O rei do techno sírio esteve atrás das grades

Omar Souleyman, detido sob acusação de terrorismo, foi vítima da perseguição turca aos grupos curdos. Acabou por ser libertado, enquanto a sua terra natal é esmagada. 

O rei do techno sírio esteve atrás das grades

Escutando o ritmo frenético, contagiante, endiabrado da música de Omar Souleyman, coroado “rei do techno sírio”, ouvimos os ecos de um país que costumava ser de sincretismos, onde etnia, tribalismo e fronteiras não eram um fator tão definidor do quotidiano nem da política regional. “A área onde vivia era um triângulo, havia pessoas turcas, cristãs e curdas”, explicou Souleyman, cujo nome verdadeiro é Omar Almasikh, hoje com 55 anos. “Todos tocavam o seu próprio estilo de música tradicional, por isso cantava no estilo deles quando ia tocar lá. Costumava imitar a maneira como cantavam o seu folclore e adicionei-o ao meu próprio estilo”, contou numa entrevista à Vice, que o rotulou de “homem mais fixe do universo”, já lá vão uns oito anos.

À época, este autodidata, um árabe sunita oriundo de uma pequena aldeia na província de Hasekeh, maioritariamente curda, virara uma lenda na Síria, dando mais de 500 concertos em casamentos, oferecendo aos noivos cassetes VHS da performance que se tornaram tão populares que rapidamente foram pirateadas e vendidas em todas as lojas e quiosques. Entretanto, Souleyman, como tantos outros refugiados, escapara à guerra civil que destroçava o país. Levara na mala a sua imagem de marca, mostrando-se de narguilé na mão, usando óculos escuros e um bigode farfalhudo, sempre com um keffiyeh, o tradicional lenço árabe vermelho e branco, e túnica. Encontraria sucesso à escala global, seduzindo os fãs de música alternativa com as suas batidas folclóricas feitas para dançar, que mais parecem saídas do deserto.

Contudo, o músico não podia fugir do conflito na sua terra para sempre. Acabou detido na quarta-feira passada, durante uma rusga à sua residência em Sanliurfa, no sudeste da Turquia, avançou a France Press. Foi detido sob acusação de pertencer às Unidades de Proteção Popular (YPG, sigla curda), uma milícia curda que foi crucial para derrotar o Daesh mas que Ancara descreve como sendo um braço do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, em curdo). Este grupo, que Ancara considera terrorista, à semelhança de vários países ocidentais, enceta uma insurgência contra o Estado turco há quase quatro décadas, exigindo autonomia curda – outros notam que o PKK sempre serviu de desculpa para a repressão dos curdos pela Turquia, justificando detenções arbitrárias ou enormes operações militares, com pesados custos em vidas humanas.

Na prática, as acusações contra Souleyman são em tudo semelhantes às que levaram dezenas milhares de opositores a conhecer o interior dos calabouços do regime de Recep Tayyip Erdogan. Quanto ao músico sírio, teve alguma sorte, acabou por ser libertado na sexta-feira, detido outra vez no mesmo dia, e saiu em liberdade de novo na noite de sábado, após ser interrogado. O seu agente, Mina Tosti, explicou ao National que tudo não passa de uma trama de um rival. “Alguém fez uma denúncia”, contou, Tosti negando todas as alegações de ligação entre o músico e grupos militantes. Souleyman “tem muitos inimigos e pessoas que o invejam que fariam isto”. 

 

Humilhação e medo De facto, a vida não está nada fácil para os curdos, uma das maiores nações sem um Estado, repartida entre Turquia, Síria, Iraque e Irão, ou para os seus amigos, como Souleyman. Por momentos, o seu lendário estilo, a calma que mantinha em qualquer momento, mesmo perante multidões doidas pela sua música, desvaneceu por completo, enquanto desfilava perante as câmaras escoltado pela polícia turca, uma e outra vez.

As imagens mostram-no humilhado, algemado, sem os óculos escuros de que não abdica, tentando tapar a cara com as mãos. Era quase impossível reconhecer o músico que conquistou o mundo e encantou as terriolas em redor da sua aldeia de Ras Al-Ayn, manejando um simples teclado Yamaha, tocado incrivelmente rápido, lançando sons ululantes, enquanto os convivas formavam filas de homens e mulheres, para dançar a dabke, tradicional do Médio Oriente.

Que tenham bastado denúncias de que visitara território controlado pelo YPG – literalmente, a sua própria terra – para levar à detenção de Souleyman diz algo sobre a pressão a que os curdos estão sujeitos. Afinal, trata-se de um músico de alcance global, que, após ser descoberto por um agente californiano, fez colaborações com artistas como Björk, deu um concerto que deixou o Festival de Glastonbury em alvoroço, tocou na cerimónia do prémio Nobel da Paz, em 2013, e cujo mais conhecido hit, Warni Warni, chegou aos 95 milhões de visualizações no Youtube. Se é assim com Souleyman, descrito pelo Guardian como um dos artistas que deviam ter recebido um Grammy este ano, como será para o cidadão anónimo, ainda para mais curdo, uma etnia historicamente vista como ameaça ao Estado turco?

 

“Roubaram tudo” Já na Síria, os curdos, após sofrerem às mãos do Estado Islâmico, sendo das poucas comunidades que conseguiram montar uma resistência eficaz – o YPG, um grupo secular e socialista, cujas mulheres combatentes viraram o pesadelo dos jiadistas, seria a base das Forças Democráticas Sírias (FDS), uma coligação não-sectária, juntando cristãos assírios ou árabes – e retaliar, enfrentam agora a Turquia e suas milícias aliadas, incluindo jiadistas e suspeitos de crimes de guerra, ansiosos por esmagar quaisquer grupos que dêem ideias aos curdos turcos. 

Tanto que a Turquia, após tomar as regiões sírias na sua fronteira – aconteceu em 2019, numa ofensiva contra as SDF, com conivência dos EUA, que durante anos dependeram dos combatentes curdos para terem botas no chão contra o Daesh – agora ameaça avançar de novo, enquanto o SDF se viu obrigado a encetar desconfortáveis negociações com o seu velho inimigo, o regime de Bashar al-Assad, tentando bloquear a manobra. 

Entretanto, a situação na terra natal de Souleyman vai-se agravando. “Tudo o que tenho é um cobertor. Eles roubaram tudo, o frigorífico, a televisão, tudo”, contou ao Al-Monitor Halise Khalil, moradora de Ras Al-Ayn, com 40 anos e dez filhos, que teve de fugir quando a aldeia foi ocupada pelas milícias turcas. Já nos arredores, as FDS vão mantendo as suas posições, com dificuldades, estando a Turquia a bombardear a região, enquanto desvia a água e eletricidade. O regime de Erdogan é recorrentemente acusado de tentar expulsar os antigos vizinhos curdos e cristãos do músico, para transformar este território fronteiriço, que sempre foi tão diverso, num feudo sunita. “O objetivo é tornar a vida nas pessoas num inferno aqui”, acrescentou Selweh Saleh, elemento da administração autónoma responsável pela gestão dos recursos hídricos.