Barrigas de aluguer

 De facto – quem, senão por interesse, se disporá a tais trabalhos e incómodos, a tais violências sobre o próprio corpo?

Por António Manuel de Paula Saraiva, arquiteto paisagista

Lisboa, 4 da tarde, Centro Comercial Colombo. Perante o espanto e indignação dos presentes um homem agarra uma mulher violentamente por um braço e começa a socá-la e esbofeteá-la. Um segurança, alertado pelo alarido, tenta intervir, mas teme a reação do homem, cada vez mais excitado. Avisada a Polícia, que estava por perto, logo um agente dá voz de prisão ao homem: Está preso!

Mas o energúmeno responde calmamente: Porquê sr. Guarda? Nem sequer tem vergonha! – retorquiu o guarda – a agredir esta mulher!

Aí a mulher intervém em defesa de quem a espancava: Sr. Guarda, não há problema! Foi um contrato. Com papel assinado no notário e tudo! Ele pagou-me 200 euros à cabeça, e no fim vai-me pagar mais 200. Se o sr. Guarda o levar eu é que fico a perder esses 200 euros!

E o homem reforça: Eu gosto de bater em mulheres, mas só bato nas que não se importam. E claro que lhes dou dinheiro em troca, e quero um papel assinado para me defender! E voltando-se para os presentes, que ouviam embasbacados: Será que não posso fazer o que quiser com o meu dinheiro?

Esta cena, entre o trágico e o incrível, como é evidente, nunca teve lugar. Mas quisemos com ela começar o nosso artigo para explicar que nem todo o possível deve ser possível. Que há comportamentos, situações, que a sociedade não pode aceitar. Na nossa história, quem visse o homem a bater na mulher devia intervir de forma a parar a agressão, o polícia não podia deixar de prender o agressor, e um juiz não podia deixar de o condenar – houvesse ou não contrato. Se, por hipótese, um sem abrigo viesse ter comigo e dissesse: “Se me der duas refeições quentes por dia e me deixar dormir na sua garagem eu faço-me seu escravo, faço o que você quiser” eu não deveria aceitar- nem a lei alguma vez tal consentiria. Isto porque a dignidade humana é um valor absoluto, que não pode ser comercializável (aliás referido expressamente no artigo 1 da nossa Constituição).

Mas, ao arrepio de tais valores, assistimos no nosso país ao triste espetáculo de um Parlamento, no dia da sua dissolução, votar uma lei (que aliás tinha sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal de Justiça), a da “gestação de substituição”, mais vulgarmente conhecida por “lei das barrigas de aluguer”. Uma lei, como o nome indica, que permite “alugar” o útero de uma mulher como se tratasse de um apartamento, ou de um automóvel. O “aluguer” compra o incómodo de transportar no seu seio o novo ser durante nove meses, compra eventuais danos ao corpo causados pela gestação (estrias na barriga, descalcificações, retenção de líquidos ), compra cansaços e enjoos, compra as dores de parto, compra a incomodidade e a frustração que resulta de todo o corpo, num reboliço de hormonas, se preparar fisiologicamente para ser mãe – aumento dos seios, etc. – para depois ter de sofrer para, artificialmente, serem anuladas todas essas espontâneas e naturais transformações. Isto sem falar da violência psicológica que significa o quebrar de laços entre a mãe e o novo ser, um ser de quem ela já sentiu os pequenos movimentos no interior do seu corpo….

Na Índia existiram “fábricas” onde dezenas de mulheres se preparavam para dar à luz, em ambiente controlado por médicos para que o bebé nascesse saudável – mas em 2016 o governo indiano limitou fortemente essa prática, limitando as “barrigas de aluguer” aos familiares.

Por oposição em Portugal os nossos partidos “progressistas” – pelos vistos atrasados pelo menos 5 anos em relação à Índia – vêm legislar de forma a tornar possível as “barrigas de aluguer”! Embora, para camuflar o facto de terem aprovado uma lei que permite a comercialização do mais íntimo e sagrado da mulher – o poder gerar um novo ser – os legisladores tenham ressalvado que a “mãe de aluguer” não poderá receber compensações pecuniárias, e que se pode recusar a entregar a criança desde que o faça nos 20 dias após o parto (1).

Ressalvas ingénuas – ou hipócritas. De facto – quem, senão por interesse, se disporá a tais trabalhos e incómodos, a tais violências sobre o próprio corpo? E todos sabemos que uma simples proibição legal não será suficiente para impedir “recompensas” – além de entregas em numerário que são indetectáveis, há muitas outras formas de “recompensar” certos “serviços”: promessas de emprego para o próprio ou familiares, oferta de bens, vendas abaixo do preço de custo, etc.. Por pura amizade desinteressada poderão servir de barrigas de aluguer, quando muito, os familiares mais directos, e ainda assim…. Por esse motivo a lei no Brasil e na Índia apenas possibilita que sirvam de barrigas de aluguer esses familiares.

Mas os deputados portugueses que aprovaram a lei – e que certamente conheciam a lei brasileira ou da Índia – não entenderam necessário tal limitação – tornando-se assim corresponsáveis em futuros atropelos.

Mas, dir-se-á: então e os casais que não podem ter filhos? Nós somos parte da Natureza vivemos nela, vivemos dela, e a Natureza tem limites. Eu não posso voltar a ter vinte anos, as árvores não podem voar, no Inverno faz frio. E se no Inverno não tenho o poder de mudar o tempo, posso ao menos acender a lareira – e esses casais poderão fazer tratamentos contra a infertilidade, ou recorrer à adopção (2).

Ou será que queremos que um dia na Escola dois miúdos perguntem um ao outro: quem é o teu Pai? E o outro responda: Uma agulha! E a tua mãe? Não sei, eu nunca tive mãe.

………..

(1)Como é fácil de compreender esta ressalva prestar-se-á a intermináveis batalhas jurídicas, especialmente se o pai biológico reclamar o novo ser.

(2)(2) O processo de adopção deveria ser revisto e agilizado, mas isso seria um assunto distinto do que estamos a discutir.