Quinta da Marinha: pagar para entrar em casa

Os proprietários da Quinta da Marinha Original pagam o equivalente a meio salário mínimo para acederem às suas propriedades. Miguel Champalimaud quererá exigir o mesmo aos futuros residentes da Bloom Marinha.

A Quinta da Marinha, em Cascais, não é palco de apenas uma guerra entre o empresário Miguel Champalimaud e o novo empreendimento Bloom Marinha, como o Nascer do SOL noticiou na semana passada. Segundo informação apurada nos dias seguintes, o empresário é protagonista de uma outra guerra com mais uma centena de adversários: os 100 proprietários da zona Norte, agora denominada de ‘Quinta da Marinha Original’, aos quais é exigido o pagamento mensal de um valor equivalente a meio salário mínimo nacional (SMN) em troca de uma servidão de passagem.

Em termos simples, para além de terem adquirido as casas, têm de gastar um montante surpreendente para aceder às mesmas. Mas esta história tem antecedentes. Quando a Bloom Marinha foi comprada ao banco pela Zaphira Capital, havia uma zona indefinida junto à Rua das Palmeiras, uma espécie de berma. Isto é, o lote em que se insere aquele que se autodesigna, no seu site oficial, como «condomínio fechado composto por 88 casas, T1 a T6, localizadas na Quinta da Marinha, em Cascais, com arquitetura contemporânea e extensos jardins, inspirado na beleza natural da costa portuguesa» confine com a rua. E tal não agrada a Champalimaud.

«É normal, quando há loteamentos, que haja cedências. A partir de determinada altura, a lei permitiu que os arrolamentos ficassem para a Câmara Municipal de Cascais. Mas, se as pessoas quisessem mantê-las a seu cargo, podiam ficar do condomínio. E os proprietários tinham de as controlar. Foi isso que Champalimaud fez. Ele foi ficando com a posse desses arruamentos, incluindo a berma da Rua das Palmeiras», explica uma fonte que não quis revelar a identidade, por medo de represálias, ao Nascer do SOL, frisando, como foi referido anteriormente, que, para entrarem em cada uma das propriedades, os donos das mesmas têm de desembolsar aproximadamente 332,50eur. (metade dos 665 euros de SMN estipulados para este ano). E, ao que parece, Champalimaud desejava cobrar o mesmo valor aos futuros residentes da Bloom, o que corresponderia a cerca de 29 mil e 260 euros mensais.

«Tinha a expectativa de cobrar isto que, aparentemente, é aquilo que cobra aos proprietários da zona Norte que acedem às casas pelas ruas que são dele. Os lotes urbanos devem ter acesso à rua, mas paga-se uma ‘portagem do passeio’. Há pessoas que se opuseram e há processos em tribunal. A seu tempo, isto vai-se reverter», avança, esclarecendo que tem conhecimento de que a Zaphira Capital deixou claro, desde o início, que no caso da Bloom Marinha, «não existiria compra sem um acesso franco à rua».

Por este motivo, «o banco constituiu uma servidão com Champalimaud para acesso ao lote», porém, nem sequer era necessário porque «aquela berma é pública». Contudo, aceitando que esta é a realidade de que tem conhecimento, a fonte em questão elucida que gostaria de questionar Champalimaud acerca dos cartazes pretos com a inscrição «Quinta da Marinha não é responsável por este desmando urbanístico» acompanhados de uma seta vermelha que aponta em direção aos edifícios em construção que constituirão a Bloom Marinha. 

E não só: declara que as pessoas que compraram e reservaram propriedades da Bloom Marinha querem entender também o âmbito em que os avisos em que se lê «Quinta da Marinha detém, a todo o momento, o direito legal de preferência na transação destas casas/edificações» foram expostos. «Os painéis pretos precisavam de um licenciamento camarário que não tiveram. O branco é outra questão: não pode haver terrenos encravados, o confinante tem de garantir acesso aos mesmos. E os proprietários têm direito de preferência, a lei permite isso», clarifica, acrescentando que o condomínio anteriormente mencionado, do lado oposto ao da Rua das Palmeiras, confronta com a Rua das Codornizes que se estende da Areia à Bicuda.

«Esta rua é pública. O que é que o homem quer? Não sei, mas ficou ressabiado e quer dinheiro. Já perdeu vários terrenos e, qualquer dia, perde o hotel, o campo de golfe e os restaurantes do Oitavos. Também pôs cartazes à porta do senhor Claude Marion» da The Claude and Sofia Marion Foundation, que apoiou a luta contra a covid-19 quando a Câmara Municipal de Cascais (CMC) anunciou, em maio de 2020, que disponibilizaria de forma gratuita a todos os seus munícipes testes serológicos. «Deve ter ódios de estimação. Não o conheço, mas já percebi isto», remata.

Importa salientar que, tal como o Nascer do SOL explicitou há uma semana, além da destruição e abate de árvores que rodeiam o condomínio Bloom Marinha, Champalimaud mandou cortar os pilaretes de madeira que haviam sido colocados no passeio para impedir o estacionamento abusivo. «Os vestígios da sua existência prévia formam uma espécie de fila a escassos metros do local onde trabalhadores se esforçam por terminar de construir as duas moradias que, em princípio, estarão prontas a habitar no início do próximo ano», pode ler-se no artigo Quinta da Marinha. Guerra de imobiliárias em condomínio de ricos.

