Herman José: “O som preferido do humorista é o abrir da garrafa de champanhe para comemorar o sucesso”

Desde cedo percebeu que o humor era um «excelente desbloqueador de situações difíceis». Se pudesse mudava «seguramente» um terço da sua vida – «ou mais». Tal como a dieta, também deixa sempre para amanhã «a sede de vingança». Aos 67 anos, a morte é «mesmo» o único medo. E o trabalho a maior certeza da…

É filho de pai com nacionalidades alemã e espanhola e de mãe portuguesa. Quais as características que herdou de cada um?

Do meu lado paterno herdei o pragmatismo, o ateísmo e o método. Da minha mãe, a gentileza, a capacidade de improvisar e a gestão do caos.

Pode recordar-nos a sua infância? Consegue identificar a sua primeira memória?

Infância solitária, mas perfeita. A minha primeira memória foi a da prática médica. Fazia operações e dava injeções no meu primeiro boneco, o “bochechas”. Sobreviveu um ano, mas fez de mim um grande cirurgião.

E também desde muito cedo mostrou que tinha jeito para a representação e já na escola alemã era o protagonista de vários espetáculos. Desde essa altura que o destino parecia traçado ou em algum momento os seus pais – ou mesmo o Herman – ainda sonharam com uma carreira ‘tradicional’, fosse na advocacia ou noutra área?

Os meus pais estiveram sempre contra uma carreira artística. Nos anos setenta ser artista implicava quase sempre dificuldades, lutas inglórias e muitas contas por pagar. Mesmo dando-lhes alguma razão, o apelo artístico foi mais forte que a razão. 

Mas o seu pai, cineasta nas horas vagas, também acabou por ter muita influência neste caminho? O facto de integrar os projetos por ele desenvolvidos foi como um aperitivo para todas as personagens que viria a criar?

Não para as personagens, mas ajudou-me a ganhar uma relação com a parte técnica do audiovisual muito fora do comum. Aos oito anos já montava e sonorizava filmes de 16 mm. Ainda hoje tenho um indisfarçável fascínio pelos bastidores da produção cinematográfica.

Lembra-se da primeira vez que conseguiu fazer rir alguém tendo esse propósito?

Aos quatro anos já fazia espetáculos de humor e música para as visitas lá de casa, E passei a ganhar os primeiros cachês sempre que uma das amigas da minha mãe entendia oferecer-me uma moeda de cinco escudos, o correspondente a uma fortuna na altura.

Em que momento é que o humor passou a ser um trunfo na sua vida?

Eu diria que desde que me lembro. Cedo percebi que o humor, para além de uma arma, era um excelente desbloqueador de situações difíceis. 

O humor é uma arma para situações inconvenientes ou só é humor se ele próprio for também inconveniente?

Não há regras. Aquilo que é sereno e aceitável para uns é vulgar e agressivo para outros. O humor é como a meteorologia: não tem regras fixas nem padrões. Raras vezes se consegue ter sol na eira e chuva no nabal.

As personagens são o escudo perfeito para se conseguir dizer, sem meias medidas, tudo o que se pensa? Seja sobre outras pessoas ou mesmo sobre determinadas situações, atitudes ou comportamentos?

Sem dúvida. Não é por acaso que tantos autores se escondem atrás de heterónimos. Há muitas personagens minhas que espalham atoardas que eu jamais assumiria.  

Por exemplo, a personagem da ‘influencer’ Tia Lecas tem feito muito êxito na sua página de Instagram. O Herman é um dos casos de sucesso nas redes sociais (só no Instagram reúne 345 mil seguidores). Alguma vez rejeitou a ideia de fazer parte desta comunidade digital ou o facto destas novas plataformas serem também elas uma ferramenta de trabalho tornou a decisão inevitável?

As redes têm sido um veio de transmissão para alargar o público do trabalho que desenvolvo para a RTP, empresa que me merece toda a gratidão. Para além dos espetáculos ao vivo, o canal público tem sido um irrepreensível empregador. 

As redes são um poço rico em matéria para conteúdos humorísticos? Dado o lado negro que também assumem, mais vale rir do que chorar?

As redes são uma extensão dos escritos nas portas das paredes das casas de banho públicas. O problema não está nas redes, está no ser humano, na sua pequenez, na sua maldade, na sua inveja e na sua pusilanimidade.

Alguma vez precisou de bloquear alguém?

Não deixo de bloquear sempre que opinião passa a ofensa. Nem pestanejo.

Já confessou em várias entrevistas a importância que o trabalho merece na sua vida, sendo por assim dizer a grande fatia de um bolo. Foi assim desde sempre?

Não tenho qualquer dúvida que é o trabalho que me mantém ativo, fresco e atualizado. Morrerei no dia em que me reforme. 

Em algum momento se arrependeu ou pensou que poderia ter doseado os vários ingredientes da vida de outra maneira?

Não percebo as pessoas que dizem que “fariam tudo igual”. Se pudesse, mudaria seguramente um terço da minha vida. Ou mais.  

Aos 67 anos e com praticamente 50 de carreira, qual foi o segredo para adaptar-se a tantas épocas? E qual a mais difícil?

