Um infinito Waterloo

Napoleão, o grande estratega de batalhas inesquecíveis era um jogador de xadrez medíocre que não hesitava em fazer batota

A intrincada estratégia militar de Napoleão Bonaparte não cabia nas 64 casas de um tabuleiro de xadrez. E, no entanto, ele esforçava-se. Se havia algo de profundamente intrínseco na sua alma de corso era a dificuldade absoluta de aceitar a derrota. Nascido em Ajaccio no dia 15 de agosto de 1789, descendente da nobreza italiana, foi batizado como Napoleone di Buanaparte e gabava-se desde garoto: «Eu sou da raça que funda os impérios!». Aos 9 anos já tinha atravessado o pedaço de Mediterrâneo que separava a Córsega do continente e estudava numa escola religiosa em Autun. Depois seguiu o seu destino e passou a ser um aluno atento na Escola de Estudos Militares de Brienne-le Chateâu. Foi aí que aprendeu os rudimentos de um jogo que o fascinava, disputado entre peças brancas e pretas num tabuleiro de 64 casas.

Quando chegou a Paris como jovem tenente, Napoleão, que entretanto afrancesara o seu nome italiano para Napoleon Bonaparte, tornou-se um frequentador entusiasta do Café de la Rotonde e do Café de la Regence, dois dos lugares da cidade onde os xadrezistas passavam as tardes debruçados sobre peões, bispos, cavalos e torres, reis e rainhas, ensaiando batalhas rijas durante horas a fio. E, à medida que, através das suas campanhas vitoriosas e meteóricas, sobretudo em Itália, o tenente Napoleão ia ganhando a fama indiscutível de um génio da sagacidade tática, ninguém punha em dúvida que seria capaz de a transportar para a realidade desse jogo que apura a inteligência. Como estavam enganados…

Claro que, com o tempo, cada vez havia mais gente disponível para esfregar as polainas daquele que viria a ser Imperador de França e conquistador de meia Europa. Não admira, portanto, que lhe tenham feito o frete de dar o seu nome a uma abertura, The Napoleon Opening, utilizada por Bonaparte num estranho jogo contra O Turco, uma máquina de jogar xadrez operada por um fulano meio alemão, meio austríaco, de nome Johann Baptist Allgaier, autor do primeiro livro em alemão sobre a teoria do xadrez – Neue Theoretisch-Praktische Anweisung zum Schachspiel. Há que dizer que a Abertura Napoleão era tão frágil que já fazia soar ao longe a Abertura Solene Para o Ano de 1812, ou 1812 Overture, de Tchaikovski, que ficaria como a mais brilhante composição comemorativa da queda do Grande Exército Francês às portas de Moscovo, uma devastação completa que reduziu uma força de 600 mil homens a pouco mais de 40 mil. Basicamente, Napoleão, com as brancas, avançava o peão para a casa 4 da fila do rei, esperava que o adversário respondesse de igual forma e, em seguida, lançava de imediato a rainha para a casa 3 do bispo do rei, num apoio meio enlouquecido ao peão que a deixava perigosamente exposta, tapando ao mesmo tempo a saída do cavalo do rei. A despeito deste movimento primário, The Napoleon Opening entrou para os livros de xadrez. E embora não se aconselhasse a aluno nenhum, serviu para inflar mais um pouco o ego de alguém que tinha ego para dar e vender.

Em defesa de Napoleão, se é que ele precisa disso, refira-se que o xadrez dessa altura estava muito longe do que é praticado nos dias que correm. Todos queriam dar espetáculo sobre o tabuleiro e preocupavam-se pouco com os movimentos defensivos, preferindo lançar-se numa carnificina de sacrifício de peças que avançava rapidamente para um caos total. Ao mesmo tempo, gente como François-André Danican Philidor, conhecido por O_Grande, definitivamente o melhor jogador do seu tempo, preocupavam-se em registar para a posteridade os jogos mais famosos, desenvolvendo teorias sobre os movimentos a que iam assistindo. Por seu lado, Napoleão, insistia nas suas cavalgadas, peça a peça, desbaratando perante adversários da sua igualha a fama de estratega inimitável.

O jornalista e escritor Jean-Claude Kauffmann, definiu desta forma o estilo napoleónico sobre o tabuleiro: «O grande planeador de Austerlitz e de Friedland, que considerava cada batalha como um jogo de xadrez, era um jogador pobre. Lançava as suas peças sobre as do adversário de forma completamente ingénua e era facilmente derrotado, algo que não o impedia de fazer batota». Pois… Napoleão tinha ódio à derrota. O seu caráter impaciente e explosivo podia entusiasmar os soldados que o seguiam até à morte, mas dificilmente encaixava num jogo no qual se exigia sangue frio e serenidade. Durante a sua permanência no Egito, a sua atividade como xadrezista aumentou, defrontando alguns mestres como Jean-Baptiste-Etienne Poussielgue e Amédée Jaubert. Na campanha da Polónia arranjou como adversário o Duque de Bassano, que escreveu sobre ele: «O Imperador não tem jeito para o xadrez. Desde início começa a perder peões e outras peças». Para Napoleão, as 64 casas eram um infinito Waterloo…