Fernando Pereira: “A minha voz? Está melhor do que nunca!”

O Senhor 100.000 Vozes anda desaparecido das televisões onde nos habituámos a vê-lo. Porquê? Nem ele próprio sabe, embora garanta que tem continuado a apresentar projetos. Pelo caminho não fica quieto. Está-lhe no sangue da família ser rebelde, ser do contra. E manter-se na luta, Bem formado, bem informado, inconformado.

Às vezes grandes conversas não levam a lado algum e transformam-se em labirintos. Por outras, correm com a serenidade das águas dos rios e têm uma foz à sua espera. Sentámo-nos à mesa, frente a frente, à uma hora da tarde. Levantámo-nos cinco horas ou seis depois, é difícil de dizer. Se Gilbert Bécaud era o Monsieur 100.000 Volts, Fernando Pereira é o Senhor 100.000 Vozes. E, no entanto, parece desaparecido. Porquê? Falaremos sobre isso mais adiante. Depois de ele nos explicar, por exemplo, a sua infância cheia de música. No momento exato em que deixa de ser o Fernando e passa a ser o filho do Zé e da Zulmira…

A família do meu pai é de Mértola. O meu avô tocava um instrumento chamado Sousafone…

Abre-se, por momentos, o parêntesis para que o jornalista faça, também ele, o exercício de memória e tente recordar-se do grande marchista americano, John Philip de Sousa, inventor desse instrumento meio estranho. 

Era uma peça esquisita, tipo tuba, mas que se enrolava em redor do corpo. Ele ficava para aí com mais três metros de diâmetro. Republicano de sangue. Todos os dias 5 de Outubro, bem cedo, ia ao alto do castelo largar um foguete para festejar a data. Depois, nesse tempo do fascismo onde coube a minha infância, recebia no dia seguinte a visita da polícia para que pagasse uma multa. Certa vez, o 5 de Outubro calhou a um domingo. No sábado o meu pai foi à esquadra, educadamente, pagar a multa com antecedência – «Não quero que os senhores sejam obrigados a deslocar-se a minha casa no domingo, dia de descanso. Ficam as contas feitas, muito obrigado pela atenção».

O pai, sr. José, virá de vez em quando à conversa, como se fosse uma daquelas personagens inevitáveis que, volta e meia, atravessam a boca de cena sem precisarem de proferir uma palavra. Homem do contra. Farol de estrutura mental, exemplo de seriedade intelectual que baliza ainda a personalidade do Fernando. A mãe, adoradora de música, tocando piano, o garoto cada vez mais fascinado pelos sons do violino de Mendelssohn, da construção musical de Mahler, primeiras tentativas de ir imitando o que ouvia…

A minha infância está cheia de música. O meu pai só ouvia música clássica, canções de intervenção ou cante alentejano. Não te esqueças que nós, no Alentejo, temos uma relação diferente com a música que não existe em mais lugar nenhum do país: cantamos. Ouvimos e cantamos. Juntamo-nos e cantamos. O meu pai trabalhava na Emissora Nacional, naquilo que é agora a Antena 2. O chefe dele era o grande Thomaz Alcaide, cantor lírico enorme, outro alentejano, de Estremoz, que ainda andou comigo ao colo. Em meu redor havia vozes e mais vozes. Pelo lado do meu pai. o Zeca, o Fanhais, o Adriano; pelo lado da minha mãe, mais dada ao fado, a Simone, a Maria de Lurdes Resende, o Luís Goes. Não, não fui parar à música por acaso. Vivi na música. E dentro de um princípio de vida que nos mandava ser bem formados, informados e inconformados. Ouvi muitas coisas que uma criança desse tempo não devia ter ouvido. Assisti a muitas coisa a que não devia assistir. O sr. Armando, lá em Algés, que recebia livros proibidos pelo regime e tratava de os distribuir pelo amigos. O comício a que fui com o meu pai antes das eleições de 1973, com ele a avisar-me: «Sem mim não podes vir a estas coisas!». As canções da luta. Sei que és amigo do Manuel Alegre, não és?

