Biblioteca Pessoal: Viagem ao país da infância

Contemporâneo de Pessoa, com quem partilha semelhanças, Walter Benjamin comparava as memórias a cidades antigas. Para as trazer à luz do dia é preciso escavar.

Poeta? Filósofo? Crítico literário? Ensaísta? Walter Benjamin (1892-1940) é um autor difícil de classificar, aspeto que pode tê-lo prejudicado em vida, mas que hoje sem dúvida torna mais intensa a sua aura de escritor de culto.
Curiosamente, algumas fotografias suas que nos chegaram fazem lembrar outro escritor injustiçado e inclassificável.

Tirada cerca de 1925 por Germaine Krull, a imagem que surge na capa de Imagens de Pensamento (Assírio & Alvim) mostra-o de bigode curto e escuro, óculos metálicos de aros redondos, um cigarro aceso entre os dedos, o polegar encostado ao queixo, um olhar algo míope, alheado e pensativo… Tal e qual um velho conhecido dos portugueses.

Nascidos com quatro anos de diferença, Benjamin e Fernando Pessoa não partilhavam apenas algumas semelhanças físicas. Morreram quase com a mesma idade (o primeiro com 48 anos, o segundo com 47) e foram insuficientemente reconhecidos em vida, o que não impediu que viessem ambos a tornar-se figuras decisivas da literatura e do pensamento do século XX. Um outro aspeto os irmana: o caráter fragmentário dos respetivos escritos.

Imagens de Pensamento (edição e tradução de João Barrento) é precisamente um dos expoentes da dispersão e fragmentariedade de Benjamin. Reúne três conjuntos de textos breves da década 1924-1934: aforismos, descrições de sonhos, reflexões sobre a escrita, apontamentos sobre particularidades do quotidiano na Alemanha, reminiscências da infância e impressões de viagens, como as que o autor realizou a Nápoles em 1924 e a Moscovo no inverno de 1926-27.

Para qualquer pessoa que se interesse pelo esquivo Benjamin, um desses conjuntos de textos – ‘Infância berlinense: 1900’ – oferece pistas preciosas para a sua biografia. Mas mais ainda para a sua personalidade singular. «No ano de 1932, quando me encontrava no estrangeiro, começou a tornar-se claro para mim que em breve teria de me despedir por longo tempo, talvez para sempre, da cidade em que nasci», começa. Evidentemente, além da cidade e dos seus lugares desaparecidos, o que está em causa é esse outro território mágico, o da infância, que o autor tenta recuperar e fixar no papel.

Num texto intitulado ‘Escavar e Recordar’, Benjamin equipara o processo de sondar as memórias ao trabalho de um arqueólogo. Nele define a memória como «o meio através do qual chegamos ao vivido, do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão soterradas as cidades antigas». E continua:«Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. […] E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer um inventário, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado».

Deste processo de arqueologia da vida e das emoções a que Benjamin se dedicou, resultou um conjunto de textos que podemos ler como quem visita uma galeria de artefactos antigos. Cabe a cada um decidir se quer percorrê-la apressadamente, apenas para dizer que lá esteve, ou demorar-se na descoberta desse território encantado. Como notou o escritor alemão, perder-se também pode ser uma arte. Nem todos sabem disso, mas aqueles que a dominam são generosamente recompensados.