Dino D’Santiago. “Quando África deixar de estar na moda vamos saber que aquilo que fazemos é cultura real”

O quarto disco de Dino D’Santiago, Badiu, é um reflexo da vontade do cantor de criar um mundo melhor para o seu filho.

Badiu é o seu quarto disco e o sucessor de KRIOLA, lançado no ano passado. O que o motivou a criar este disco?
O Badiu surgiu como um impulso depois de ter sido pai. Senti uma necessidade de exteriorizar uma explosão de sentimento que contrastava com o que observava no mundo exterior e onde temia que o meu filho crescesse. Ele nasceu numa altura sensível, em plena pandemia, durante crises humanitárias no Iémen, no Afeganistão, na Venezuela, na Nigéria, nunca existiram tantas crianças a passarem fome, os atentados em França e Inglaterra, que, mesmo sendo acontecimentos minimais quando comparados com o que acontece diariamente em África ou na América Latina, uma vez que também somos europeus sentimos uma forte empatia com estes casos. Estas frustrações fizeram nascer as canções, que espero que deixem em aberto um legado de quem acredita que está a acontecer uma regeneração da humanidade com a geração do meu filho, Lucas. Os millenials são menos preconceituosos e mais inclusivos. Portanto, mesmo que sinta a catástrofe que está a acontecer no mundo, neste Badiu consigo olhar para a luz ao fundo do túnel e conceber que a esperança reside em cada criança que nasce no mundo. Não podia deixar este sentimento passar em branco e o Badiu é o reflexo disso.

Esse discurso faz-me lembrar aquele argumento negativista onde pessoas afirmam que não querem trazer filhos para o mundo para não ser mais uma pessoa a sofrer.
Acredito que devemos pensar precisamente no oposto. Se pensarmos na história da humanidade, somos apenas um pequeno grão de areia, mas houve sempre aqueles que pensaram nas gerações futuras e o meu receio é que, atualmente, são as crianças que pensam no seu futuro e não os adultos, que deviam pensar no mundo que querem deixar para essas crianças. 

Basta olhar para o exemplo da Greta Thunberg, as gerações mais jovens têm uma maior consciencialização do que está a acontecer ao mundo.
É uma geração que nos ensina muito. Pela primeira vez na história da humanidade, está-se a inverter quem é o professor e quem é o aluno. Precisamos de despertar, se não, daqui a cem anos, vão olhar para nós e pensar que fomos uma mancha, a geração que mais destruiu o planeta.

Falou da pandemia. Como foi conciliar este momento com a criação artística? 
Por mais incrível que pareça, senti-me muito mais produtivo. Passei muito tempo na estrada e ainda não tinha tido tempo para absorver tudo o que se estava a passar, nem para agradecer as coisas maravilhosas que me estavam a acontecer. Então, de uma forma trágica, houve uma paragem benéfica, para mim, que me trouxe um filho, um olhar diferente para a minha família e permitiu-me ter um olhar de dentro para o mundo lá fora de forma a encontrar uma solução para tudo o que estava a acontecer. O Kriola foi lançado durante o início do primeiro confinamento e foi um grande despertar para muitas famílias que conviveram com estas músicas, agora, o Badiu, apesar de surgir durante a pandemia, é fruto de um autoconfinamento voluntário. Estive com a minha equipa quatro semanas dentro de uma casa e estávamos todos sintonizados na mesma frequência: a da criação. Criámos material todos os dias, no final, surgiram 37 canções, mas acabámos por escolher apenas 12 músicas para contar a jornada do Badiu.

