A história de G., o menino de seis anos agredido por colegas até sangrar

A frequentar o 1.º ano, G. foi agredido pelos colegas até os genitais sangrarem. Os pais já lhe compraram um smartwatch com um botão de SOS.

Há dois anos, Inês Quintela mudou-se com o companheiro e o filho para Torres Novas, cidade no distrito de Santarém. Depois de o menino ter passado pelo ensino pré-escolar privado, em Lisboa, iniciou a nova etapa, no Centro Escolar de Olaia e Paço, no Agrupamento de Escolas Gil Paes, de forma conturbada. “Como surgiu a pandemia, esteve mais connosco em casa do que na escola. Este ano, passou para o 1.º ano e começou o nosso problema”, começa por explicar ao i a mãe. A criança acabou por ser brutalmente agredida por colegas mais velhos, no recreio.

“O G. não é um miúdo fácil. É filho único, é muito mais mimado e acredito que não seja um santinho e faça disparates na escola. A questão é que ele vem todo marcado para casa. Numa semana, vai duas ou três vezes à escola, chora e grita durante a noite com muito medo”, revela a progenitora, acrescentando que o menino já se tinha queixado de que levava pontapés ou bolas de futebol lhe atingiam a cara. Face às marcas e ferimentos, levou-o ao hospital.

“Ele disse que foi só uma bola, mas, mais tarde, admitiu que lhe tinham atirado a bola de propósito à cara. Também tem o pescoço marcado com apertos. Antes desta última agressão, há mais de um mês, fui à escola. Disse à auxiliar que precisava de falar com a professora dele fosse a que hora fosse. Ela foi chamá-la e mandou-me logo entrar. E veio também com um dos meninos que o agrediu. Eu não falei mal ao menino, mas disse-lhe que não queremos que o G. vá para o hospital e expliquei-lhe que era melhor termos cuidado”, refere a mulher que, por motivos de saúde, não pode ter mais filhos e fez questão de frisar isso em conversa com o colega do filho. “Até lhe dei mais cinco e ele concordou comigo”.

Se a conversa com o agressor parecia ter corrido bem, já a resposta da professora não foi satisfatória. “A professora disse que não podiam fazer nada. Entretanto, há três semanas, comecei com febre e a vomitar e com tosse. Fiquei em casa, mas o meu marido trabalhou e o G. foi à escola. O teste à covid-19 veio negativo. Num dos dias, o G. foi agredido e ficou em casa dos meus pais”. Porém, entre as 16h e as 19h, o avô da criança informou a mãe de que o menino se queixava muito de dores nos genitais.

“Fui buscá-lo e despi-o para lhe dar banho. Quando olhei para os boxers, estavam com sangue. E perguntei-lhe o que tinha acontecido. Quando ele puxou a pele do pénis para trás, estava tudo em ferida. Agarrei nele, enfiei-o no carro e fomos imediatamente para o hospital”, conta, ainda com a voz trémula, acrescentando que a pediatra prescreveu medicação e disse que, por ela, avançava com uma queixa. “Comecei a chorar e a pedir-lhe para não fazer isso. E prometi que ia falar com a escola”.

A encarregada de educação cumpriu a promessa. O i teve acesso ao e-mail que endereçou à professora responsável pela turma em que a vítima está integrada bem como às imagens que anexou ao mesmo. “Boa noite. Queria reportar que o G. na quinta-feira, dia 18 de novembro, foi agredido na escola e teve de ir à urgência hospitalar pois tinha o pénis em sangue e muitas dores. Hoje, sexta-feira, está negro”, lê-se. A mãe adiantou que está ciente de “que o G. é um menino que gosta de brincar e por vezes também magoa os colegas”, no entanto, “ultimamente tem sofrido bastantes agressões que deixam marcas no corpo”, realçando que “esta situação está a mexer com o psicológico dele”.

“O hospital fez uma queixa e eu própria como mãe vi a situação complicar uma vez que a equipa médica estava bastante revoltada e com várias insinuações. Penso que todos queremos o melhor para os alunos, portanto, peço a vossa colaboração e que me ajudem a contornar esta situação”, redigiu, em desespero, não sabendo o que fazer para evitar que três meninos com idades compreendidas entre os 10 e os 12 anos parem de agredir o seu filho.

“Nunca lhes fez nada como aquilo que eles lhe fizeram!” “Na semana passada, o G. não foi à escola na sexta e, no sábado, a professora dele ligou-me. Ela mostrou as fotos que lhe enviei ao marido e disse que ele explicou que no tempo dele também acontecia. E eu respondi: ‘Pois, mas não ficávamos assim’. Na segunda, marquei uma reunião com o agrupamento de escolas de Torres Novas. Passaram-me à diretora e ela respondeu ‘Não sei de nada, a escola é tão pacífica, a coordenadora não nos fez chegar nenhuma informação. Vou falar com ela e depois digo-lhe alguma coisa’.

