Despedidas e privilégios…

Ferro Rodrigues terá o retrato na galeria do Parlamento, mas, dificilmente, constará da História. E Van Dunem foi para o Governo mas tem o lugar à sua espera 

Dissolvido o Parlamento (ao ralenti…) a meio da legislatura, Eduardo Ferro Rodrigues descobriu que já ‘deu para esse peditório’ e anunciou a retirada, deixando em aberto o lugar de segunda figura do Estado, que ocupou quando menos se esperava, em outubro de 2015. Se o PS voltar a ser o partido mais votado, talvez reapareça Carlos César, então preterido. Um susto.

Fica a memória de um presidente errático, que não deixa saudades, entre o atabalhoado e o inflexível em várias causas, tratadas invariavelmente segundo a cartilha própria de um esquerdismo militante, divorciado da equidistância que é suposto existir em quem preside à Assembleia da República. Situação que se agravou após terem assento no hemiciclo deputados mais à direita.

Ao nível comportamental, faz parte da crónica a sua equívoca frase «então nós íamos mascarados para o 25 de abril?», quando recusou o uso de máscara na sessão solene comemorativa, em 2020. 

O sectarismo nele não é nem foi nem uma figura retórica, como se comprovou, novamente, na entrevista que deu ao Expresso, quando lhe perguntaram «que ideia tem de Paulo Rangel». A resposta foi «não tenho nenhuma. Não conheço», ao mesmo tempo que elogiava a «coragem política» de Rui Rio. Lapidar…

Se alguém tivesse ainda dúvidas sobre quem é o preferido do PS para vencer as diretas no PSD deste fim de semana, a resposta de Ferro – juntamente com a de Augusto Santos Silva – dissipou-as.

Ferro Rodrigues poderá ter o retrato na galeria do Parlamento, mas, dificilmente, constará da História. Durante os seus mandatos, usou frequentemente de uma bitola inquinada pelas suas opções ideológicas, que nunca o abandonaram, desde que fundou o MES nos alvores do 25 de Abril.
 
Curiosamente, a renúncia de Ferro, após três décadas como deputado, antecipa uma provável mexida de fundo no hemiciclo, com várias outras saídas e entradas.

À esquerda, não será arriscado prever que o Bloco e o PCP entrem em ‘quarto minguante’, penalizados por terem votado contra o OE, e que o PAN sofra, também, uma natural erosão, por causa do sarilho em que se meteu a atual líder, nas suas contradições como produtora agrícola.

Parece improvável, também, que reapareçam as deputadas ‘não inscritas’, que, expeditamente, cortaram o ‘cordão umbilical’ com os partidos que as elegeram, a menos que alguém lhes deite a mão.

E, à direita, a confirmarem-se as sondagens, haverá mudanças significativas, com o CDS a encolher, e o Chega e o IL a crescerem, quebrando o isolamento dos respetivos líderes na bancada parlamentar. 

Adiante se saberá, se o país conseguirá libertar-se da ‘geringonça’ e dos seus efeitos nefastos, bem explícitos, aliás, numa sondagem realizada pelo ICS/ISCTE (que o Expresso tratou, pudicamente, nas páginas interiores), e cujos resultados apontam, de uma forma descarnada, para uma década perdida, revelando um forte pessimismo dos portugueses, sem fé no futuro, perante a degradação da qualidade de vida e da democracia.

À pergunta como estará o país em 2030, verificou-se que a maioria dos inquiridos respondeu que será mais desigual, mais desertificado, com mais impostos, e mais precário. Um ceticismo em dó maior.

Reconheça-se, por isso, que a dissolução do Parlamento, ao menos, mexeu com o pântano. Com o fim deste Governo e a incerteza da consulta eleitoral, há quem sinta que é o momento de desabafar as mágoas. 

A ministra da Justiça, por exemplo, veio agora contraditar, numa entrevista ao Público, a versão dita e redita por António Costa sobre a remodelação do Governo, que, afinal, esteve prevista e passava por desobrigá-la de funções, no final da presidência portuguesa da UE. 

O mal-estar de Francisca Van Dunem foi eloquente, ao confidenciar que «a minha profissão não é esta». E tem razão.

De facto, a ainda ministra, tem uma carreira de magistrada do Ministério Público desde 1979, e até fez um ‘intervalo’ de algumas horas no Ministério para ser empossada como juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, em março de 2016 – com a bênção do Conselho Superior da Magistratura –, lugar que ficou cativo à sua espera…

A singularidade da situação – que, na altura, suscitou viva controvérsia –, lembra, irresistivelmente, a forma como Mário Centeno, enquanto ministro, ‘namorou’ o lugar de governador do BdP, do qual se apropriou, logo que a cadeira ficou vaga. 

Também neste caso, a ‘profissão’ de Centeno não era continuar ministro, mas ser governador do Banco Central, um sonho antigo.

Donde é legitimo concluir que os governos também servem para alavancar ambições. Com uma diferença: Centeno, embora impaciente, foi forçado a esperar pelo fim do mandato do antecessor. Já Van Dunem correu a assumir o lugar no Supremo, antes que fosse tarde. 

Moral da história: há privilégios que são para quem sabe…