Pode explicar o que é o Badiu e a sua história?
Os Badiu foram as primeiras pessoas escravizadas que saíram da região da Gâmbia, Senegal e, posteriormente, da Guiné. Eles foram levados pelos portugueses para a Guiné, para a chamada Cidade Velha, chamada Ribeira Grande e foram os primeiros que conseguiram fugir para o interior de São Tiago depois de ataques piratas nesta zona que atingiram franceses, ingleses, turcos e holandeses. Apesar deste momento trágico, depois de bombardeamentos que conduziram ao incêndio da Cidade Velha, as pessoas que conseguiram fugir formaram uma nação Crioula no interior de São Tiago. No entanto, apesar da sua liberdade, ficaram excluídos da civilização que estava a ser trazida pelo Ocidente e foram excomungados, com o nome badiu a ganhar conotações negativas, associadas ao vadio. Dessa história de resiliência, este povo apropriou-se do nome badiu e tornou este um símbolo de resistência e de liberdade. Esta história mostra um lado que eu considero importante na humanidade, um olhar positivo mesmo face à tragédia. Quando trazemos uma criança ao mundo vamos ter uma preocupação enorme para que o mundo melhore, ficamos menos egoístas. Já não penso apenas no meu umbigo, quero que esta criança viva num mundo saudável. Isso faz com que naturalmente a nossa consciência coletiva amplie e o Badiu é o reflexo desta procura interior, é um desbravar da minha vulnerabilidade em questões físico-mentais e exponho isso tudo, mas sem o receio de sofrer danos colaterais. 

Quando é que decidiu que queria falar sobre o povo Badiu?
O funaná e o batuque eram géneros censurados pela igreja, representada pelos portugueses, e pela nobreza porque eram considerados estilos profanos e, literalmente, a música do diabo. Esta proibição existiu até ao final do Estado Novo, ou seja, foi um estilo musical que resistiu no interior de Cabo Verde, porque não era tocado na capital, a cidade da Praia. Achei irónico o facto de eu estar a transportar o funaná para Nova Iorque, Coreia do Sul, Polónia, Lisboa, claramente o epicentro de todas estas viagens, e perceber o quanto estas pessoas vibravam com estes ritmos. Agora, quando já deu para perceber que esta música nada tem a ver com o Diabo, mas sim com uma manifestação corporal que faz parte da cultura africana, achei que estava na hora de desconstruir toda esta história. Contei in medias res e, agora que estamos todos no mesmo barco, vamos contar como as coisas aconteceram antigamente para valorizar o nosso passado. Assim, quando África deixar de estar na moda, não nos vamos esquecer que aqueles ritmos tinham uma importância cultural fortíssima e como ajudou todos aqueles povos a sobreviver a séculos de opressão e exclusão social.

É engraçado falar dessa desconstrução porque o instrumental do disco acaba por revelar esse lado. Não existe tanto a sensação de festa e celebração de Kriola ou Mondu Nôbu, há um minimalismo e uma certa melancolia.
Tens essa sensação porque este é um disco muito intenso. É o meu disco mais intimista no que diz respeito à exploração de tudo aquilo que não tinha conseguido manifestar por receio de vir de um credo que é a Igreja Católica e a sensação de vivermos em constante pecado e ter um receio de explorar a nossa conversa com Deus quase de igual para igual. A nossa mente remete Deus para uma certa distância quando este devia ser uma entidade muito mais próxima, então, tentei a aproximação concreta deste diálogo. Por exemplo, a música Voei de Mim, fala sobre o êxodo que fazemos da nossa própria essência para sermos o reflexo daquilo que as pessoas esperam de nós. Às vezes passamos uma vida inteira a ser uma personagem secundária da nossa própria vida. Existem certas expectativas para os nossos comportamentos e como devemos lidar com eles. Este é o reflexo de vivermos numa sociedade onde muitas vezes somos papagaios que repetem aquilo que nos disseram. Em vez de sermos nós, procuramos mil e uma formas de ser diferentes reproduzindo outras pessoas diferentes e esquecemos que a diferença está na nossa impressão digital, não existe mais nenhuma igual. Então, o que é que essa impressão digital diz sobre ti? O que é que queres deixar no planeta? Este disco aborda esta questão, não é um disco realmente festivo. Não é como o Kriola, que era a celebração da Nação Crioula, um sonho que se torna real nos meus concertos, onde se pode ver como estamos todos misturados, felizes e a conviver, mas este disco não é assim. Podemos estar todos felizes e a conviver, mas o mundo lá fora está tão cinzento. Mesmo responsabilizando os outros por aquilo que está a acontecer, temos que perceber que começa em cada um de nós a mudança. Cada abstenção é um crime contra a humanidade e contra todas as pessoas que perderam a vida para que tivéssemos direito ao voto. E nós, por pura rebeldia, decidimos que não vamos votar e isso pode ser observado na taxa assustadora de abstenção.

