Porto e Lisboa pagam lealdades

Edite Estrela e Paulo Mota Pinto: as voltas que a política dá

Com o Congresso deste fim de semana, Rui Rio fecha o processo de reafirmação interna e de rearrumação do partido para poder arrancar para a campanha eleitoral em que disputará com o incumbente António Costa o lugar de primeiro-ministro e chefe do Governo.

Na Feira, independentemente das guerras de bastidores que já vêm de longe e não deixarão de existir, o pragmatismo dos sociais-democratas falará mais alto e o Congresso terminará com uma imagem de unidade em torno do líder.

A votação, com aprovação expressiva, das listas no último Conselho Nacional são a prova disso mesmo. 

Purgas, saneamentos, sectarismos, seguidismos e tantos outros adjetivos utilizados nas últimas semanas ficam para quem perdeu ou foi vítima da derrota. E desses não rezará a história.

Quem ganha manda e o resto é conversa.

Em 1983, no rescaldo da crise no Secretariado do PS, Mário Soares varreu das listas de candidatos do partido às legislativas todos os ‘conspiradores do sótão’ – que bem protestaram pela injustiça da falta de representatividade na futura bancada parlamentar. 

Valeu-lhes de nada. A revanche de Soares chegou ao ponto de indicar para cabeça de lista por Castelo Branco um ‘paraquedista’ enviado de Lisboa, Rodolfo Crespo, enquanto o líder dos conspiradores e presidente da federação socialista daquele distrito, António Guterres, foi convidado para integrar as listas como n.º 4 pelo círculo eleitoral de… Braga.

António Campos – hoje militante n.º 1 do PS e à época braço direito de Soares no partido – foi a quem coube a afrontosa missão de formular o convite ao ‘homem do bigodinho’, como então era conhecido o hoje secretário-geral das Nações Unidas. Claro que este recusou tamanha humilhação. E todos os outros desalinhados também saíram das listas – sobrou apenas Margarida Marques, que seria eleita deputada por Lisboa, mas invocando a condição de secretária-geral da Juventude Socialista e ter sido por esta indicada em lugar elegível.

Na altura, Portugal estava na bancarrota e o Governo AD liderado por Francisco Balsemão caiu de podre.

Chegadas as eleições, o PS de Soares foi o partido mais votado e, dada a situação do país e o inevitável pedido de resgate ao FMI – tornando indispensável uma estabilidade política que garantisse condições de governabilidade -, Soares fechou o Governo de Bloco Central com Mota Pinto.

Passaram praticamente quatro décadas desde esse primeiro e único Governo de Bloco Central. E, no estado que o país atravessa, esgotada a ‘geringonça’ e, à partida para a campanha eleitoral, sendo pouco previsível uma maioria absoluta de qualquer um dos dois partidos da alternância no poder, nunca tanto se falou da possibilidade/necessidade de um novo entendimento entre PS e PSD.

Por tudo o que tem sido dito e escrito por todas as partes, já se percebeu que tanto António Costa como Rui Rio não excluem conversar no pós-eleições – ainda que Costa tenha antecipado a saída de líder do PS caso perca as eleições para o PSD -, nem que seja para assegurar condições de governabilidade e não obrigatoriamente para um Governo de ‘salvação nacional’ com representantes dos dois partidos.

Mas há, agora, um dado acrescido que nos remete para os idos anos de 1983 e que tem a ver com as escolhas que os portugueses também farão ao depositarem o seu voto nas urnas no dia 30 de janeiro: entre Edite Estrela e Paulo Mota Pinto para presidente da Assembleia da República.

Não está anunciado por nenhum partido, mas são nomes óbvios.

E remetem-nos para 1983 porquê?

Paulo Mota Pinto, porque é filho do então líder do PSD e vice-primeiro-ministro de Mário Soares.

Edite Estrela porque a então professora do Liceu D. Dinis (Lisboa) nas disciplinas de Português e Francês e autora de Dúvidas do Falar Português chegou a dirigente do PS precisamente nesse ano.

A indicação do seu nome para segunda figura do Estado será o reconhecimento pelo secretário-geral do PS da lealdade que desde então a ainda deputada, ex-eurodeputada e antiga presidente da Câmara de Sintra sempre dedicou a todos os líderes socialistas, desde Mário Soares a António Guterres, passando por José Sócrates e acabando em António Costa.

Sinal desse reconhecimento, aliás, é também a indicação de Edite Estrela como n. 2 da lista do PS em Lisboa, imediatamente a seguir ao líder.

Finalmente, António Costa deixou de fora Francisco Assis, que publicamente assumira a sua disponibilidade para regressar à Assembleia da República e não escondera a sua ambição a suceder a Ferro Rodrigues.

Neste ponto, o líder do PS aproveita para vincar que o seu objetivo primeiro no ato eleitoral que se avizinha é mesmo a maioria absoluta. E a presença de Assis nas listas poderia retirar-lhe argumentos num discurso que procurará bipolarizar e apelar ao voto útil. 

E isto porque a indisponibilidade de Assis para ser deputado (em 2019) se deveu à aposta de Costa em privilegiar o entendimento com o BE e com o PCP. E justificara a mudança de posição, agora, com o facto de o PS já admitir eleger o PSD como parceiro preferencial na construção de uma solução governativa de estabilidade.

Costa perderá muito por ter excluído Assis das listas? Tanto quanto Rio por limpar os apoiantes de Rangel que, ocupando cargos de topo nas estruturas locais, também excluíram os rioistas.

É caso para dizer que, se Roma não paga a traidores, Porto e Lisboa não esquecem as lealdades.