Mais difícil é a nossa pequenez geográfica. As plantas têm de lutar muito para sobreviver em vasos acanhados. A minha paixão pelo presente e pelo futuro leva-me a nunca baixar os braços. 

Há 25 anos, o sketch “A última ceia”, integrado no programa Herman ZAP, esteve no centro da polémica. A sátira, que parodiava a derradeira refeição de Jesus e dos seus apóstolos, foi alvo de várias pressões, mas a RTP, à data sob a direção de Joaquim Furtado e Joaquim Vieira, não cedeu às reações e deixou o sketch ser emitido. O mesmo não aconteceu em 1988, com o programa “Humor de Perdição”, a propósito da entrevista à personagem da rainha Santa Isabel (em que os dois últimos programas não chegaram a ir para o ar). Como recorda esses tempos? Acha que o impacto na altura era muito maior também pelo facto de não haver tantos canais e meios como há hoje?

Na altura, o mundo gravitava à volta da RTP. Com a concorrência, nenhuma polémica humorística voltou a ganhar tanta visibilidade. Hoje em dia, já não teria paciência para aturar tanta burrice e prepotência. Deixo essa tarefa ao Dom Quixote. Os moinhos conseguem ser mais inteligentes.

Alguma vez imaginou que certos personagens (caso do Nelo e Idália) sobrevivessem ao tempo desta forma?

E como este exemplo há vários: o ‘Serafim Saudade’, o ‘Diácono Remédios’, o José Esteves… Nunca imaginei. Comove-me ver miúdos de sete e oito anos a saberem textos e cantigas minhas de cor. Bem sei que os pais têm influência, mas mesmo assim… É um delicioso mistério que não se explica.

A propósito da personagem ‘Serafim Saudade’: de quê ou de quem sente saudades?

Sinto saudades do futuro. Sempre.

Subir ao palco ainda lhe dá medo? Ou já sente outro tipo de sensações e emoções?

Sinto-me no palco como em casa. Levo a coisa muito a sério, dou sempre o melhor de mim, mas já há muitos anos que não sinto “nervos”. A prática é muita e constante.

Como em outras áreas, também o ‘mundo humorístico’ é, ainda hoje, muito dominado por homens. Mas desde sempre fez-se acompanhar por mulheres no seu percurso [Maria Rueff, Ana Bola ou Maria Vieira]. Prova disso, é também o atual espetáculo “Noites de Comédia”, em que surge acompanhado por duas convidadas [A Pipoca Mais Doce (Ana Garcia Martins) e Beatriz Gosta (Marta Bateira)]. É mais uma prova de que o Herman sempre esteve um passo à frente?

A arte no feminino sempre me encantou. Acho mesmo que a misoginia é uma forma que os homens inventarem de combater a superioridade feminina. Daí ser uma pecha que jamais estará dominada. 

No espetáculo do Campo Pequeno, no passado dia 19 de novembro, contou com o apoio da sua mãe na primeira fila. É o aplauso mais importante para si?

O aplauso da minha mãe está sempre garantido. É solidário e constante. Estava mais preocupado com o aplauso dos restantes 2999 espetadores.

E como é que a sua mãe vê o seu trabalho? É a sua melhor crítica?

A minha mãe gosta de gostar e diverte-se muito comigo. Quando não gosta, brinda-me com o seu silêncio porque sabe bem que não tenho espaço para críticas.

Fez também questão de prestar uma homenagem a Nicolau Breyner com “Sr. Feliz e Sr. Contente”. A gratidão é das caraterísticas que mais preza?

Sem dúvida. De todos os colegas, o Nicolau é a quem mais devo. Generosidade sem interesses escondidos nem contrapartidas. Era um homem bom e uma criatura superior. Não deixarei de honrá-lo até ao final da minha vida.

O espetáculo [Noites de Comédia] volta a subir ao palco na Super Bock Arena, já no próximo dia 3 de dezembro, no Porto. «Com certificado, máscara, todos os cuidados e a vontade imensa de mandar o vírus para a corona da tia dele», escreveu nas redes sociais. É um convite que já mostra por si só o que se pode esperar de uma verdadeira noite de comédia?!

Percebemos, pelo sucesso no Campo Pequeno, que só temos uma grande noite pela frente. A mistura revelou-se perfeita.

Além do humor, toda a performance é notável. Alguma vez pensou que poderá ter passado ao lado de uma brilhante carreira de cantor?

Não me chegaria. Preciso muito de entrecortar a música com a interpretação para que me sinta completo. 

Nesta altura da vida, ainda há alguma coisa que lhe provoque medo?

Só mesmo a morte.

As gargalhadas são o som preferido de um humorista, dentro ou fora dos espetáculos?

O som preferido do humorista é o abrir da garrafa de champanhe para comemorar o sucesso.

E o silêncio? É essencial em que momentos do seu dia-a-dia?

Durante o sono, só. De resto gosto de ter uma fonte de som como companhia.

Além de humorista, é ator, apresentador, guionista e realizador. Isso significa que quando tem possibilidade gosta de controlar todo o processo? Desde a ideia até à sua concretização? O Cá por Casa é um exemplo disto?