Às vezes nem é por rebeldia, é por pura preguiça ou alienamento.
Há pessoas que simplesmente não querem saber. Mesmo existindo um descontentamento, este tem que ser demonstrado. Eu vou marcar presença e vou mostrar que não estou satisfeito, nem que deixes um manifesto escrito, o importante é não ficarmos em casa a assistirmos ao mundo a cair. E é esta não-conformidade que existe neste disco. A música Txuputi fala sobre isso, é uma metáfora de olhar para um país que tem dois partidos, como acontece na maior parte dos países, que depois se vão repartindo em outros partidos até chegarmos a duas extremidades bastante diferentes, é um Game of Thrones autêntico. Existem demasiadas decisões de pessoas sentadas, privilegiadas, que não estão no seu dia a dia dentro dos bairros e nas ruas para perceber que a miséria é gigante e que nós podemos ser sempre um agente da mudança. É por todas estas razões que se sente esta tensão em Badiu, mesmo sendo subconsciente. 

Toda esta questão sobre o som de Badiu faz-me lembrar o disco que saiu no ano passado da Nídia, Não Fales Nela Que a Mentes. Quando a entrevistei ela explicou que abandonou o som mais pulsante da eletrónica, por algo mais introspetivo, já não era bem música de discoteca, era mais música para ouvir de fones.
Este disco também é assim. Quer levar o seu ouvinte à reflexão. 

Mas também o quer convidar a ir a um concerto.
Sim, sim (risos). Há temas que tem tanta intensidade que eu consigo imaginar como um sucesso ao vivo, como a Voei de Mim, a Esquinas com o Slow J, a Txuputi, o Pé Ratxadu ou a Lokura, são tudo canções que me vejo a tocar ao vivo e a serem quase tão contagiantes como uma canção com 170 BPM. A intensidade que está depositada nestas músicas é tão grande que não nos deixa ser parciais, tens que te mexer de alguma maneira.

Tendo em conta que este disco tem um som tão distinto dos seus trabalhos anteriores, a gravação foi muito diferente do que estava habituado?
Esta foi a prova máxima que a inspiração não é como costumavam rezar, onde esperamos pelo momento em que nos surja uma ideia. Utiliza-se esse mito da vida do artista e comemos como se fosse uma verdade absoluta, mas a importância de preparar terreno para quando a inspiração chegar e o compromisso diário para com a arte é tão ou mais importante da arte final. Porque é que se a tua profissão é ser músico existem dias em que não produzes nada? Mesmo sendo o teu próprio patrão, estás a ser um mau empregado da tua própria empresa. Não é que sejas obrigado a escrever uma canção todos os dias, mas tens que te dedicar a escrever qualquer coisa, a pensar em ideias, a conversar com amigos, é preciso investir na música. O processo de criação de Badiu, de certa forma, foi semelhante ao que aconteceu no Kriola, onde me isolei em Londres e fiz esse disco. O Mundu Nôbo já foi uma experiência mais morosa, foi preciso uma viagem a Cabo Verde, foram dois anos de maturação até encontrarmos o nosso som. No Badiu eu já sabia que ia ser incrível porque já tinha tido a experiência de colaborar apenas com um produtor. Portanto, juntando músicos, técnicos de Los Angeles, Berlim, Áustria, Londres e Nigéria que nos foram enviando instrumentais, só podia acontecer algo incrível. Os músicos que foram para essa casa trabalhar connosco estavam com algumas dúvidas, não acreditavam que íamos conseguir fazer músicas todos os dias, mas no final acabámos com 37 canções. No fundo fizemos três discos, fruto da oportunidade que demos ao momento de criação, um momento sagrado. Juntas criativos na mesma sala durante quatro semanas… qual é a equação que não estamos a ver? Só pode acontecer criação.

E o que é que vai acontecer a todas essas músicas?
Só a jornada do Badiu é que pode responder a esta questão (risos). Podem existir temas que vou querer resgatar ao vivo, mas todas elas fazem parte do universo deste disco. Uma das canções dei à Lura, para utilizar no seu novo disco. A Cláudia Semedo já está com a ideia de criar um filme baseado numa das músicas, a ONU quer utilizar uma música como hino do movimento contra a violência feminina. O Badiu pode ainda nem ter sido publicado, mas já está a ter um impacto e um reflexo importante. 

