias de hoje, quase ninguém lê.

A filha, Fa Lo Suee, pode ter aprendido todas as trampolinices com o progenitor mas não estava para aturar a sua megalomania que reduzia todos em redor à mais ínfima insignificância. A rebeldia levou-a a intrometer-se nos planos do pai, criando-lhe problemas a torto e a direito e ambicionando ser chefe máxima da sua própria seita. O Dr. Fu Manchu irritava-se e a malta gostava.

O Celestial

O Dr. Fu Manchu tinha a China como o principal palco das suas atividades criminosas mas possuía células escondidas nos subterrâneos das maiores cidades do mundo. Sobretudo em Londres, claro, por via do melhor conhecimento geográfico do local por parte do autor. Aí, onde o conheciam também por The Celestial One, a sua organização estava instalada em Limehouse, um bairro operário da zona leste. Erguendo-se contra o seu plano abominável, surgiam heróis pura e simplesmente humanos em defesa da Civilização Ocidental, tal como o Dr. Denis Nayland-Smith, um espião britânico, e o seu companheiro de aventuras, o Dr. Petrie, da Scotland Yard. 

O Dr. Fu Manchu era, igualmente, mestre na arte do disfarce. No entanto, a sua figura tornou-se universalmente reconhecível, com as suas unhas gigantescas e pontiagudas e a sua barbicha de bode. Na primeira vez que o mostrou ao mundo, Sax Rohmer, descreveu-o desta forma: «Imagem uma figura alta, magra e felina, de ombros largos, com uma testa comprida de Shakespeare e uma cara de Satanás, uma crânio rapado à lâmina e olhos longos de um profundo verde-gato».

Não será uma das obras-primas da literatura, mas deu a conhecer ao mundo uma das personagens mais características que viemos a encontrar, mais tarde, através do cinema e, nos anos-40, através de uma série promovida pela BBC que teve um êxito assinalável. O facto de o Dr. Fu Manchu viver rodeado de uma nunca mais acabar de aparelhos horríveis, testar armas químicas e usar animais como tarântulas, pitões e escorpiões para matar os seus inimigos, foi um maná para a industria da animação.

Além disso, a personagem também se fazia acompanhar por mulheres especialmente calipígias e tão loiras quanto o espetador de cinema pode desejar, pelo menos do ponto de vista de Howard Hawks.

Para suprema insatisfação de Rohmer, os seus livros foram proibidos naAlemanha nazi na altura em que começaram a ser traduzidos em todas as línguas. Confessou sempre ter ficado abismado com a decisão do regime nacional-socialista, dizendo a quem o queria ouvir, que o Dr. Fu Manchu não combatia o nazismo e sim a ideia básica daquilo a que chamamos Civilização Ocidental desde que os gregos surgiram na face do planeta.

O homem que era investido de um poder imensamente cruel e de um ódio abissal a toda a população do ocidente, carregando um intelecto gigantesco e toda a sabedoria possível sobre todos os recursos antigos e modernos da Humanidade, talvez tenha irritado ligeiramente Adolf Hitler.

Não aceitou de bom grado que existissem dois génios do mal em simultâneo e os alemães tiveram de se contentar com o bigodinho ridículo em lugar da barbicha de bode, por mais nervos que a medida provocasse no autor que, entretanto, já derretera muito da sua fortuna em negócios sem sentido, algo que o obrigou a continuar a escrever desmedidamente: The Drums of Fu Manchu; The Island of Fu Manchu; Seven Sins; Egyptian Nights; Shadow of Fu Manchu; Hangover House; Nude in Mink. Começou a utilizar igualmente o pseudónimo de Michael Furey. 

O seu último livro publicado em vida data de 1959: Emperor Fu Manchu. Dois anos antes trouxera a público Re-Enter Fu Manchu. Talvez pensasse, numa altura que a doença que o viria a matar se manifestou com violência, que ressuscitar o Dr. Fu Manchu seria uma forma de prolongar a própria vida. De pouco lhe serviu.

Durante vários anos, as histórias do Dr. Fu Manchu foram vistas e revistas pela perspetiva do racismo. O Perigo Amarelo tornou-se uma expressão alegadamente anti-chinesa (durante a IIGrande Guerra, nos Estados Unidos, anti-japonesa) que dividiu os críticos que tiveram a pachorra de se debruçarem historicamente sobre ela em vez de encaixarem na prateleira das frases que compõem apenas o lirismo de um livro que se queria lúdico. Ao fim ao cabo, o verdadeiro autor do moto tinha sido o Kaiser Guilherme II, em 1895, quando num discurso fez alusão ao «gelbe Gefahr».

Se houve bigode capaz de emular o do Kaiser, esse foi o de Fu Manchu. Boris Karloff, Christopher Lee e Peter Sellers apresentaram-se com ele bem desenhado ao comporem a personagem. Mas até o enfeite piloso do lábio superior de Fu Manchu ganhou autonomia e não tardou em aparecer em muitos outros vilões do cinema, desde que viessem lá do lugar onde nasce o sol, maioritariamente na fase da popularidade das películas de kung-fu.

Curiosamente, como quase tudo o que dizia respeito a Arthur Henry Edward, não há nenhum livro em que ele descreva o Dr. Fu Manchu como usando bigode. A imaginação faz-nos ver até o que não há no lugar para o qual olhamos com atenção.