Desafio dos ímanes. “O fascínio pelo desconhecido sobrepõe-se ao medo”

Uma das novas tendências do TikTok é a ingestão de pequenos ímanes. Algumas crianças já foram hospitalizadas e submetidas a procedimentos cirúrgicos. O psicólogo Carlos Fernandes da Silva, da Universidade de Aveiro, e o professor assistente Rui Providência, da University College London, explicam os perigos deste desafio.

São vários os desafios que se têm tornado virais no TikTok. Por exemplo, no verão, a tendência mais seguida era a da ingestão de mel congelado – Frozen Honey Challenge – que, à época, constituía uma imitação de Dave Ramirez, um utilizador da plataforma que decidiu comer mel congelado.

Como foi noticiado pelo i, no vídeo que originou este desafio, veiculado a 9 de julho, é possível ver o jovem a apertar um frasco com as duas mãos e a comer um grande pedaço mais ‘sólido’ que o mel regular. Depois, surgiram variações como comer mel congelado decorado com rebuçados, com molho sriracha ou com chá. 

Os riscos para a saúde eram vários como o de asfixia. Por outro lado, esta plataforma também tem uma vertente positiva. No passado dia 4 de novembro, as forças policiais norte-americanas resgataram uma adolescente de 16 anos que tinha sido raptada.

Tal aconteceu porque chamou a atenção de um motorista por meio de um gesto de alerta que se tem popularizado no TikTok. Segundo informação veiculada pelo gabinete do xerife do condado de Laurel, no Kentucky, a rapariga estava dentro de um veículo quando o motorista, que seguia atrás deste, viu-a fazer um gesto com as mãos que representa a violência doméstica e a necessidade de conseguir ajuda.

Contudo, à semelhança do primeiro desafio, existem outros que se têm difundido, essencialmente, entre os mais novos. Um deles é o Magnet Challenge (numa tradução literal para português, Desafio do Íman) que consiste em incentivar as crianças e os jovens a engolir uns ímanes pequenos que se assemelham a piercings. Os primeiros relatos da existência do desafio remontam a julho, mas as autoridades ainda não conseguiram comprová-lo.

No dia 17 de setembro, a BBC noticiou que Jack Mason, de Stirling (na Escócia), teve de ser submetido a uma cirurgia para remover o apêndice, o intestino delgado e 30 cm do intestino grosso depois de engolir vários ímanes minúsculos. A mãe do menino de 9 anos, Carolann McGeoch, quer alertar os pais sobre os perigos potenciais. Por isso, em declarações ao órgão de informação anteriormente referido, explicou que os pais devem «colocar estes ímanes diretamente no lixo», pois apesar de ter tido alta, o seu filho iniciou uma longa recuperação.

Jack foi levado ao hospital, no dia 7 de setembro, sofrendo de dores abdominais e vómitos. Após a realização de ecografias, a equipa médica rapidamente o levou de ambulância para o Royal Hospital for Children, em Glasgow, onde os raios-x mostraram que algo estava a bloquear o intestino de Jack. Os profissionais de saúde entenderam que um conjunto de pequenos ímanes havia sido engolido por Jack e, apesar de não o ter admitido logo, a criança acabou por confessar que os havia ingerido. 

Os médicos explicaram a Carolann que Jack precisaria de uma cirurgia para remover os ímanes e qualquer tecido danificado. «Foi-me explicado que os danos que estes ímanes podem causar podem ser tão extremos que ele não conseguiria sobreviver», elucidou. «Mesmo em lágrimas, assinei a minha permissão para que a operação acontecesse», tendo compreendido que «tudo poderia acontecer». Volvidas quatro horas do procedimento cirúrgico, Jack já estava melhor e regressou a casa dali a oito dias.

«A curiosidade das crianças e adolescentes, a procura de identificação com grupos alternativos à sua história pessoal e familiar (grupos de referência) e a falta de educação pelos pais em pensamento crítico no uso das redes sociais explicam estas adesões», começa por adiantar Carlos Fernandes da Silva, diretor do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro.