Falava que uma das maiores inspirações deste álbum era o facto de agora ser pai, é por isso que o disco abre com um monólogo sobre a mulher e sobre ser mãe.
Claramente. A primeira faixa, Badia, é uma confissão e um pedido de perdão. Alguém que afirma reconhecer todo o seu esforço, mas sabe que é um privilegiado e que, dê o mundo as voltas que der, vai estar sempre numa posição de privilegiado. Aliás, ele próprio é privilegiado por poder cantar uma canção sobre este tema. Se fosse uma mulher a fazer a mesma canção, o mundo ia dizer que ela era uma revoltada. Esse discurso foi uma desconstrução desse ângulo, a nossa sociedade é fruto desse machismo constante. E a mulher só começa a ter discurso e assunto na narrativa porque se perderam muitos homens na Segunda Guerra Mundial e elas tiveram que se fazer à vida porque se não os seus filhos não comiam. Mas, mesmo fazendo-se à vida e com todas as capacidades que já reconhecíamos, nunca lhes foi dado o real direito e ainda hoje, em plano séc. XXI, continuam a lutar por um lugar de fala que chega a ser ridículo. Esta canção é sobre esta confissão, do outro lado da cortina não está um par de ouvidos, mas sim uma mulher que ainda não conhece a sua sentença. A música surge muito nesse fruto e é escrita na condição de culpado, que quer mudar esta realidade.

A primeira vez que ouvi essa música pensei logo que fosse um tributo a todas as mulheres que o ajudaram ao longo da sua vida.
Isto é um tributo, sim, mas seria uma hipocrisia se eu dissesse que é apenas um tributo como se eu não fizesse também parte da população que ajudou a criar o estigma da mulher. É um assumir que eu faço parte da equação, mas não a quero eternizar.

Já falou da crise pandémica e de outros problemas no mundo, mas algo que marcou estes últimos dois anos foi a revitalização dos movimentos Black Lives Matter com protestos contra o racismo. Quão presente é que essa luta esteve na criação deste disco?
Está presente na música Esquinas. É a canção que representa esse lugar invisível, quer nas mulheres invisíveis que acordam às quatro da manhã para irem trabalhar e cuidar das suas famílias, quer aquelas que vão trabalhar todos os dias na construção civil e que ajudaram a edificar este país, mas que continuam a ser enganadas pelos seus patrões. É sobre pessoas que continuam a ser acusadas de roubarem trabalho aos portugueses quando realmente estão a fazer os trabalhos que os portugueses não querem fazer, porque nos ensinaram que devemos ser senhores doutores ou arquitetos e a maior parte dessas pessoas que se formaram estão desempregadas, dependem dos seus pais ou trabalham em sítios onde não queriam estar, como nos McDonalds. Existe também o caso das pessoas que tiveram de emigrar e, em países como a França, a Alemanha, a Suíça ou os Estados Unidos, estão a vingar trabalhando na construção civil, que é um trabalho muito bem pago nesses países porque são profissões valorizadas, enquanto nós as consideramos menores. Todos esses lugares têm apenas uma cor, uma tez. Pode ter vários sotaques, mas a tez tem sempre tendência a fazer um degrade para a escuridão. Este disco, naturalmente tocou em todos estes temas. O Kriola já era um manifesto pelo que aconteceu ao Bruno Candé e ao Luís Giovani Rodrigues, e neste disco os espíritos deles mantém-se. 