E de repente canta, afinado como um rouxinol:  

Aquela clara madrugada que/Viu lágrimas correrem no teu rosto/E alegre se fez triste como se/Chovesse de repente em pleno…

Diria o Alexandre O’Neill: foi como se entrasse um pássaro que levantou o céu. Pouco importou o barulho das mesas em redor quando ele, de novo, voltou a cantar:

Se sabeis novas de meu amigo/novas dizei-me que desespero/por meu amigo que longe espera/tecendo os dias tecendo a esperança…

Por mim ficava simplesmente a ouvi-lo. Aquela voz suave, forrada a belbutina, que tantas vezes ouvi transformar-se num falsete de irmãos Gibbs ou num tenor de acompanhar Carreras. O nosso amigo Pedro, do Solar dos Presuntos, faz-nos sempre sentir em casa. Em casa estamos. Vem-me à memória o seu pai, ti’ Evaristo, que nos meus tempos de A Bola, quando acompanhava a selecção nacional para o estrangeiro e ficava pela noite fora a encher aquelas enormes páginas broadsheet, nos matava a fome com um bacalhau que lhe saía das mãos já de madrugada… Podia fazer como o Baptista Bastos e perguntar ao Fernando onde estava ele no 25 de Abril. Dá-se o caso de eu saber onde ele estava…

Mais importante do que saber onde estava no 25 de Abril é saber onde cada um estava antes do 25 de Abril…

Ou, pelo menos, o que estavam a fazer antes do 25 de Abril. Mas o facto de eu saber um pouco dessa história não evita que queira ouvi-la da sua boca e escrevê-la…

Vesti o fato. Nesse tempo, com os meus 15 anos, só tinha um fato. Um fato que servia para todas as cerimónias. Mas dessa vez vesti o fato porque ia encontrar-me com uma rapariga nova que me interessava, iríamos ao cinema, ali na Promotora, talvez fosse a casa dos pais dela, precisava de causar boa impressão. Só há uma única oportunidade para criar uma boa primeira impressão. Era quinta-feira, metido bem cedo no comboio em Algés – vivia ali na Rua dos Combatentes, tinha aulas no liceu Marquês de Pombal –, encontro um amigo que me diz – «Venâncio! Não há aulas. Está a acontecer uma revolução!». Venâncio é um dos meus nomes do meio, a malta tratava-me assim. E eu a pensar que o tipo estava maluco, mas qual revolução?! Mas, enfim, ele insistia, pronto, vamos lá então ver isso da revolução, fomos para a Praça do Comércio, assistimos ao longe aos movimentos das tropas do Salgueiro Maia, deixámo-nos arrastar pela multidão excitada, seguimos para a Rua da Conceição. Entretanto já se nos tinham juntado outros colegas. Havia uma enorme confusão. Uns tropas, dependurados nos chaimites a pedirem-nos: «Ei, rapaziada, arranjem-nos aí umas sandes. Estamos há horas sem comer». E nós a contar os tostões para ir buscar-lhes umas buchas ali à Casa das Limonadas, na Boa Hora.

De repente, interrompe-se…

Há uma imagem extraordinária que nunca me sairá da cabeça: uma velha com um saco de plástico na mão, a chorar e a dizer – «Graças a Deus! Graças a Deus!» Aquilo vinha-lhe do coração. Com Deus ao barulho não seria certamente uma marxista-leninista. E um rapaz dos seus 18 anos, com uma grande bandeira de Portugal gritando: «Viva a Liberdade!!!».