Na ótica do docente, «a atração pelo risco/desafio e também a ignorância sobre relações de causa-efeito deste comportamentos» pode levar a que os mais jovens se deixem levar por desafios como este e até propostas direcionadas para pessoas diferentes, como foi constatado no caso dos desafios da Baleia Azul e Momo, em que os comportamentos autolesivos eram a base para a destruição gradual da saúde psicológica dos jogadores.

«O fascínio pelo desconhecido sobrepõe-se ao medo porque a libertação no sangue de adrenalina tanto é ativada pelo desafio, como perigo e ameaça (medo)», acrescenta o psicólogo clínico doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de Coimbra e pós-graduado em Neurociências pela Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Será que enveredar por este desafio pode funcionar como um mecanismo de coping para as crianças e os jovens que sofrem devido às mais variadas situações, por exemplo, bullying no contexto escolar, violência doméstica, etc.? Talvez funcione como um escape?

Para o co-autor da obra Intervenção Psicológica em Perturbações de Personalidade e autor de Teorias da Aprendizagem: Para uma educação baseada na evidência, «sim, em certos casos». Porém, «noutros casos passa pela identificação com determinados grupos de referência e sujeitarem-se a estes desafios para poderem ser aceites (iniciação)».

«Evitar o contacto das crianças com as redes sociais poderá apenas adiar o início da participação destas nas mesmas ou acabam por usá-las às escondidas, com riscos maiores. A exposição ao que aparece nas redes é o mesmo que a exposição in vivo. O importante é ser feita acompanhada pelos pais, não numa atitude repressiva mas num modelo de apelo à reflexão crítica», aponta o investigador que ganhou o Prémio Ibérico de Psicologia há dois anos. «Temos de ensinar as crianças e adolescentes a pensar de acordo com a matriz SWOT (Strengths, Weaknesses, Opportunities, and Threats): vantagens, desvantagens, oportunidades e constrangimentos».

Entre a vida e a morte

Embora o menino não tenha uma conta no TikTok, conseguiu ver os vídeos partilhados da plataforma. O mesmo foi verificado com uma menina de seis anos residente em Lewes, no condado deSussex, em Inglaterra. De acordo com o The Mirror, a criança estava a brincar com ímanes na escola antes de levá-los para casa para fazer joias para uma boneca. Ao longo de vários dias, ela engoliu 23 dos objetos mencionados e rasgou os intestinos. O cirurgião que realizou a operação de emergência explicou que os ímanes eram «potencialmente fatais».

A mãe da menina, Tanith, avançou que encontrou mais ímanes no quarto da menina, sendo que a mesma lhe tinha dito que os mesmos «sabiam bem» quando os colocava na boca. Estes eram tão fortes que se prenderam aos intestinos desta e começou a ter dores de estômago a 12 de setembro, estando a vomitar há dois dias quando foi levada ao médico.

Como não melhorou, os pais decidiram que devia ser acompanhada no Royal Alexandra Children’s Hospital, onde foi diagnosticada com apendicite. Por todos estes motivos, os médicos estão a ponderar a hipótese de criar uma Ostomia de Eliminação Intestinal na criança, ou seja, a abertura feita na parede abdominal com o objetivo de eliminar as fezes.

«O facto de se tratar de pequenos objetos de aspeto inofensivo pode ser um dos fatores propiciadores. Estamos frequentemente a falar de objetos com apenas 6mm de diâmetro. Infelizmente, apesar de terem dimensões reduzidas, os ímanes possuem fortíssimas propriedades magnéticas», afirma Rui Providência, professor associado da University College London. «Julgo que, em muitos casos, o intuito nem será engolir os ímanes em si. O objetivo será utilizá-los para simular um piercing, colocando-o no interior da cavidade oral (na face interna do lábio), próximo de um segundo íman do lado exterior, em contacto com a pele. Face ao seu forte magnetismo, os imanes atraem-se e ‘cola’ mesmo através do lábio. Torna-se fácil, por descuido, que sejam engolidos». 