«É um passeio que toda a gente usa. Antigamente era só alcatrão, agora tem um passeio pedonal. Aquela rua tem circulação de todo o tipo de pessoas. Aquela zona nem sequer é da Bloom Marinha», mas a Zaphira Capital, aparentemente, quis melhorar aquela área, em termos paisagísticos, não somente para aqueles que serão os seus residentes e acabou ver deitado ao lixo o investimento de 100 mil euros que fizera para tornar a zona mais verde e esteticamente apelativa.

«Têm sido interpostas várias ações judiciais» 
A zona Norte teve autorização de urbanização em 1989 e, durante muitos anos, Champalimaud não terá conseguido vender mais do que uma dúzia de lotes de terreno. «Quando se verificou o boom no imobiliário de luxo, por volta de 1998, os compradores passaram a efetuar duas escrituras – uma para a aquisição do terreno ou moradia já edificada, e uma segunda, para homologação da referida servidão de passagem, em troco de um pagamento em perpetuidade», começa por afirmar outra fonte que também preferiu proteger a sua identidade, revelando que a maioria dos compradores soube desta segunda escritura no decorrer do ato notarial e, segundo vários relatos, muitos nem se aperceberam das suas implicações. 

«Refira-se que os proprietários que adquiriram terrenos antes de 1998 não celebraram a segunda escritura e, por consequência, não têm a obrigatoriedade do respetivo pagamento. Esta situação tem gerado ao longo dos anos um clima de verdadeira guerra entre os proprietários e Champalimaud, com cenas muito pouco edificantes da parte deste», aponta, indicando que este supostamente recorre a «métodos pouco ortodoxos quando o desfecho das situações não lhe é favorável».

Seguindo a linha de pensamento da primeira fonte citada e confirmando as informações transmitidas pela mesma, realça que «os muitos proprietários que têm contestado a legalidade da servidão de acesso, têm sido alvo de represálias, algumas inimagináveis numa sociedade de direito»,vivendo situações como: a proibição de entrada no portão principal de visitas, pessoal doméstico, jardineiros e serviços de entrega; interdição de obras devidamente licenciadas, porque os empreiteiros e mão de obra foram barrados; interdição de acesso às instalações do Health Club, Clube de Golf e Centro de Equitação; recusa de entrega dos dispositivos eletrónicos que abrem automaticamente as várias cancelas espalhadas pela zona Norte; o depósito de grandes volumes de entulho e lixo de jardim nos portões de acesso às moradias por funcionários da Quinta da Marinha Original, «que envergonhadamente pediam desculpa, alegando que tinham recebido ordens de Miguel Champalimaud» e a constatação da distribuição de circulares por todas as propriedades com indicação de nomes e moradas de quem tinha interposto processos judiciais.

«A cobrança mensal do montante equivalente a meio SMN reveste-se de uma importância financeira muito apreciável para Miguel Champalimaud. Grosso modo, este mecanismo já lhe terá permitido arrecadar cerca de 8 milhões», observa, justificando que «têm sido interpostas várias ações judiciais a questionar a legalidade da servidão de passagem que, de acordo o Código Civil, pressupõe uma situação de encrave absoluto ou relativo do prédio», o que, como foi descrito inicialmente, não está a acontecer.

«Foi solicitado ao Tribunal, no caso de ser validada a legitimidade da servidão, que fosse este a determinar o valor do pagamento a ser efetuado à Quinta da Marinha, tal como a lei prevê. Nos casos de que tenho conhecimento, o Tribunal decidiu favoravelmente aos proprietários», e ficou estipulado que estes não teriam de efetuar qualquer pagamento para terem acesso às suas moradias. «Pelo que julgo saber, a maioria destes processos foi litigada pelo advogado Rui Bandeira, que representa igualmente proprietários alemães, que moveram uma ação coletiva, em nome de todos os residentes, que a ser julgada procedente, pode acabar definitivamente com a prática de cobrar pelo acesso», finaliza, indo ao encontro da mesma esperança que as restantes fontes entrevistadas têm: de que seja feita justiça.

Recorde-se que, em declarações ao Nascer do SOL, a CMC informou que «na Quinta da Marinha há espaços (vias de acessos, bermas, canteiros, etc) públicos e privados. Estes em concreto são privados. Os munícipes não pagam pelo acesso/usufruto das vias públicas. Nem na Quinta da Marinha, nem em qualquer local do concelho. Na realidade, trata-se de uma disputa entre dois privados (Quinta da Marinha SA e a empresa Zaphira, responsável pelas obras do Condomínio Bloom Marinha), ou seja, é uma situação do foro jurídico privado, dado que não foi danificado qualquer espaço verde do domínio público ou dano em mobiliário urbano». O Nascer do SOL tentou contactar Miguel Champalimaud mas, até à hora de fecho desta edição, não obteve qualquer resposta.