Vamos lá aos tiros…

Chamo-lhe o Périplo dos Teatros. Subimos até ao Largo da Trindade e começámos a ver que a multidão se ia dispersando em correntes. Resolvemos seguir a que descia em direção ao Chiado. Entro na Antónimo Maria Cardoso no meio de um grupo e começo a ouvir tiros. Que raio. Até aí só tinha ouvido tiros na televisão. Procurei esconder-me num vão de porta quando reparei que já tinha buracos no casaco. Palavra de honra que, antes de sentir qualquer dor, pensei: «Ai a minha mãe! Vai dar-me cabo da cabeça por causa do fato!». Uma bala entrou-me pelo braço, cá em cima, e veio alojar-se no punho. Daí os teatros. Saio do Teatro da Trindade, sou apanhado junto ao São Luiz e escapo-me pela Travessa dos Teatros para junto do largo de São Carlos. Daí carregaram-me para São José onde me extraíram a bala e, pouco depois, preparava-me para regressar à rua quando um tipo de voz grossa se virou para outro e ordenou: «Arrecada-me aí este tipo que eu já venho!». Havia vários na mesma situação do que eu. Ficámos na mão da DGS e carregaram-nos para o Governo Civil. O meu pai, que já andava à minha procura desde manhã, apareceu entretanto e começou a discutir com o gajo que exibia maior autoridade. Insistia que eu era menor e ele tinha a responsabilidade de me acompanhar. Às tantas, perante a recusa total, chegou mesmo a perguntar-lhe: «Se eu lhe der um murro, leva-me também preso?» Não o fez e ainda bem. A verdade é que já estávamos no início da noite do dia 25 de Abril quando fomos interrogados no Governo Civil por elementos da PIDE, cuja sede na António Maria Cardoso já fora ocupada, e deram-nos uma boas cargas de porrada. Finalmente, a tropa chegou e fomos postos na rua. Um funcionário veio ter comigo dizendo: «Você é o Fernando Pereira? Tenho aqui uma indicação do seu pai para se meter já num táxi a pagar no destino». Quando cheguei a Algés, tinha as vizinhas todas à minha espera, como se fosse herói de alguma coisa. Já toda a gente sabia da minha história. O meu pai furioso: «Se não tivesses o braço deitado a baixo, era eu que te punha assim». A minha mãe preocupada: «Deixa lá o fato, filho, depois arranja-se». A rapariga à minha espera para a sessão de cinema. Até hoje. Nunca mais a vi.

O homem e as personagens

O tempo passa. O Fernando fala e eu escuto e tiro notas. Não posso ser absolutamente fiel às suas palavras porque, a cada história que conta, transforma-se nas personagens que descreve. As vozes soltam-se, diferentes, conforme os acontecimentos, os protagonistas. De repente vejo-me num quadro quase esquizofrénico de estar a entrevistar uma lista de personagens ao mesmo tempo. Aqui não há lugar para a mosca do aborrecimento de que falava Lorca. 

E agora eu quero que me fale desse fenómeno chamado garganta que faz dele um artista único…

Sempre cantei e sempre cantei afinado. Já era afinado quando, muito pequeno, imitava o som dos pássaros ou os sons de violino que saíam do gira-discos do meu pai. O violino é um instrumento fantástico para se imitar. Vivi no centro do cante alentejano.Os americanos gostam de dizer que cada um é de algum lugar. Eu sou do lugar da música.

Mas há de ter havido um momento em que descobriste que eras absolutamente diferente. Não foi à toa que a tua voz foi estudada por médicos e especialistas de vários países e considerada única entre milhões…

Claro. Como quase todos os rapazes da minha idade, tínhamos as bandas de garagem e tocávamos os nossos covers. Eu tive sempre a preocupação de ser muito fiel aos cantores que protagonizávamos. Acho que o primeiro que consegui imitar perfeitamente foi o Ian Gillan dos Deep Purple. Seguiram-se outros. E  percebi que era aquilo que queria para a vida.

Mas estudavas?

Sim. Para engenheiro técnico. Mas andava farto de viver à conta das mesadas. De querer sair à noite com os amigos ou com uma namorada e ter de ir cravar 50 paus ao meu pai. Por isso disse-lhe que ia continuar a estudar à noite e que iria trabalhar durante o dia. Tornei-me auxiliar de despachante.