«Por outro lado, há também registo de uma criança de 18 meses a engolir dezenas de ímanes. Inevitavelmente, nesse caso foi necessária cirurgia e resultaram sequelas para a vida. Quando engolidos, estes materiais podem causar oclusão intestinal e/ou afetar o fluxo sanguíneo em poucas horas», clarifica o profissional de saúde que, depois de estudar Medicina na Universidade de Coimbra, iniciou a especialização em Cardiologia em 2006. Assim, passou pelo CHU Coimbra e CH Lisboa Ocidental-Santa Cruz. No final de 2012, mudou-se para Toulouse, em França, para usufruir de uma bolsa de estudo em eletrofisiologia cardíaca na Clinique Pasteur.

«Em alguns dos casos descritos, houve jovens a necessitar da remoção de extensas secções do intestino. Engolir mais do que um íman pode colocar uma criança em risco de vida. Engolir deliberadamente vários imanes na adolescência, apenas pode ocorrer no contexto de desconhecimento da magnitude do risco, ou, quem sabe, em casos de ideação suicida», alerta, notando que, no caso particular das crianças de tenra idade, há que evitar ter este tipo de material em casa ou, na sua posse, evitar que fique ao alcance das mesmas. «As autoridades britânicas na área da Pediatria sugerem mesmo que este tipo de brinquedos magnéticos deixe de ser comercializado».

Continuou a formação em Eletrofisiologia Cardíaca em Londres, a partir de 2014, no The Heart Hospital – UCL Hospitals e, posteriormente, no St. Bartholomew’s Hospital, até ser nomeado Consultor no verão de 2017. Atualmente, desempenha o cargo de Cientista Clínico no Institute of Health Informatics University College of London e Consultor Honorário do St Bartholomew’s Hospital. 

«Acho que apenas o total desconhecimento do risco perante o qual se estão a colocar pode justificar a deglutição voluntária destes imanes. Pode também haver casos de bullying e/ou aproveitamento da imaturidade de alguns jovens mais sugestionáveis, mas, nesses casos, estaremos a falar de jovens com comportamentos desafiantes e de oposição, ou perturbações do espetro antissocial», indica o docente que já publicou mais de 200 artigos científicos e que se dedica à realização de procedimentos de ablação por cateter de todos os tipos de arritmias e implantes, desfibrilhadores cardíacos implantáveis e dispositivos de terapia de ressincronização cardíaca. «Não há adrenalina que justifique um desfecho quase certo em caso de falta de auxílio médico imediato. Mesmo após a cirurgia, muitos destes jovens irão padecer de problemas intestinais para o resto das suas vidas».

«São realidades relativamente recentes na sociedade para as quais temos de estar conscientes. As redes sociais não são ‘babysitters’ e não devem servir para manter ocupados os nossos jovens e crianças. Da mesma forma que é importante que os pais saibam quem são os amigos dos filhos, e como se mantêm ocupados quando participam em atividades recreativas fora do domicílio, é crucial saber e monitorizar como passam o seu tempo quando ‘habitam na esfera digital’», recomenda Rui Providência, reconhecendo, todavia, que a adolescência corresponde a um período extremamente complexo no desenvolvimento humano «e cada jovem tem de ser avaliado e analisado dentro da sua individualidade».

Neste sentido, salienta que o bullying pode desempenhar um papel no envolvimento nestes comportamentos autolesivos, pois «o agressor pode desafiar/exigir a deglutição de ímanes por um jovem vulnerável que, pretendendo a aceitação no grupo e não estando ciente do risco de vida que irá correr, acede à exigência», rematando que a violência doméstica, as dificuldades de interação social, os distúrbios de personalidade e as perturbações afetivas poderão ser outros catalisadores para tais situações.  

«As consequências serão psicológicas – como a ansiedade ou o stress pós-traumático – e físicas: não apenas as cicatrizes necessárias para o tratamento cirúrgico em contexto de urgência, mas também as sequelas da infeção», não se referindo apenas «à perda de percentagem significativa do intestino e síndrome de malabsorção para o resto da vida», como a “aderências peritoneais, e também sequelas da sépsis», na medida em que, quando esta ocorre, «qualquer órgão pode ser atingido por uma infeção bacteriana severa e as sequelas podem envolver compromisso permanente de parte de alguns órgãos ou até a perda de membros e a morte».