Kremlin usa caso português para atacar missões dos capacetes azuis

O caso Miríade não podia vir em pior altura, estando o Kremlin a lançar uma campanha de propaganda contra a MINUSCA. Teme-se até a violência da população contra a missão. 

Por Felícia Cabrita e João Campos Rodrigues

A notícia de que capacetes azuis portugueses traficavam diamantes vindos da República Centro-Africana foi uma bênção para o Kremlin, cujos mercenários servem de tropa de choque do Presidente centro-africano, Faustin-Archange Touadéra. Nesta disputa geopolítica entre a Rússia e a França, sedentos dos diamantes centro-africanos, descrevem analistas, a missão das Nações Unidas do país, a MINUSCA, foi apanhada no meio, tornando-se alvo de uma campanha de propaganda contra si, que já fazia boa parte da população fervilhar de raiva. Temem-se até ataques violentos contra os capacetes azuis. 

Além do escândalo da operação Miríade, não ajuda a memória das investigações a militares da MINUSCA, por abusos sexuais, incluindo de menores, bem como o recente confronto entre guardas presidenciais e capacetes azuis egípcios, no início deste mês.

A MINUSCA diz que um autocarro claramente marcado como sendo das Nações Unidas, cheio do seu pessoal, foi alvo de fogo pesado perto do palácio presidencial, sem provocação, deixando dez egípcios feridos. Enquanto as autoridades centro-africanas se mostram furiosas por os militares da ONU terem atropelado uma rapariga de 16 anos na fuga, matando-a.

Questionada pelo Nascer do SOL quanto ao papel do Kremlin nesta campanha de propaganda, Vladimir Monteiro, porta-voz da MINUSCA, evitou apontar o dedo. Mas é fácil ler-se nas entrelinhas.

«Nós, em relação às violações dos direitos humanos, só mencionamos os grupos armados e as forças de defesa e segurança de cá. Em relação aos outros, o termo utilizado é ‘outro pessoal de segurança’», responde Monteiro, naquilo que se poderia ver como referência aos relatos de massacres pelos mercenários da Wagner, usados como uma espécie de braço armado pessoal de Vladimir Putin pelo globo fora. 

«A mesma coisa vou dizer em relação à propaganda. Sabemos que ela existe, mas não sabemos quem está por detrás. Há determinados casos em que as pessoas dão a cara, como organizações da sociedade civil e até membros do Governo. Mas a máquina que está por detrás nós não conhecemos o nome, nem o sítio onde se encontra», continuou. Os riscos dessa campanha, que inclui acusações de que os capacetes azuis estariam a entregar armas aos rebeldes, que controlam boa parte da República Centro-Africana, são enormes.

«Quando há propaganda com esse tipo de mensagens, isso pode levar as pessoas a dar o passo de recorrer à violência contra as Nações Unidas», alertou. «Houve manifestações no passado onde colegas foram feridos. Houve um coronel brasileiro que foi ferido e nunca mais voltou à missão».

Já para o Governo centro-africano, a operação Miríade só comprovou as acusações que têm a atirado contra a MINUSCA. «Há muito tempo que descrevemos o mau comportamento de certos contingentes membros da MINUSCA», queixou-se o ministro da Comunicação, Serge-Ghislain Djorie, num comunicado a que o Nascer do SOL teve acesso.

«Infelizmente, as nossas vozes não estão a ser ouvidas».

«Mas o que queremos apreciar nisto tudo é a reação das autoridades portuguesas, que lançaram luz sobre estas más práticas», frisou o ministro, gabando a promessa de que Portugal aplicará medidas exemplares aos responsáveis. Não resistindo, porém, a lançar mais uma farpa contra a MINUSCA. «Estão a jogar jogos no continente e no nosso país. Não existe só os diamantes, existe tráfico de armas, abusos sexuais de todos os tipos», rematou Djorie.

Terra de oportunidades

Para qualquer membro do crime organizado infiltrado nas Forças Armadas portuguesas, usar um capacete azul na República Centro-Africana seria sempre uma incrível oportunidade de negócio. Nesta terra no coração de África, onde milícias cristãs se defrontam com grupos muçulmanos, auxiliados por estranhos rituais mágicos que acreditam escudá-los das balas, diamantes fluem como combustível do conflito sectário.

Estas pedras preciosas são escavadas nas profundezas da floresta por gente que vive na maior miséria, em minas a céu aberto, disputadas por cruéis senhores da guerra, pelos mercenários da Wagner e por políticos corruptos. Daí, muitos dos diamantes seguem para as ruas de Bangui, onde em 2017 estavam colocados militares portugueses, operando como Força de Reação Rápida da MINUSCA. Entre eles estava o alegado líder da célula criminosa infiltrada nas Forças Armadas, o então comando Paulo Nazaré «.

