No epicentro da nova variante, há mais crianças a serem internadas

Investigadores estão de olhos postos na província sul-africana de Gautengue, onde foi detetado o maior cluster de covid-19 associado à variante Omicron. “Temos de esperar para perceber o que acontece numa Europa muito mais vacinada mas também mais envelhecida”, diz Manuel Carmo Gomes.

À procura de pistas sobre que impacto poderá ter a nova variante Omicron no curso da pandemia, os olhos viram-se para a província sul-africana de Gauteng, onde foi confirmado até agora o maior número de casos. E em particular para a cidade de Tsuane, com perto de 3 milhões de habitantes, sensivelmente os mesmos que a área metropolitana de Lisboa, e a registar a maior subida. E é de lá que começam a chegar sinais de mudanças no padrão de internamentos, com um aumento nas admissões de crianças nos hospitais.

O balanço foi feito esta segunda-feira por Waasila Jassat, do Instituto Nacional de Doenças Transmissíveis de África do Sul, num briefing televisivo. Nas últimas semanas, o país e a província de Gauteng registava uma incidência relativamente baixa de novos casos de covid-19 comparativamente ao que se vive na maioria dos países europeus, sendo também a pressão nos hospitais baixa. Na província de Gauteng, o número de admissões hospitalares subiu de 18 novos internados para 49 internados por dia e em Tsuane aquilo que chama a atenção da saúde pública é o aumento das admissões de bebés até aos dois anos (10% do total), com mais admissões também nas crianças mais velhas. Os quadros continuam a ser mais graves nos mais velhos, mas 30% das crianças até aos 16 anos internadas têm doença grave.

A percentagem de crianças com comorbilidades prévias é pequena, 1% nos bebés e 5% no grupo dos 5 aos 9, citou a imprensa. “Pode ser que este aumento de internamentos em crianças mais novas se deva apenas a medidas de precaução”, notou a responsável, sublinhando que, com a nova variante, pais e médicos estão mais preocupados mas não há indício de casos com maior gravidade do que os que apareciam no passado. “Penso que o mais importante para nós é que, ao prepararmo-nos para uma maior pressão hospitalar, desta vez precisamos também de olhar com especial atenção para a preparação pediátrica”, disse, sublinhando ainda que as crianças muito pequenas “têm um sistema imunitário imaturo e não estão vacinadas, por isso estão em maior risco”.

Informação ao dia Algo que contrasta com a maioria dos países europeus, e também com Portugal, é que os dados a que se refere Waasila Jassat são publicados pelo Instituto Nacional de Doenças Transmissíveis de África do Sul na internet numa plataforma de acesso público, discriminando em cada semana (e diariamente no caso da semana em curso) quantos novos doentes são admitidos nos hospitais (e não o total de internados a cada momento como acontece por exemplo no boletim diário da DGS), mas também por faixas etária, província e até por hospital, público ou privado.

Selecionando a província de Gauteng, onde se têm registado mais de 80% dos casos de covid-19 no país nos últimos dias e onde foi sinalizada a variante Omicron, a par do Botsuana, é possível ver que na semana passada foram admitidos nos hospitais um total de 884 doentes, entre eles 114 crianças dos 0 aos nove anos. No final de setembro, quando a província vivia uma fase descendente da epidemia, davam entrada nos hospitais cerca de 2 mil novos doentes por semana e 101 crianças, pelo que no total da província as crianças passaram de 5% no fim de setembro para 13% agora, com os números de Tsuane a contribuir para tal. 

Para o aumento dos internamentos em faixas etárias mais novas chamou também a atenção esta segunda-feira Salim Abdool Karim, infecciologista com trabalho na área do VIH na África do Sul. Sublinhando que as vacinas parecem manter a eficácia na prevenção de sintomas graves, Abdool Karim disse que a expectativa é que os novos casos diários diagnosticados no país subam dos atuais 2 mil para 10 mil nas próximas semanas, notando também o aumento de admissões hospitalares nas crianças mais pequenas e que não estão vacinadas.

Peritos portugueses atentos Ao i, Óscar Felgueiras, matemático especialista em epidemiologia que faz a monitorização da covid-19 e integra uma das equipas de aconselhamento ao Governo, sublinha que é cedo para avaliar completamente a situação na África do Sul. “O principal que se pode tentar fazer nesta altura perante este tipo de ameaça é ganhar tempo, o que significa reforçar a vacinação e controlar fronteiras”, diz, sublinhando que o controlo de fronteiras com teste é uma medida adequada e que, numa fase inicial, os casos importados justificam maior atenção “pois funcionam de sementes para aquilo que teremos em poucas semanas”.

Manuel Carmo Gomes concorda também com a abordagem atual, salientando que não havendo ainda dados fechados sobre maior transmissibilidade ou patogenicidade da Omicron, a experiência sul-africana vai dando alguma informação, mesmo quando parece contraditória. 

Refere-se por exemplo às afirmações de uma das primeiras médicas a detetar um cluster de casos diferentes em Gauteng, Angelique Coetzee, e que sublinhou que os sintomas são até aqui extremamente ligeiros, mas diferentes do padrão da delta em que a covid-19 se assemelha a uma constipação. “Falou mais de sintomas de fadiga, mais ligeiros, que foram detetados em pessoas que estavam previamente vacinadas. Isto por um lado tem uma boa notícia, é que as vacinas parecem manter algum grau de proteção contra doença mais grave”. Já uma outra declaração chegou de um médico intensivista de um hospital de Soweto, zona menos desenvolvida de Gauteng, que relatou estar a receber doentes mais novos, na casa dos 20 aos 30, com doença moderada a severa mas alguns a precisar de cuidados intensivos. A maioria (65%) não estão vacinados ou só tem uma dose, descreveu à imprensa Rudo Mathivha, preocupado com o aumento de casos nesta faixa etária numa altura em que apenas 27% dos sul-africanos dos 18 aos 34 anos tem pelo menos uma dose da vacina. “Mais uma vez, estamos a falar de uma zona com menor cobertura vacinal, mas sabemos que mesmo sem vacinas havia relativamente poucos casos de jovens em cuidados intensivos, pelo que é uma questão a acompanhar”, nota Carmo Gomes. Nas próximas semanas, a questão será também perceber se a realidade desta variante na África do Sul é a mesma na Europa, havendo cá um fator protetor (maior cobertura vacinal) mas também um fator de risco acrescido. “Precisamos de tempo para ver o que acontece numa Europa muito mais vacinada mas também muito mais envelhecida”, afirma o investigador. Na África do Sul, apenas 6% da população tem mais de 65 anos, o que contrasta com mais de 22% em Portugal, dos países mais envelhecidos da Europa. “Estamos num momento em que tem de haver preocupação e vigilância reforçada, mas não pânico. Não temos de sofrer por antecipação”.