Biblioteca Pessoal: Biesty, um ilustrador bestial

Cercos, esquartejamentos e cerveja. Afinal, talvez estes não sejam livros para crianças.

P ercebi tarde – mas percebi! – o alto valor que pode ter um livro ilustrado. Seria tentador dizer que essa compreensão resultou da influência das leituras que faço aos meus filhos, mas na verdade creio que começou antes, quando encontrei em Paris, no mercado Georges-Brassens, Le Livre des Mots (O Livro das Palavras), de Richard Scarry. Foi um regresso à infância, uma vez que em pequeno tinha, do mesmo autor, O Meu Melhor Livro. Alguns recordar-se-ão dos adoráveis animais criados por este ilustre ilustrador norte-americano – gatos, porquinhos, ursos, cães, coelhos, tigres, raposas; outros lembrarão os originais veículos – carros em forma de maçã, de lápis, de pepino ou de salsicha – saídos da sua imaginação prodigiosa.

Um ou dois anos depois, encomendei outro livro de Scarry, desta vez em alemão, para tentar aprender algumas palavras dessa língua complicada. Com imagens, pensei, seria mais fácil. E assim passei do patamar da nostalgia para o da aprendizagem.

Seguiram-se os livros de David Macaulay, de quem também havia um exemplar de O Castelo lá em casa na minha infância. A esse, juntei A Cidade, sobre a fundação, construção e vida numa cidade romana, A Catedral e A Cidade Subterrânea. Ainda me faltam A Pirâmide e O Moinho.

Mais recentemente, já não sei por que voltas do acaso, descobri os soberbos livros de Richard Platt (textos) e Stephen Biesty (desenhos). Se os desenhos de Scarry são encantadores pela sua inocência e os de Macaulay nos fascinam pelo rigor do traço, Biesty desmonta peça a peça as grandes criações do homem e coloca-as ao alcance do nosso limitado entendimento.

Um destes dias, ao entrar numa livraria localizada num outlet às portas de Lisboa, ali estavam três deles, ao fundo, magníficos. ‘Coleção Ver Por Dentro: 5€’. Por aquele preço dava vontade de levar todos mas havia apenas um que ainda não tinha e não valia a pena ficar com exemplares repetidos.

Lá trouxe o que me faltava, Ver Por Dentro – O Castelo (ed. Verbo). Aqui vemos um exército com o cerco montado às portas da fortaleza (tenho razões para suspeitar que o ilustrador tomou como referência a famosa pintura de Albrecht Altdorfer, A Batalha de Alexandre em Issus, de 1529). Na dupla página seguinte é-nos apresentada a anatomia do castelo, com a função de cada dependência, e as suas personagens. E adiante temos todas as dimensões da vida lá dentro:a construção, a guerra, as artes e ofícios, as diversões e os banquetes. Oúltimo par de páginas é dedicado ao armamento e castigos, entre os quais alguns bastante cruéis, como o esmagamento («um processo lento e agonizante, que levava muitos condenados a implorar aos visitantes que saltassem para cima da prancha, provocando-lhes uma morte mais rápida») e o esquartejamento.

Ou leia-se esta outra passagem, sobre as artes e ofícios: «Em Inglaterra, o controle da pureza da cerveja estava a cargo deste examinador, que entornava a bebida sobre um banco de madeira, no qual se sentava em seguida. A cerveja passava o teste se, ao fim de meia hora, as calças de couro não ficassem coladas ao banco. Pelo contrário, a cerveja de fraca qualidade seria açucarada, colando-as ao assento».

Como assim? Cercos? Esquartejamentos? Cerveja? Masafinal não eram livros para crianças? Nada disso. Biesty é bestial para qualquer idade. Deixemos esses preconceitos de lado, aprendamos com as suas incríveis ilustrações e não sejamos nós umas bestas quadradas!