Coisa que ao tempo dava dinheiro.

Mas eu já estava por demais envolvido no mundo musical. Era um boémio. Corria os bares…

E o momento de começares a atuar?

No Tasco do Marciano. Íamos lá ouvir o Castro, que era um craque. A partir de certa hora ele desafiava sempre a alguém a cantar qualquer coisa. Uma noite, já eu estava um bocado tocado, quando um dos que ia comigo resolveu gritar: «Aqui o Venâncio canta bem. Deixa-o cantar». Fui contrariado. Ele pergunta-me: «Queres cantar o quê?» E eu, atrapalhado: «Eh pá! Sei lá. Pode ser Bee Gees. O Massachussets…» E lá comecei…

Mais uma vez a nossa parte da sala ganha som, desta vez num falsetto…

Feel I’m goin’ back to Massachusetts/Something’s telling me I must go home/And the lights all went out in Massachusetts/The day I left her standing on her own… Fez sucesso. E o Castro: «Agora o que queres cantar a seguir?» E eu. «Vamos a Beatles». Seguiu-se a Edith Piaf. Ficámos naquilo que tempos, eu a imitar as vozes. Ofereceu-me 700 paus para fazer um espetáculo todas as sextas-feiras. A casa enchia. Faziam-se filas cá fora. Apareciam caras conhecidas de várias atividades. Apareceu a imprensa, sobretudo a rádio, com o Júlio Montenegro e o Raul Fernandes, passámos a ter nome, pediram-me para fazer também o espetáculo à terça-feira à noite, tive de deixar o trabalho de despachante e as aulas, a música já tomara conta do meu tempo todo. Eu e o Castro formávamos uma dupla e depois fomos abrir o Berro. Vivia de noite.

Nunca há entrevistas iguais. Esta começa a parecer-se com um jogo de xadrez no qual ambos os contendores adiam o momento do xeque-mate pelo simples prazer de ir movendo as pedras. A mesa, já vazia, apenas com dois copos frente a frente, transforma-se no tabuleiro.

Que fizeste para te ires aperfeiçoando?

Senti necessidade de estudar canto. Tive aulas com a professora Cristina de Castro que me ajudou a perceber como utilizar devidamente o meu instrumento. Ainda hoje lhe devo a capacidade de esticar notas, algo que antes não era capaz. Percebi que não era apenas um cantor. Era um ator ao mesmo tempo. Estava em palco a protagonizar outros cantores e, para isso, estudei mímica com o professor japonês Yass Hakoshima, da escola de Marcel Marceau. Eu olhava para a Simone de Oliveira a cantar e vinham-me lágrimas aos olhos. Ela é uma artista.Não simplesmente uma cantora. Ainda hoje, cada gesto, cada ruga que se franze, conta-nos uma história. Uma senhora absolutamente extraordinária. Eu precisava de saber atuar. Acho que foi isso que acompanhou, na altura, o meu sucesso, no Bariedades, noParque Mayer, com o apoio do insubstituível Raul Solnado, um dos seres humanos mais doces que conheci. Sou cantor há quase 40 anos, mas com o tempo tornei-me também o produtor e o criador dos meus próprios espetáculos. Trabalhei com gente de todas as áreas, desde a coreografia à moda, desde a segurança à logística. Preparei-me para tudo. E acho que foi por isso que incomodei muita gente. Porque, ao mesmo tempo, recusei-me sempre a entrar em capelinhas…

Era uma vez na América
Não se ouve o tique-taque de nenhum relógio, as conversas em volta foram desaparecendo transportadas pelos seus donos, como cachorros obedientes, pelas escadas que conduzem à porta da rua. Diligentes, os empregados preparam a sessão prandial da noite. Ainda há movimentos por fazer no tabuleiro do nosso diálogo.