Sem dúvida. O Cá Por Casa é um produto muito pessoal, em que me responsabilizo por cada fotograma. O controle de qualidade feroz é também uma das razões da sua longevidade.

Os humoristas estão na moda ou era preciso derrubar um certo estigma para a profissão ser olhada de outra forma?

Recentemente o César Mourão concedeu uma entrevista ao Jornal de Notícias e lembrou precisamente a importância que o Herman teve nesta área. Disse: «É graças a ele que os humoristas da minha geração estão onde estão». O César é, conjuntamente com a Maria Rueff, dos colegas mais gratos da minha profissão. Mesmo quando exageram na bondade na descrição das minhas qualidades, não os desminto porque me sabe bem e compensa largamente os muitos que ajudei e que foram acometidos de ataques de amnésia súbitos. 

Da nova geração de humoristas, quais seriam os dois nomes que destacava?

Respeito muito todos aqueles que trabalham muito, criam e assumem o seu próprio material. Mesmo aqueles que não me fazem rir a bandeiras despregadas.

Parece logo à partida contraditório, mas há algum tipo de humor que não lhe provoque riso?

O humor primário e forçado, tipo “zorra total”, não me provoca nem um sorriso.

Alguma vez se arrependeu de alguma piada ou sentiu necessidade de se desculpar à pessoa visada?

Já aconteceu no passado. Hoje em dia, habituei-me a ponderar tudo o que digo. O meu processo de autocensura está muito presente. O Herman-Censor é o maior inimigo do Herman-Criador.

A opinião ou o olhar que tem sobre o mundo do espetáculo, por assim dizer, tem vindo a alterar-se com o passar dos anos? Haverá artistas desejosos de ocupar o seu espaço artístico?

Tal como na floresta virgem, as árvores mais pequenas só apanham sol e crescem quando cai uma das grandes. São as leis da natureza. 

Numa entrevista à revista Sábado, em 2014, revelou que estava uma pessoa mais tranquila e que era «muito calmo». Falava no facto de se ter habituado «à lei dos três tempos, só reajo ao quarto». Sete anos depois continua a pô-la em prática?

Cada vez mais. Muitas pessoas, quando confrontadas com a minha presença, têm comportamentos atípicos, que tento não julgar à primeira. Nem à segunda.

A pandemia e os consequentes confinamentos alteraram de algum modo a sua forma de pensar ou estar na vida?

Em nada. Sempre tive a noção de que somos peças de um jogo de sorte e azar, por vezes muito cruel e nada divino. Estou preparado para todas as vicissitudes. 

A partir de certa idade só há restrições quando estas nos são impostas por motivos de força maior?

A idade só complica. A capa da juventude e da beleza física servem de atenuantes a muitas alarvidades.

Nesta fase ainda sente que tem algo a provar ou o caminho passa sempre por superar-se a si mesmo, seja nos processos criativos, interpretação das personagens ou enquanto apresentador?

A minha obsessão pelo presente faz com que considere cada dia como um arranque novo. Falta-me provar que posso vir a ser um “velho” fresco, atual, informado e na posse de todas as suas faculdades. 

Além da dieta, o que é que deixa sempre para amanhã?

A sede de vingança.

Em contagem decrescente para o Natal, qual é o top-3 dos bolos/doces favoritos desta época festiva?

Trouxas de ovos, panettone de castanha e sonhos acabados de fritar. 

Como costuma festejar esta data?

Faço uma ceia sem limites de orçamento: Beluga, Blanc des Blancs, Marrons Glacés da Fauchon e moscatel “Triologia”. É o meu presente de Natal.

Há algum projeto – profissional ou pessoal – que gostasse de realizar durante o próximo ano?

Recuperar a normalidade de 2019.

Costuma fazer balanços e delinear objetivos para o ano seguinte, fazendo aquele tipo de listas que costumam tornar-se muitas vezes amargas quando passados meses muitos se apercebem que ficaram a maioria dos pontos por cumprir?!

Penso ao contrário. Comemoro sempre um ano vivido com sucesso e saúde. Convém não fazer muitos planos, para não estragar os planos que o futuro tem para nós.

Gosta de festejar os seus aniversários? ​A celebração dos 70 anos vai dar lugar a uma grande festa?

Se a minha mãe estiver viva e de saúde, sem dúvida.

Quem não convidava?

Não convido gente que não me encante e enleve. Odeio más vibrações.

E quem teria direito a ‘pulseira VIP’?

Todos os queridos colegas que trabalham comigo. São o braço armado da minha (fantástica) luta semanal na RTP.

Por falar em RTP, no 5 Para a Meia Noite [18 de novembro], Filipe La Féria foi desafiado a nomear uma pessoa para ministro da Cultura e indicou o seu nome. O que tem a dizer?

Acho gentil da parte dele, mas tão utópico como imaginar Marta Temido a dirigir um grupo de negacionistas.

No final do dia, rir é mesmo o melhor remédio?!

Não. O melhor remédio é mesmo ter uma vida decente, privilégio limitado a uma parte muito modesta da população mundial.