Vim do infinito, não de um registo civil

E se o Estado – ouça bem, shôtor – segrega o próprio povo seja por que motivo for, é porque o Estado está a cumprir mal a sua função de ser o depositário do poder popular.

Eu, como ser humano, existo antes do Estado. Vim do infinito, para lá voltarei. Entretanto, nasci e sou um conjunto de átomos: soberano. 

– Que bonitinho o anarquista.

Não: dois braços, duas pernas, pele, pulmões, coração, alma. Um ser ontologicamente anatómico. Existo: antes do Estado, para lá do Estado, à margem do Estado e, só quando me apetece, dentro do Estado. Sou soberano: anatomicamente soberano, ontologicamente soberano. Se quiser matar-me mato-me. Se quiser viver vivo-me. Se quiser disfarçar-me de árvore de Natal para sempre disfarço-me. Existo antes do Estado.

– Que bonitinho o anarquista.

Não: não é anarquismo. É consciência ontológica. Estava tudo escuro e depois vim ao mundo. Nasci porque os meus progenitores me fizeram. Vivo com mais vontade do que quando rasguei o ventre à minha mãe. Da pele saiu pele. De um mamífero saiu outro. Sou pele parida. Existo antes do Estado. Antes de ser Henrique, sou – apenas. E não me importo de também ser ‘o Henrique’ que paga impostos e joga ao contrato-social, mas antes de ser esse, sou – apenas.

– Que bonitinho o anarquista.

Não: o contrato-social existe – e bem. O que seria de um medricas como eu se tivesse que lutar todas as noites para a casa não ser assaltada? Acontece que quando se teorizou esse contrato-social, estipulou-se que o poder vinha do povo. Era o povo – a mais velha e bela instituição do mundo – que delegava o seu poder num governante. O poder não vem mais de Deus, shôtor: agora o poder vem do povo. E o Estado não está acima do povo, shôtor: o Estado é o povo. E se o Estado – ouça bem, shôtor – segrega o próprio povo seja por que motivo for, é porque o Estado está a cumprir mal a sua função de ser o depositário do poder popular. Um Estado que guetifica parte do seu povo é um Estado que o traiu. E um Estado que trai o seu povo é um Estado falhado.

Shôtores, vimos do pó, ao pó voltaremos. Somos um conjunto de átomos que está aqui porque ganhou uma corrida sem querer: por que carga d’água é que uma máquina estatal que é nossa extensão há de obrigar-nos a colocar um líquido no nosso corpo para termos acesso à vida moderna? Shôtores, não me confundam: vacinem-se para a frente, sem ironia. Não há o mínimo de problema nisso. Há, sim, em os Estados tornarem a vacina obrigatória, privando de direitos ou multando aqueles que não a tomarem. Costa, cá, teve a decência de não o fazer. Mas e na Alemanha? E na Áustria?

– Que bonitinho o negacionista.

Não me confundam, shôtores. Mas respondam-me: não é uma pornográfica violação do meu corpo e da minha soberania ontológica e anatómica ter que vacinar-me para viver no mundo moderno? Eu existo antes do Estado. Os covideiros responder-me-ão que «qUaNdO hÁ dIrEiToS hÁ dEvErEs». Amigos, tudo bem – mas e se alguns considerarem que o compromisso está desequilibrado? Esquecem-se que o objetivo do contrato-social é servir o seu povo? Se há uma parte significativa do povo que se sente violado pela obrigatoriedade da vacina imposta pelo Estado, não estará o Estado, ao obrigá-la, a tornar-se num predador que ataca o povo em vez de ser um servidor que o protege? Não fica invertida a sua função? Um Estado que guetifica parte do seu povo é um Estado que o traiu. E um Estado que trai o seu povo é um Estado falhado.

Não vale a pena encher a boca com os desrespeitos às minorias étnicas pela Europa para depois fechá-la quando se vê Estados a segregar cidadãos por estes reivindicarem soberania individual. Pode mudar o agredido, mas agressão é a mesma: segregação de quem age diferente, imputação de uma homogeneidade de pensamento e ridicularização no espaço público.

Cada corpo é materialmente soberano e existe antes do Estado: afinal, fomos atirados ao mundo – ou tivemos que marcar hora no registo civil para nascer?