Rogério Samora. O ator que deixa um pouco de si em toda a parte

Rogério Samora contava com mais de 40 anos de carreira e encontrava-se em coma desde o dia 20 de julho. Morreu ontem, aos 63 anos, deixando a sua marca através de uma caminhada artística de peso, tanto no cinema, como no teatro e na televisão. 

Fica a imagem do sorriso rasgado, das pequenas rugas que apareciam nos seus olhos quando gargalhava. Fica a ecoar a voz grave que, muitas vezes, fez companhia a quem, no final do dia, se sentava para o ver dentro dos ecrãs. “Toda a gente sabe, ou devia saber, ou se não sabe talvez ainda vá a tempo, que o Rogério Samora foi um grande ator. Foi o delfim da coisa, infante cujos herdeiros tardam em aparecer, muito porque não têm quem os filme, o que Samora teve”, começou por escrever o cinéfilo Miguel Faria Ferreira, no Facebook. A verdade é que o ator nunca foi só uma coisa e talvez seja por isso que marcou tantos. Principalmente aqueles que “conheceram” Abel, personagem à qual deu vida na altura em que conquistou notoriedade. Este foi o seu primeiro papel mais significativo no cinema e foi-lhe delegado por Fernando Lopes, em 1988, com quem continuou a trabalhar durante a sua carreira. Há também quem o recorde pela sua participação em O Delfim, do mesmo realizador, lançado em 2002. Uma adaptação do terceiro trabalho publicado por José Cardoso Pires sobre a decadência do regime derrubado pelo 25 de Abril. A obra, escrita no fim do salazarismo, em período de guerra colonial, retrata o universo da família Palma Bravo, na Gafeira – uma localidade provinciana. Muitos recordam o engenheiro Tomás Palma Bravo, um rico e poderoso senhor rural, casado com uma mulher estéril, que vê o seu mundo a desabar. “Recordamo-lo não só pelo bonito papel que interpretou para Fernando Lopes o mais do que famoso Tomás da Palma Bravo, Engenheiro ‘com a esposa pela mão (na mão?), lenço de seda ao pescoço’, mas (e especialmente) por todo o acompanhamento que fez à obra de Manoel de Oliveira”, sublinhou ainda o cinéfilo. 

Rogério Samora encontrava-se em coma desde 20 de julho, quando sofreu uma paragem cardiorrespiratória durante as gravações da novela da SIC, Amor Amor, na qual interpretava a figura de Cajó, contracenando com atores como Rita Blanco e Ricardo Pereira. Foi na altura transportado para o Hospital Amadora-Sintra, onde esteve internado na unidade de cuidados intensivos durante mais de dois meses. A 28 de setembro, foi transferido para a unidade de cuidados continuados integrados da Associação de Socorros da Freguesia da Encarnação (ASFE Saúde), no município de Mafra e encontrava-se em observações no hospital Amadora-Sintra desde segunda-feira, após um agravamento do estado de saúde, marcado por febre persistente. Rogério Samora iria também fazer parte da segunda temporada da produção, cujas gravações já arrancaram.

A versatilidade em forma de ator Nos últimos anos, o ator participou em várias produções da mesma estação, como Nazaré, Golpe de Sorte, Amor Maior, Poderosas, Mar Salgado ou Sol de Inverno, e também entrara nas primeiras telenovelas do canal, Ganância, em 2001, e Fúria de Viver, em 2002. Recentemente, também tinha participado na primeira temporada do programa A Máscara. No concurso da SIC, interpretou o Ananás.

Foi na RTP, em 1982, que se estreou em televisão, na telenovela Vila Faia, na qual contracenou com Rui de Carvalho, Glória de Matos, Mariana Rey Monteiro e Nicolau Breyner, tendo, logo no ano a seguir, ainda na televisão pública, participado no elenco de A Banqueira do Povo juntamente com Alexandra Lencastre, Eunice Muñoz, Raul Solnado, Diogo Infante e João Perry. Mas foi no teatro que iniciou o seu percurso, na antiga Casa da Comédia. 

Nascido no dia 28 de outubro de 1958, em Lisboa, o artista fez o curso de Teatro do Conservatório Nacional, e estreou-se no final da década de 1970, na peça A Paixão Segundo Pier Paolo Pasolini, de René Kalisky, levada a cena na Casa da Comédia, sob a direção de Filipe La Féria. O desempenho valeu-lhe o seu primeiro prémio, em 1981, o de Ator Revelação, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro. Também com La Féria integraria o elenco de espetáculos como A Marquesa de Sade de Mishima, A Ilha do Oriente de Mário Cláudio, ou Eva Perón de Copi. Depois de La Féria, Samora foi dirigido por outros encenadores, como Fernanda Lapa, Artur Ramos, Luís Miguel Cintra, Solveig Nordlund e Carlos Avilez.