Este é um assunto que trago na bagagem para discutir contigo, mas vamos por partes. Antes de te fecharem muitas portas em Portugal abriram-se-te as portas da América.

Tenho de o agradecer ao Jorge Passarinho e ao Luís Pires. O Jorge proporcionou-me a primeira visita aos Estados Unidos, a convite da TAP, e o Luís andou com uma cassete de um espetáculo meu a bater de porta em porta. Até que certa vez me telefonou e disse: «Bem, tens de cá vir!»

Se, de súbito, a conversa nos conduz para o lado de lá do Atlântico, a pouco e pouco, tão camaleonicamente como o Leonard Zelig de Woody Allen, o Fernando reaparece na minha frente no papel de um produtor americano pouco dado a aturar portuguesices…

O Luís mostrara-lhe uma cassete com a minha versão do We Are the World, na qual imito as vozes todas, e o gajo não esteve pelos ajustes: «Hey fuck, this is not possible. It’s a fucking playback. No one in the world can do that. Portuguese, you say? Don’t joke on me. Not even an american was capable of doing such a thing!» O assunto buliu-me com o brio. O meu brio de profissional e de português. «Quem é esse gajo?», perguntei. «É o Ron Owens», respondeu o Luís. Então diz-lhe que vou aí, faço um espetáculo pro bono, pago as despesas mas ele tem de lá estar. Tem de ver ao vivo o que ele não acredita que sou capaz de fazer. Tratámos do espetáculo e, uns dias depois, recebo novo telefonema do Luís: «Fernando, tenho boas notícias. Esgotou! Acho que temos de fazer um segundo espetáculo». Por mim tudo ok. Só queria ter o tal de Ron Owens à minha frente para lhe mostrar como era. Foi algo de sensacional.

E o Ron?

Veio falar comigo depois. E confessou: «Fernando, I didn’t believe what I saw. You’re incredible. But I need to say that: I’m not the manager you need. You are to big for me!».

Não há dúvidas que engoliu o que disse. O mercado abriu-se?

É preciso dizer que já em 1981 tinha feito um espetáculo em Toronto, no Canadá, no Dia de Portugal, no Dellwood Park, para mais de 70 mil pessoas. E que, logo a seguir, repeti o espetáculo por duas vezes, sempre com mais de 40 mil pessoas por dia. Mas a vez que estive sob escrutínio de mais gente ao mesmo tempo foi quando me apresentei no programa doJô Soares. Antes de ser apresentado, perguntei a uma das produtoras: «Quanta gente calcula que vá assistir ao programa?» E ela, muito delicodoce: «Bem cara, não sei bem não, mais nesses casos temo sempri um número em redó dos 75 à 80 milhões di pessoas. Dependi um pouco se estão transmitindo algum jogo di futchibó noutros canais…»

Estamos em 1993: és um caso raro nos Estados Unidos, por seres diferente de tudo, e um caso raríssimo em Portugal por haver muito poucos artistas («Qual poucos? Nehum!», penso para com os meus botões) capazes de manterem espetáculos com tal regularidade e notoriedade.