Imagino também que esta batalha seja algo que está presente no seu dia a dia.
Sim, mas, mais uma vez, atualmente, posso falar de uma posição confortável e privilegiada, até é um privilégio que muitas vezes joga contra mim. A minha estrutura, graças a Deus, está atenta a vários sinais, porque, para todos os assuntos em que seja preciso falar de inclusão, racismo ou outras questões de exclusão social chamam o Dino. Tornei-me quase amigável, alguém que não vai ferir suscetibilidades. Sei que vou ferir muito menos porque sei que a minha mente, desde que nasci até aos meus 37 anos, foi naturalmente cem porcento caucasiana e fruto de uma mentalidade eurocentrista. Mas, hoje, não consigo mais viver nesse estado de inocência, já não consigo mentir a mim próprio. Tenho que ser um agente ativo para que aconteça a mudança. E às vezes, ser o agente ativo é sair de cena porque há outras pessoas que estudaram mais estes temas, que se formaram, que tiveram de resistir e provar o seu valor academicamente para que depois, mesmo assim, não sejam aceites no mercado de trabalho. Mas que exaustivamente, todos os dias, estudaram um sistema que é castrador e segregador, e tem os argumentos certos para falar sobre estes assuntos, tal como eu tenho quando escrevo as minhas músicas. Portanto, deixem-me só atuar no campo da música. Quando me chamarem, chamem-me para falar sobre o que eu escrevo e aí vou estar a contribuir muito mais  

Mas como uma figura importante da comunidade afro-portuguesa sente que é importante ser disruptivo?
Todas as pessoas têm que ter um papel ativo e serem disruptivos sem receios. Eu sei o que estou a dizer nas minhas músicas e quando for defender a tese da minha canção vou poder falar sobre o meu ponto de vista sobre aquela mesma ação, que talvez o Mamadou Ba, a Grada Kilomba, o Kalaf ou a Cristina Roldão falariam com as suas propriedades nas suas valências, é mais nesse sentido. Posso ser disruptivo, mas não estou aqui para ser o único a meter o dedo na ferida e muitas vezes sinto que sou o único porque existe um facilitismo por parte da imprensa e dos meios de comunicação em aceitarem-me. Mas se calhar muitas pessoas só me ouviram a mim e, às vezes, parece que sou o único nesta causa. Assim, sinto que não estou a contribuir para a causa maior e eu sinto necessidade disso. Por exemplo, na minha música, uso os ritmos tradicionais de Cabo Verde e que me são naturais, mas utilizei ferramenta dos Estados Unidos, como o bom gosto no que diz respeito à inovação sonora, para encontrar o meu próprio som. Era impossível ser igual porque eles não têm os nossos ritmos. Mas se fosse o único a fazê-lo, depois de ter tomado esta iniciativa, de que me adiantaria? Daqui a cinquenta anos só iriam falar do Dino D’Santiago. Hoje não é assim, já falam do Julinho KSD, do Vado MKA, a Mayra Andrade, e de todos os artistas que escreviam sobre kizomba que decidiram abraçar a consciencialização e a importância de estarmos todos unidos numa narrativa de construção da cultura negra. Agora estes artistas começam a trabalhar outros ritmos, que não seja apenas a kizomba com temas sobre amores, desamores e banais como os engates da noite, já trazem outro discurso, já sensibilizam para outras causas. Tendo isto em conta, sinto que o meu esforço não tem sido em vão porque tem havido uma reprodução consciente de que estamos aqui todos para o mesmo e queremos todos rumar num único sentido para que a nossa cultura se afirme finalmente e que não seja refém da moda. Amanhã vem outra moda e as pessoas esquecem-se de África. Mas se criarmos os nossos próprios canais e pontos de comunicação vai acontecer o mesmo que aconteceu com a Jamaica, onde o reggae ou o dancehall nunca morreram porque continuam a ter ouvintes em todo o mundo. Os latinos já o estão a fazer e sinto que está na nossa hora. 