No cinema conta com mais de meia centena de títulos, tendo-se estreado precisamente com um dos nomes mais aclamados do universo cinematográfico em Portugal, Manuel de Oliveira, em 1985, no filme O Sapato de Cetim. Dois anos depois, Samora já era o protagonista em Matar Saudades. No cinema trabalhou igualmente com realizadores como José Álvaro Morais, João Mário Grilo, João Botelho, Manuel Mozos, Miguel Gomes, António-Pedro Vasconcelos, Maria de Medeiros. 

Como protagonista ou secundário, entrou em mais de 50 curtas e longas-metragens, incluindo alguns filmes internacionais. Em 2019, o ator participou no filme Amadeo, de Vicente Alves do Ó, com estreia prevista para o ano passado, adiada, entretanto, devido à pandemia.
Além do teatro, televisão e cinema, Rogério Samora esteve também na primeira dobragem portuguesa de um filme de animação da Disney: foi a voz de Scar de O Rei Leão, clássico de 1994.

O homem atrás do ator Distinguido com vários prémios, incluindo Globos de Ouro, atribuídos pela SIC e pela revista Caras, Rogério Samora recebeu o Golfinho de Ouro de carreira, do Festival Internacional de Cinema Festróia, em Setúbal, tornando-se no quinto ator a receber o galardão, após Ruy de Carvalho, em 2003, Raul Solnado, em 2004, Joaquim de Almeida, em 2006 e Nicolau Breyner, em 2008. Na ocasião, completava 30 anos de carreira e a diretora do certame, Fernanda Silva, justificou a atribuição, recordando que Rogério Samora tinha “já interpretado mais de 150 personagens, entre filmes, séries e novelas”.

Dizia ter uma vida “muito louca e desgastante”, quando ficava atrapalhado, fazia perguntas, gostava de fotografia e, aquilo que publicava nas redes sociais transparecia bem a maneira como este observava o mundo. Os meses de confinamento mostraram-lhe uma outra maneira de viver a vida e que nada é garantido. Por isso este juntou-se à fotógrafa Margarida Dias para criarem um calendário solidário a favor da Rede de Emergência Alimentar. Samora expôs o próprio corpo, nu, num cenário inóspito, retratando a solidão, o abandono e a ausência de liberdade trazida pela pandemia da Covid-19.

O que fica na memória O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou a sua “morte precoce” através de uma nota publicada no ‘site’ da Presidência, considerando “uma grande perda” para o público português de “um dos mais carismáticos atores da sua geração” e que “deixou marca”.

Por sua vez, numa série de publicações na conta oficial do Ministério da Cultura no Twitter, Graça Fonseca salienta que, “numa carreira que o tornou uma presença permanente junto do público português, seja no teatro, no cinema ou na televisão, o talento de Rogério Samora fê-lo destacar-se como um dos mais completos atores da sua geração”. 

A atriz e sua amiga Rita Loureiro recordou, em entrevista à SIC Notícias, o seu coração e bondade “enormes”, lamentando a morte de um “grande amigo”. “Temos que celebrar a sorte que tivemos em ter um artista como ele neste país. Ele deu muito à sua arte, entregou-se sempre com alma e coração, com uma generosidade incrível.”

Também Carolina Loureiro escreveu no Instagram: “Faltam-me as palavras… Serás eterno no meu coração”, publicando uma fotografia com o ator. 

Já Rita Lello, escreve na sua página de Facebook que: “A frase ‘deixa um grande vazio’ é uma frase feita que gastamos muitas vezes por delicadeza com quem não a verdadeiramente merece. No caso do Rogério não há frase que defina melhor a sua partida”, defende a atriz. 

“É mesmo um vazio, um espaço que mais ninguém ocupa. O Rogério era um ator ótimo, um apaixonado pelo que fazia como poucos, um homem lindo que sabia ser feio quando a personagem lho pedia, sofisticado ou desleixado conforme a exigência, um ator completo, de uma versatilidade enorme, um colega generoso e frontal, um trabalhador incansável”, continua, sublinhando que “há papéis que mais ninguém em Portugal fará tão bem como o Rogério faria”. “Não há elenco em que não pense nele, não há autor em que não se encaixasse. Sentido de humor, loucura, coração não lhe faltavam. Que pena, Rogério. Que pena!”, lamentou a artista.