Sim. Entre 1993 e 1997 fiz cerca de 120 espetáculos por toda a parte dos Estados Unidos, de Nova Iorque a Las Vegas. A minha vida era um voo constante entre a América e Portugal, mas era lá que definitivamente podia ganhar a minha vida e cumprir o sonho de poder conhecer gente como a Liza Minnelli, o Julio Iglesias ou o Al Jarreau, um dos ídolos da minha vida. Depois recebi o convite para fazer espetáculos em Atlantic City, no Taj Mahal Trump Casino. Disseram-me claramente: «Hey man, we love your show, we can offer you a fee to work here, but it was better for all if we open our place to you and you produce you show and get away with the ticketing. What do you say?» Porra! Fui para o quarto do meu hotel, em Nova Iorque, matutar naquilo. Tinha ali mais de 7 mil lugares à disposição na sala de espetáculos. Claro que não podia avançar com preços de 250 ou 300 dólares por bilhete, como acontecia com a Diana Ross, oElton John ou a Tina Turner. Tinha de me ficar pelos 40, 45 dólares. Foi então que me surgiu a ideia de tirar proveito dos mais de 15 mil metros quadrados que fazem parte do complexo. Propus-lhes a organização de um Portuguese Festival a decorrer nos mesmo dias em que estivesse lá a cantar.Com ajuda do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do ICEP, e da TAP, onde tive sempre uma enorme aceitação, montámos uma tenda onde estariam expostos todos os comerciantes e produtores portugueses interessados em apresentar o seu material, abrimos balcões de comida portuguesa, um palco mais pequeno onde diversos artistas fossem atuando ao longo do dia, terminando com o meu show que teve como convidados o Carlos doCarmo, o Rui Veloso, a Maria da Fé, a Nucha e o Pedro Abrunhosa a quem os americanos não queriam conceder o visto porque tinha criticado fortemente o Cavaco Silva e estava numa lista de perigosos agitadores. Tive de pedir ao próprio Mário Soares, na altura Presidente da República, para interceder por ele. O acontecimento foi fantástico. Estiveram presentes artistas plásticos numa mostra particular, como oCargaleiro e com a Maluda, por exemplo; tivemos estilistas como o João Rolo ou o José Carlos; tivemos desportistas como a Rosa Mota, tivemos o embaixador de Portugal nos Estados Unidos a cortar a fita da inauguração. É, na verdade, algo que sinto orgulho de ter posto em marcha.
Ficaste rico?

Nem por brincadeira. No final de tudo aquilo, entre os espaços que me colocaram à disposição e as receitas de bilheteira, tive um lucro de 3000 euros. Serviu para um belo jantar no restaurante de um amigo meu em Newark para mim e para a minha equipa.

Mas acabaste por nunca te instalares nos Estados Unidos.

Não fui capaz. Toda aquela agitação marcou muito a minha vida. Iniciei um processo de separação com a mãe dos meus filhos, estava preocupado em ser um pai presente, pronto para eles, tal como me ensinaram na minha família. Houve um altura que, já eu tinha um ramo da empresa em Nova Iorque, com um sócio local, que ele me disse. «Fernando, you have to take a move. If you want to be a great artist here, you have to live here!». Foi aí que percebi que estava na hora de regressar.
Só no Trump Taj Mahal realizaste o teu espetáculo 78 vezes. É fantástico!

Sabes? Houve um momento que, de certa forma, me zanguei com a fama. Estava cansado. Também tinha a minha produtora aqui em Portugal, gente que me acompanhou sempre com muita dedicação e que eu não podia deixar para trás. Fechei o escritório de lá e instalei-me de vez. Trabalhei muito para os casinos em Portugal, da Póvoa ao Estoril, fui convidado pelo nosso amigo Mário Assis Ferreira para produzir espetáculos no Salão Preto e Prata, fiz o Lord of the Voices, completamente a solo, reinventei-me para criar a figura do António Variações no Variações, António, de tal ordem que até fiquei loiro de olhos azuis, fui fazendo aqui e ali programas para a televisão…

O regresso e o futuro

Agora sim, pergunto: a televisão dispensou-te de vez? Há muito que não te vemos por lá.

Confesso-te que faço a mim mesmo a mesma pergunta. Terei pisado os calos a alguém? De tempos a tempos apresento projetos como sempre fiz, e a resposta é sempre igual: não cabe agora na nossa programação, talvez daqui a mais dois ou três meses… e os dois ou três meses passam sem sequer uma resposta. Cheguei a ter um programa acertado com a RTP que, estranhamente, nunca avançou nem teve feedback. Discuti-o mais tarde com o Rangel, abrindo-se a possibilidade de o fazer na SIC, mas a direção de espetáculos da RTP veio recordar-me o compromisso que nos ligava até final do ano, compromisso que eu acabei por cumprir sem que o programa avançasse. Enfim… Senti-me triste. Vítima de um logro. Às vezes sento-me a ver coisas que eu próprio já fiz e, sem vaidade, muito melhor, e continuo sem perceber porque não há, nesse campo, espaço para mim. Devo ter deixado alguém verdadeiramente aborrecido. Vá lá saber-se quem…

Que grandes momentos destacas na tua carreira?