Ontem comecei a ver o documentário McCartney 3, 2, 1, e ele estava a falar de como uma viagem a África onde viu o Fela Kuti foi essencial para a criação do disco Band on the Run. É engraçado ver como antes a música africana chegava ao Ocidente através de uma destilação para estas bandas e agora é trazida diretamente por músicos africanos.
Falaste numa pessoa muito importante para aquilo que estamos a viver. Tudo o que está a acontecer agora é uma revolução Fela Kuti. As cadências rítmicas não norte-americanas são trazidas pelo Fela Kuti e toda a sua geração, como o Youssou N’Dour, Salif Keïta, ritmos africanos que, mais tarde, foram reproduzidos para a eletrónica. Depois, passado tantos anos, vemos que o reggaeton deu o seu boom, assim como o funk brasileiro, e agora é a vez do continente africano conseguir com que países muito poderosos, como a Nigéria, um produtor de entretenimento gigante, aliado com a diáspora que está em Inglaterra, consiga criar um mercado gigante. E levaram o Gana, o Senegal, a África do Sul. Sinto que há uma grande onda de evolução e este mercado pode tornar-se gigante, mas precisamos de algo como a organização dos sul-coreanos, que conseguiram criar a sua própria indústria de entretenimento, que já está a inspirar os norte-americanos. Sempre pensei que fosse o Japão a fazer este boom, mas a Coreia do Sul é vanguardista em vários movimentos, desde o hardcore ao k-pop, quer na estética que adotam. E é isso que sinto que falta em África, esse bom gosto, saber trabalhar esteticamente o nosso afrofuturismo, oferecer essa elegância e os espetáculos refletirem o poder e importância que este nosso som tem. Ainda não conseguimos chegar aí. 

Mas também são dois países com identidades e estéticas diferentes, suponho que uma imagem mais crua representa melhor África.
Enganas-te. Pensa que a Coreia do Sul também é um país segregado e, no meio da pressão da Coreia do Norte e China, tinham tudo em desfavor no que diz respeito à sua evolução como país. Também há o exemplo do Japão, que sai diretamente da idade média para o futurismo. África tem os recursos naturais, humanos e a matéria-prima para ter um futuro animador, mas não temos uma boa gestão. Fruto, claramente, dos impérios colonialistas europeus, pela forma monstruosa como se separaram do continente africano e como os países francófonos continuam a ter de pagar mensalmente milhões de euro à França somente à conta de acordos, um novo tipo de escravatura. Tudo isto não permite que África cresça, mas não me digam que criativamente ela não pode evoluir num sentido melhor. Pode, tem é que haver um foco gigantesco da indústria do entretenimento africana em realmente criar um monopólio de criativos. Porque é que a Beyoncé consegue pegar em réplicas do que era feito no Gana e faz os seus filmes ou videoclipes usando criativos africanos, como o realizador e músico Blitz the Ambassador do Gana, e a Angèlique Kidjo, do Benim, que também trabalha com a FKA Twigs? Ou seja, dois africanos criativos gigantescos que a indústria dos EUA está a aproveitar. Porque é que não criamos nós em África? Há recursos para tal. Aquela velha ideia de world music que o material com pó é que é fixe e que lhe confere aquele coolness do roots… o que eu vejo é muito descuido. Os cabos não podem ter pó porque se vão estragar. Isto foi uma desculpa que utilizámos para não ir mais para a frente e sinto que podemos ir mais à frente.

Do seu ponto de vista, qual seria a melhor solução? 
Gostava de ver um regressar genuíno, perceber que existe uma pérola gigantesca que não pode viver órfã de todos os criativos que estão a dar cartas a nível mundial. É preciso haver uma mudança de consciência da diáspora. É fazer aquilo que o Akon está a fazer: pegou nos recursos norte-americanos, juntou-se com todas as nações africanas e agora leva eletricidade para África. Ficou multimilionário a fazer o bem, a mudar as consciências e a mudar cidades. É fazer o que o Samuel Eto’o está a fazer, criar escolas em vários países africanos, usar o seu dinheiro para contribuir com as Nações Unidas para ajudar resgatar pessoas que hoje em dia são escravizadas e traficadas no norte de África. É usar essa consciencialização, que, por exemplo, o desporto atualmente oferece, para ajudar uma diáspora da qual fazemos parte. Temos que tentar não ter o nariz sempre virado para a América do Norte, temos que olhar para África. É a única coisa que falta mudar.

Tem algum projeto em andamento?
Ainda está tudo muito a título pessoal. Depois de ter estado novamente em Cabo Verde, percebi que tenho que ter uma academia em Santiago, tenho que ter um festival, tenho que levar criativos porque toda a Europa, Estados Unidos e Rússia lutam por aquele pedaço de território. Tenho legitimidade para chegar lá e criar o que estamos a construir em Lisboa. Ali a população não é envelhecida, não cria resistência, estão à espera que somente caia uma gota de água para fazer milagres.

