Há mar e mar…

Claro que o país ficou agradecido e retribuiu em dobrado – com a ajuda dos media embevecidos -, não tardando a eleger o vice-almirante como figura do ano. O pior foi que este, depois de despir a farda de trabalho, não resistiu aos sortilégios da sua inesperada popularidade. E, a seguir, cometeu o erro de deixar-se…

O ano despede-se com os balanços do costume e um razoável acervo de incertezas em relação a 2022, a começar nas legislativas antecipadas e na evolução da pandemia, até ao estado da Justiça e às ‘variantes’ que a contaminam, como se fosse vítima de outro vírus invisível, de efeitos não menos deletérios.

O ano que termina confirmaria, como nota dominante, que a crise sanitária veio para ficar, e que a vacinação maciça das populações, embora as proteja das consequências mais severas da doença, não lhes garante a desejada imunidade para fazerem a sua vida, sem arriscarem o medo.

Por causa da covid, os sebastianismos reapareceram em força, e promoveram a ‘herói’ um oficial da Armada, que ‘emergiu’ de camuflado para coordenar a vacinação, tendo o mérito de por a funcionar uma operação que parecia condenada ao fracasso.

O certo é que, em pouco tempo, o ex-submarinista tomou conta da ‘máquina’ da vacinação, impôs a disciplina e cortou a direito nos maus hábitos do SNS, e soube gerir com eficácia militar um planeamento a que o País não estava habituado.

Claro que o país ficou agradecido e retribuiu em dobrado – com a ajuda dos media embevecidos -, não tardando a eleger o vice-almirante como figura do ano. O pior foi que este, depois de despir a farda de trabalho, não resistiu aos sortilégios da sua inesperada popularidade. 

E, a seguir, cometeu o erro de deixar-se envolver numa polémica escusada, ao substituir o seu colega na chefia da Armada.

Nessa trapalhada percebeu-se mal o que levou o Chefe de Estado, primeiro, a travar a nomeação do Governo, desautorizando o ministro Gomes Cravinho, e agora, a achar que era «o momento certo» para a substituição, sem explicar o porquê, quando o executivo está em gestão e o Parlamento dissolvido.

Contribuiu, sem dúvida, para uma situação anómala, com o ex-CEMA a informar os subordinados que não deixava o lugar «por vontade própria», desmentindo, na prática, o Presidente da República.

Sobra uma razão mesquinha: o exonerado almirante Mendes Calado ‘atreveu-se’ a discordar da reestruturação orgânica das Forças Armadas, promovida pelo Governo e ‘apadrinhada’ por Belém. 

Foi, pelos vistos, um ‘pecado mortal’, não obstante estar bem acompanhado nessa divergência, até pelo ex-Presidente Ramalho Eanes, que, numa atitude rara, encabeçou uma carta aberta, assinada por mais 28 ex-chefes de militares, contestando frontalmente essa reforma.

Não adiantou nada. O poder político tinha pressa. E Gouveia e Melo tornou-se, assim, almirante e chefe da Armada, como visivelmente aspirava, mas não se livrou da suspeita de ter sido conivente com um processo desastrado de afastar um oficial de ‘folha limpa’. 

Não lhe fica bem. Afinal, ‘saiu em ombros’ da task force, e mandou a ética ‘às malvas’ nesta equívoca ‘batalha naval’, empossado em Belém a fugir, como se ninguém estivesse à vontade na cerimónia-relâmpago. Uma tristeza.

Surpreende, porém, a escalada que protagonizou, em jeito de ‘explorar o sucesso’, já admitindo que seja criado à sua volta «um movimento de cidadania pura e simples», não se percebendo bem para quê, a menos que o novo ‘herói’ queira afoitar-se no terreno da política, depois de ter excomungado essa hipótese.

Mendes Calado saiu, condecorado por Marcelo, elogiado pela sua «carreira brilhante», mas teve a mesma sorte que Joana Marques Vidal, a ex-PGR, a quem o Presidente, em 2018, também condecorou e gabou os «seis anos de corajoso e dedicado serviço à causa pública», mas que foi substituída na Procuradoria, apesar da disponibilidade para continuar. 

Depois, a Procuradoria mudou de estilo. A sucessora, Lucília Gago, não perdeu tempo. E em 2020 assinou uma diretiva controversa, vista como redutora da autonomia dos magistrados. 

A polémica durou pouco, esmoreceu, e o assunto passou à história. Menos a diretiva que prevaleceu. 

É provável que seja esse, também, o destino da polémica na Marinha. Mas há quem veja em tudo isto sinais de “domesticação” tanto da Justiça, como das Forças Armadas, com a Marinha a servir de pivô.

A conjuntura é propícia. De facto, na chefia do EMGFA, está outro almirante, Silva Ribeiro, que não contrariou – que se saiba – os desígnios do Governo, vertidos nas leis orgânicas das Forças Armadas, que reforçam os seus poderes, em prejuízo das competências que estavam atribuídas aos chefes de Estado Maior dos ramos. 

É antiga a apetência da Marinha para dispor as suas pedras na esfera do poder. 

Quem não se lembra de Rosa Coutinho, o ‘almirante vermelho’ que alinhou Angola na órbita de Moscovo. Ou de Américo Tomaz, também almirante, Presidente da República durante quase uma década, com Salazar e Caetano. E quem ler nas entrelinhas das entrevistas de Gouveia e Melo percebe a tentação do Expresso, ao inquiri-lo «sobre se devia ser… Presidente»…