Pfff… Tantos e tão bons. Ter atuado na URSS, na minha primeira digressão ao estrangeiro, para milhares de pessoas e para a televisão nacional, acompanhado pela Orquestra da Rádio Televisão de Moscovo; ter feito o meu primeiro réveillon no Casino Estoril, juntamente com Amália e Fafá de Belém, os três ao vivo no mesmo palco; ter recebido o meu primeiro disco de platina das mãos do próprio Presidente da República Mário Soares; ter sido estudado por médicos e especialistas da voz num congresso científico e poder atuar depois no mesmo palco com José Carreras ou Teresa Berganza; ter sido o primeiro artista português a atuar nos grandes casinos americanos de Las Vegas e Atlantic City; ter tido a oportunidade de estar à conversa com aquele que considero o «protagonista da maior revolução de afetos do nosso tempo» – o Papa Francisco.
De muitas outras já falámos antes. Que andas a preparar de novo?

Questiono-me. Sei cantar, sim, mas há por aí milhões de artistas que cantam. E bem. Também acho que sou um cantor e bom, mas tenho mais do que isso. Sou um criativo. Até sou humorista e acho que consigo ter graça nos meus espetáculos. Consigo meter poesia e dizê-la por entre canções, já fiz sessões desse género, com Vinicius de Moraes ou Fernando Pessoa. Imitador: eis outra das minhas vertentes. Mas, sinceramente, acho que faço tudo isso e gosto do que faço e fico contente com o que faço. Quando era garoto, o Castro disse-me logo: «Ó miúdo, tu cantas muito bem, tens muito jeito para isso. Mas a tua arte não é essa. A tua arte é outra coisa». Por isso, com sinceridade, os meus espetáculos são inimitáveis. Nunca encontrei igual em qualquer parte do mundo. E claro que continuo a fazê-los. Agora sem projeção, ainda recentemente fui à América fazer um para os trabalhadores e clientes de uma grande empresa, sem palco, mas sempre totalmente profissionais. Há dois anos, antes da pandemia, convidaram-me para apresentar um show em Santander. Ora que raio! Mas quem é que me conhece em Santander?! Fui e estavam à minha espera dez mil pessoas. A organização tinha passado a semana anterior a passar spots meus na televisão. A malta ficou cheia de curiosidade para me ver ao vivo.

E a tua voz? Como está?

Ah. A minha voz, esse grande instrumento, está melhor do que nunca!

Palavra?

Completamente. Agradeço ao divino e à minha genética. Canto hoje muito melhor do que há 15 ou 20 anos. Faço tudo melhor, atinjo notas que não atingia, aguento momentos como não aguentava. Agora, claro, não sei até quando. 

40 anos de carreira…

Estou a preparar uma série de espetáculos, de eventos, para comemorar a data. Quero que se prolonguem por 2002 e 2023. Olhando para a frente e não para trás. Reinventando-me e criando algo de novo. Sobretudo em Portugal. Portugal é a minha família. Será um aniversário em família.

Saímos para a Lisboa que anoitece. Atravessamos a Av. da Liberdade, já enfeitada para o Natal, vamos ainda conversando como podíamos ter continuado a fazê-lo na mesa recatada do Solar dos Presuntos. Há quem diga que Casablanca, de Michael Curtiz, tem o melhor final da história do cinema. Sinceramente também não me custa terminar da mesma forma. «I think this is the beginning of a beautiful friendship». Faz sentido…