É uma pessoa positiva, mas, com todos cruéis acontecimentos que marcaram os últimos anos, do assassinato do George Floyd às agressões a Claúdia Simões, agora a libertação de Kyle Rittenhouse, não há dias em que lhe apetece atirar a toalha ao chão?
Ainda bem que falaste do caso do autocarro: quando disse ao Kalaf que imaginava uma senhora do outro lado da cortina, na primeira música do disco, disse que imaginava a Sra. Claúdia, com a confissão a surgir para ela. Na altura, a imagem foi tão forte e marcante que fiquei completamente arrepiado. Mas vou-te ser franco. Todas estas injustiças só me aumentam a responsabilidade e a luta interna para me manter positivo. É como se fosse para o ginásio e estivessem sempre a meter pesos, apesar de ainda não estar completamente preparado para carregar tanto. Cada vez que acontecem essas merdas vou sentindo resistências, mas acredito na minha força para carregar aquela carga. Sinto que não posso desistir desse foco que é o que me mantém vivo e é o que me faz escrever. Também tenho os meus momentos de raiva e explosão, finalmente aceitei trabalhar a nível de terapia e saúde mental com pessoas que compreendem a minha situação, e agora não me permito mais querer desbravar tudo sozinho sem recorrer à medicina, seja ela física ou mental, ou recorrer a pensadores que me acrescentam algo que me permita caminhar com mais fé e crença.

E está a sentir-se melhor?
Muito melhor, estou mais consciente das minhas emoções. Antes, quando sentia coisas que me deixavam numa vibração mais negativa, guardava-as e tentava transformá-las em algo positivo. Durante muito tempo consegui mudar o comportamento das minhas células e oferecer-lhes uma nova identidade, onde, automaticamente, quase de uma forma bipolar, depois de receber uma notícia dura que transportava raiva, lembrava-me de algo positivo, por exemplo, o nascimento do meu filho. Era algo exaustivo, especialmente quando tens imensas pessoas a falarem comigo, por isso, é que cada vez mais quero é silêncio, não quero vozes na minha cabeça, quero ouvir a minha voz para poder tomar as minhas decisões com base na minha fé e nas minhas crenças. Estar a procurar ajuda e ter essa humildade pessoal, de perceber que não consegues resolver todos esses problemas, mas que parte de ti o momento da transformação, tem sido a minha salvação. Agora consigo dormir em paz. Antes não conseguia, quando acordava o meu cérebro já estava a mil com todas as coisas que tinha para dizer. Hoje em dia falo muito comigo, acarinho tanto aquela criança que está dentro de mim, aquele puto que cresceu numa realidade dura, mas que quis achar que foi bonita para se defender e sobreviver e, hoje, como adulto, abraço-me, aceito as minhas limitações e quando estou em palco é a minha desforra. É um momento de liberdade, é um grito do Ipiranga, é o momento em que sou literalmente um canal em que muitas vezes saio do palco e nem me lembro daquilo que disse. É uma responsabilidade comunicar para tantas pessoas, por isso, é preciso dizer algo. 

A terapia ajudou-o criativamente?
Muito. É como veres castelos e muros construídos à volta da tua pessoa. Às vezes pensava que era pecador por pensar fora da caixa, mas, hoje em dia, vejo-me fora da caixa e sinto-me um criador. Apesar de todas as minhas limitações, sabendo que tenho muito para aprender e muito para dar, estou muito consciente do momento presente em que estou, e fico feliz por saber que tenho limitações que posso conseguir ultrapassar, sempre que me foco.