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A tentação perante os militares das Nações Unidas era tanta que à chegada recebiam treino para evitar ser aliciados no tráfico de diamantes, andando com cartões no bolso, enumerando as normas contra esse perigo. Assim como as diretivas contra abusos sexuais, um flagelo que manchou missões da ONU pelo mundo fora. 

É difícil imaginar o entusiasmo de Nazaré perante o florescente mercado negro da cidade, com comerciantes ansiosos por se desfazerem dos seus diamantes, bem conscientes que o mais difícil era transportá-los para fora dos país e injetá-los no mercado legal.

À época, a República Centro-Africana já fora excluída do Processo de Kimberley, que proíbe a venda de diamantes de sangue (ou seja, diamantes que financiem grupos armados). Como exemplo do tipo de estragos que esse dinheiro trás, basta ver o filme Diamantes de Sangue (2006), onde Leonardo DiCaprio dá corpo a um mercenário sul-africano, obcecado em pôr as mãos nos diamantes da Serra Leoa. 

No que toca à guerra na República Centro-Africana, a maior parte dos mercenários são russos. Inundaram o país a partir de 2017, após o Presidente Touadéra se encontrar com Sergey Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros russo, numa luxuoso resort nas margens do Mar Negro, em Sochi, como então avançou a Foreign Policy.

Centenas de mercenários da Wagner foram transportados para a República Centro-Africana, como ocorrera já na Síria ou na Ucrânia. E, como então, não tardaram a surgir relatos de atrocidades contra populações. Há relatos de que os russos gerem uma prisão em Bangui, em conjunto com forças governamentais, onde detidos são torturados e mantidos em buracos cavados no chão, a céu aberto.

Ainda em fevereiro deste ano, o Nascer do SOL cobria os alegados crimes de guerra de mercenários russos e das forças centro-africanas, que bombardearam civis escondidos numa pequena mesquita em Bambari, próximo de um quartel dos capacetes azuis. Ficou claro que as tropas ao serviço de Bangui «não tomaram medidas suficientes para evitar que civis fossem feridos», disse-nos Abdoulaye Diarra, investigador da Amnistia Internacional, que denunciou o massacre. 

O horror já vem de 2013, quando uma coligação de rebeldes muçulmanos, ou Séléka, avançou a partir do norte e derrubou o autoritário Governo do Presidente, François Bozizé, que por sua vez respondeu com os anti-balaka, brutais milícias cristãs. É um conflito difícil de perceber, com alianças fluídas – após as eleições de 2016, e a vitória de Touadéra, Bozizé viria a aliar-se a alguns grupos Séléka, avançando sobre a capital no final do ano passado, sendo impedido muito graças à ação da MINUSCA, com os militares portugueses na linha da frente.

Como sempre, no caos há oportunidades. E Moscovo sabe disso, tendo assinado uma série de acordos de exploração mineira com Bangui, colocando os seus mercenários a guardar as minas, fazendo pressão sobre a comunidade internacional para que estes diamantes voltem a ser aprovados pelo Processo de Kimberley.

Paris, a antiga potência colonial, também está à espreita. Mantém interesses económicos cruciais no país, incluindo os campos de cultivo de cana de açúcar do Castel Group, um gigante francês, segunda maior empresa cervejeira em África, uma parceira da Coca-Cola.

Aliás, o próprio Governo francês terá ativado grupos armados contra o Governo de Touadéra, que vê como demasiado próximo do Kremlin, denunciou um relatório recente da ONG Sentry. Enquanto uma empresa subsidiária do Castel Group terá financiado a União pela Paz na República Centro-Africana (UPC, na sigla francesa), dos mais poderosos grupos rebeldes, contra quem militares portugueses da MINUSCA combateram durante três dias, defendendo Bambari, em 2019. 

Já os russos também não fazem favores à MINUSCA. Recentemente, a sua campanha de propaganda contra qualquer influência percecionada como ocidental chegou a proporções quase hollywoodescas, lançando o filme Turista, em francês com legendas em songo, uma língua local. Nesta película, repleta de ação, conta-se a história de valorosos mercenários da Wagner, lutando para defender o Governo centro-africano contra os rebeldes, fantoches de maquinações estrangeiras.

Os poderes ocidentais «dizem que lutam por democracia», refere um mercenário da Wagner no filme. «Os russos lutam por justiça», remata. Quem sabe se o próximo filme de propaganda do Kremlin não será sobre um bando de criminosos portugueses, infiltrados entre os capacetes azuis, aproveitando para saquear os diamantes da República Centro-Africana?