Todavia, volvidos 17 dias, mesmo tendo enviado o texto anteriormente mencionado com as fotografias do pénis de G. em anexo, Inês ainda não foi contactada e está extremamente preocupada porque o mesmo já voltou a chegar a casa “com marcas na cara, nos braços, nas pernas e levou pontapés”.

“O G. gosta muito da escola e eu no domingo disse-lhe que tinha de ir lá esta segunda-feira. Foi bem, mas estavam as crianças em causa e os pais delas à porta e ele ficou mais receoso. Quando ele entra sem ninguém, fico descansada. Quando não é o caso, fico reticente”, afirma, salientando que fez um investimento considerável num smartwatch que, entre outras funcionalidades, conta com a definição de perímetros de segurança para que se receba notificações se a criança sair dessa área e também um botão SOS que emite um alerta para os pais.

“Ficamos mais descansados assim. Ele não sabe ler nem escrever como deve ser, mas digo-lhe para me mandar um emoji com um smile se estiver bem e um a chorar se estiver mal. Temos quase um código para comunicarmos com ele. É impensável dar-lhe um telemóvel porque estaria a distraí-lo. Então, depois de muitas pesquisas, tomámos esta decisão”, observa, indicando que, na tarde desta terça-feira, G. informou-a de que uma auxiliar de ação educativa aconselhou-o a deixar o relógio em casa porque supostamente pode parti-lo ou ser roubado. E, consequentemente, a professora terá dito ao rapaz “que o melhor era ficar em casa”. Mas Inês assevera que o filho vai continuar protegido pelo equipamento inteligente.

Na semana passada, o pequeno G. não assistiu às aulas porque um estudante testou positivo para o novo coronavírus. “Acabamos por ensiná-lo melhor em casa: eu, o meu marido, os avós e a minha irmã, porque não existe um clima de medo”, declara a encarregada de educação, constatando que a própria docente de G. já lhes concedeu materiais de trabalho e concordou que a melhor opção a seguir, por enquanto, é o ensino à distância.

“Ele é muito protetor das meninas, mas é claro que brinca mais e tem arrufos com os rapazes. Só que nunca lhes faz nada como aquilo que eles lhe fizeram! Fui à GNR para fazer a formalização da queixa porque a Escola Segura está atribuída a esta força de segurança e não à PSP, e o agente que me recebeu foi espectacular”. Contudo, o i entrou em contacto com a GNR e o Agrupamento de Escolas Gil Paes, solicitando esclarecimentos, e, até à hora de fecho desta edição, somente obteve uma resposta por parte da força de segurança, que deixou claro que “não se pronuncia sobre casos em concreto para proteger a confidencialidade dos intervenientes”.

“Esta é mais uma tragédia que vamos tentar evitar. Quando crianças de seis anos são agredidas por outras com tamanha severidade já ultrapassámos todos os limites e alguma coisa tem de ser feita urgentemente”, esclarece a ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros, que recebeu a denúncia via mensagem privada no Instagram, adicionando que “a desresponsabilização das escolas, por um lado, e a falta de sensibilidade, por outro, fazem com que estes casos venham não só a repetir-se como a começar cada vez mais cedo”.

“Este caso chocou-me particularmente pelo testemunho da mãe que evidencia qualquer despreocupação por parte da comunidade escolar. E também porque é permitido que após isto ter sido feito ao seu filho, ainda tenha sido insultada no recinto escolar pelos pais dos dois dos três meninos”, argumenta, constatando que “é demasiado grave que as chamadas sobreviventes destes processos sejam sempre as prejudicadas”, na medida em que “existem uma mãe e uma criança que precisam de ajuda” e em vez disso “tapa-se o sol com a peneira e ainda se é injuriado pelos pais dos ditos agressores”.

“Se não forem as escolas a tratarem desta questão com os pais e os respectivos funcionários, para estarem atentos e ser uma questão a sublinhar, quem é que o fará?”, questiona. “Os pais que vão trabalhar todo o dia para sustentarem os seus filhos pensam que os deixam seguros nas escolas, creches e universidades”, recorda a jovem, que encara o bullying como um dos maiores flagelos da atualidade.

E os casos de Luís Santiago e “Ana”? No site oficial da Associação de Apoio à Vítima (APAV) é possível ler que “o bullying constitui um conjunto de comportamentos de agressão entre pares que: assume um padrão continuado, ocorrendo de forma repetida ao longo do tempo; pressupõe a existência de um desequilíbrio de poder entre vítima e agressor/a, o que coloca a vítima numa situação de maior fragilidade e vulnerabilidade e tem como objetivo causar mal-estar e sofrimento, humilhar e controlar a vítima”.