Sente que os portugueses hoje abraçam melhor a sua música?
Sim. Ao longo de quatro anos criei três álbuns, um EP e um álbum de remixes, mas, ao longo do tempo, quando ia recebendo prémios e distinções, tudo chegava com um certo atraso, porque já estava um disco à frente. Como cresci com uma educação verdadeiramente católica e castradora, que não me permitia sentir orgulho, porque orgulho é pecado, recebia os meus prémios e automaticamente já sabia a quem é que os ia dar. Isto era um mecanismo para camuflar a minha limitação. A verdade é que eu não achava que era merecedor e cada vez que recebia um prémio sentia que estava a roubar outra pessoa que merecia mais que eu. Mas depois de trabalhar com uma psicóloga e de resgatar o meu automerecimento, quando olhei para o Badiu, depois de já ter lançado o Mundu Nôbo e o Kriola, senti uma trilogia a fechar-se e o sentimento de missão cumprida. Agora, daqui para a frente, só vai ser o reflexo de um homem feliz por ter um filho como o Lucas e que está a reaprender a viver, como um observador do meu filho, sem ser castrador e que ele não se torne um reflexo dos meus medos. Quero ter a coragem dele, o sim e o não verdadeiro e honesto. Quero tentar ajudar em tudo aquilo que posso, mas acima de tudo quero ser observador. Se ficasse por aqui sentia-me satisfeito por ter deixado um legado honesto e um cumprir de ciclo ao qual me propus que era trazer uma narrativa e uma valorização aos ritmos que fazem parte da nossa cultura afroportuguesa, portuguesa ou brasileira, para mim é tudo nação Crioula. Sinto que ela existe, que está consciente de si e que daqui só pode seguir para a frente, vai haver mais Nennys, mais Julinhos, mais Rita Vians. Viemos para ficar e vamos continuar a crescer nessa narrativa. Quando deixarmos de estar na moda vamos saber que aquilo que fazemos é cultura real.

Sente que graças ao seu trabalho as pessoas também estão mais abertas e interessadas em aprender crioulo?
Às vezes vou no metro e vejo pessoas brancas e novas a falarem fluentemente crioulo muito melhor do que eu, são coisas que me deixam arrepiado. Às vezes apetece-me chorar por pensar em toda a resistência que colocámos ao aprender esta língua e à insistência que tínhamos em aprender inglês ou francês… É bonito ver este orgulho, por exemplo, quando passamos na Linha de Sintra e vemos a cara do Julinho a cobrir a carruagem de um autocarro, ver a Nenny no Tiny Desk ou como cara da H&M. É ótimo saber que a minha sobrinha e o meu filho vão crescer a ver representação, já não vão querer ser uma Barbie loira, já não vão querer ter um penteado como o da Frozen, como a minha Eva quis um dia. Já se vão poder ver representados e isso vai permitir uma maior inclusão e que as mentes se expandam, é algo bonito e que está a acontecer.

Venho de Estarreja e sinto que nestes locais não existe um contacto tão próximo com esta língua. Valia a pena, por exemplo, existir uma introdução ao criolo e à sua cultura nas escolas?
Acho que há várias coisas interessantes que se podem fazer, por exemplo, os jornais podiam começar a publicar artigos escritos em crioulo, não existe imprensa escrita em crioulo. Não pode acontecer como em Angola, onde as línguas morreram ou estão quase extintas. Acho que essa curiosidade de introduzir o crioulo na nossa cultura é um gesto nobre. Houve um projeto na margem Sul onde o Governo português apostou numa escola onde metade de uma turma tinha aulas em crioulo e português e a outra metade só tinha em português. Isto tinha como objetivo trabalhar a inclusão, mas também perceber se era real o mito de as crianças falarem crioulo em casa dificultar a aprendizagem de português na escola. A conclusão do estudo revelou que as crianças que falavam as duas línguas se desenvolviam mais rapidamente. A turma que fez parte da experiência acabou por ir a Cabo Verde e experienciar tudo isto que falámos em primeira mão. Este projeto apenas durou dois anos, mas deu logo cartas. O facto de ensinar mais línguas às crianças faz com que as suas mentes trabalhem mais rápido e que processem mais a criatividade do que uma pessoa que só se restringe a um foco e a um canal. Isto, para mim, é a prova máxima que fazia tanto sentido incluir o crioulo num plano de estudo como o inglês ou o espanhol. Mas é preciso começar também em Cabo Verde e na Guiné, introduzir esta língua nas suas escolas, onde só é falada no recreio. Nesse caso já não meto a responsabilidade em Portugal. A única responsabilidade que meto em Portugal é que o método de ensino é aquele estabelecido pelo ministério da Educação, então, temos escolas em África que não estudam a história do continente. Como é que se podem sentir africanos se não estudam a sua própria história? Estudam a história da Europa, na perspetiva dos colonizadores. Ainda temos um longo caminho pela frente.