No Dia Mundial de Combate ao Bullying, celebrado a 20 de outubro, a GNR emitiu um comunicado através do qual evidenciou que, desde o dia 1 de janeiro, “no âmbito das suas competências em matéria de prevenção criminal, a Guarda tem desenvolvido uma série de ações de sensibilização relacionadas com o bullying, num total de 1008 no ano de 2021, para mais de 34113 mil crianças e jovens, dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos, num total de 422 estabelecimentos de ensino público e privado”. Entre o início do ano e o dia anteriormente referido, a força de segurança havia registado 64 crimes associados ao bullying.

Exatamente no mesmo dia, a PSP veiculou um texto semelhante, avançando que tem vindo a registar “uma tendência decrescente no número total como na gravidade das ocorrências criminais e não criminais reportadas em ambiente escolar” desde o ano letivo 2013/2014. “Essa tendência de decréscimo é mais acentuada nas participações por agressões físicas, com reflexo no acréscimo das injúrias e ameaças. Estas tendências, na ótica da PSP, parecem revelar que as vítimas e a comunidade reagem de forma mais precoce a este fenómeno, havendo menos situações que chegam ao ponto da agressão física sem conhecimento e intervenção das instituições”, continuava o comunicado, para concluir que cada vez menos este tipo de violência ocorre de forma dissimulada e/ou é desvalorizada.

Todavia, não é este o panorama ilustrado pelo caso de G. e nem tampouco pelos de Luís Santiago e “Ana”. O primeiro foi denunciado pelo Nascer do SOL no dia 11 de novembro. “A história está a mexer com muita gente, mas começou por ser um mero desabafo meu. E, como tive de ficar com ele no internamento, fui contando as coisas tal como foram acontecendo”, começou por explicar Marta Veloso, de 44 anos, que viu o filho de 12 anos chegar a casa, vindo do Agrupamento de Escolas Madeira Torres, em Torres Vedras, visivelmente perturbado e ferido.

Naquele momento, apesar de estar estável, Luís não podia ir à casa de banho nem levantar-se da cama “porque o ar pode explicar-se para o resto do corpo”. A mãe referia-se a um enfisema subcutâneo, uma acumulação de gases ou ar nos tecidos subcutâneos, produzindo protuberâncias, como nódulos móveis que geram sons crepitantes. “Tenho várias pessoas a dizer ‘Muda-o de escola’, mas nós moramos ao pé da mesma. É como na violência doméstica: porque é que as mulheres é que saem de casa?”, perguntou. O menino já teve alta do Hospital de Santa Maria mas, nas redes sociais, Marta continua a ser uma voz ativa no combate ao bullying.

Volvidos apenas três dias da divulgação do caso do menino, um semelhante surgiu na Escola Básica e Secundária de Gama Barros, no Cacém. Ana (nome fictício), a filha de 10 anos de Joana Rodrigues, frequenta o 5.º ano de escolaridade, tem consultas de Neuropsiquiatria e Psicologia e tenta lutar contra as dificuldades de aprendizagem. No entanto, a menina sofre de Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) “e, infelizmente, tem uma péssima autoestima, muita dificuldade em ser socialmente aceite no sentido em que faz tudo para agradar aos outros”, sendo “muito boazinha, um amor de miúda, só que, lá está, gozam com ela, dizem que é burra porque não acerta nas coisas, etc.”

A criança contou que esteve com a mão muito tempo na cara e ficou com o rosto marcado. Como Joana não acreditou na sua justificação, contactou a diretora de turma que depressa concordou que “a miúda é incapaz de estar sentada tanto tempo para ficar tão marcada”. O problema é que Ana teve mais duas aulas depois de a professora a ter visto alegadamente sem nenhuma marca no rosto.

“Depois de insistir muito, disse-me que tinha sido um colega. Desentenderam-se, ele empurrou-a e ela deu-lhe um estalo na cara. E há uma menina que testemunhou tudo, mas a minha filha não sabe o nome dela”, confessou, condenando a docente por não ter ido à procura desta aluna nem ter feito perguntas às professoras das disciplinas – Educação Musical e Inglês – que Ana teve naquele dia.

“Se as professoras viram que ela tinha a cara assim e não fizeram nada, isso para mim foi negligência. O miúdo que a agrediu é da turma dela. A diretora de turma falou com ele e negou: ‘Não fui eu, não lhe fiz nada’. Tem de se fazer alguma coisa, até porque a professora diz que falou com a Ana e ela desculpou o colega porque o empurrou para se defender. Mas isto é típico da minha filha”, concluiu.