O folhetim da Armada

Por Pedro Ochôa    O poder político, como tem sido rotineiro nas últimas décadas, entendeu por bem destratar, uma vez mais, a Instituição Militar, desta vez recorrendo ao despedimento sumário, sem qualquer tipo de justa causa, do Chefe de um dos seus ramos. O Chefe do Estado-Maior da Armada, militar muito respeito entre os seus,…

Por Pedro Ochôa   

O poder político, como tem sido rotineiro nas últimas décadas, entendeu por bem destratar, uma vez mais, a Instituição Militar, desta vez recorrendo ao despedimento sumário, sem qualquer tipo de justa causa, do Chefe de um dos seus ramos.

O Chefe do Estado-Maior da Armada, militar muito respeito entre os seus, fora reconduzido para o exercício das suas funções há relativamente pouco tempo, apenas se compreendendo a decisão de agora lhe ter sido apontada a porta de saída por uma única razão, a de se oferecer aquele posto a um amigalhaço do governo.

E o timing tinha que ser este, por duas ordens de razões. A primeira é a de que Gouveia e Melo, a nova coqueluche do regime, brevemente passaria à reserva caso não lhe fosse entregue o comando da Marinha, perdendo, dessa forma, a hipótese de conquistar uma quarta estrela.

O segundo motivo prende-se com as eleições que se aproximam, correndo-se o risco de que o governo que delas sair poder não estar de acordo com esta substituição sem sentido, não a promovendo.

Para os finórios do regime tornou-se um imperativo assegurar que a cara do processo de vacinação em massa da população não despisse já a farda, garantindo-lhe um lugar cimeiro num cargo em quem se exige descrição, comprando-se, com essa artimanha, o seu conveniente silêncio.

A mediatização a que ele se entregou, aproveitando-se da circunstância de ter sido levado ao colo pela generalidade da imprensa e da opinião publicada, catapultou-o para uma espécie de reserva moral da Nação, penetrando, dessa forma, numa coutada que tem sido um exclusivo dos políticos de carreira, formatados, ainda na adolescência, nas juventudes partidárias. 

O folhetim do saneamento do Almirante agora mandado para casa teve o seu início em Setembro, não tendo ocorrido logo na altura por via de um travão presidencial.

Sabemos, no entanto, que esta esquerda que nos desgoverna nunca desiste das suas intenções, por mais maléficas que sejam, pelo que não admira que tenha de novo voltado à carga, desta vez com sucesso.

Todas estas peripécias, que se arrastaram ao longo de três meses, em nada prestigiaram as Forças Armadas, bem pelo contrário, contribuíram ainda mais para o descrédito a que têm sido votadas pela classe política.

E todos os protagonistas, aqueles a quem foi atribuído um papel neste folhetim, saíram mal na fotografia.

Marcelo Rebelo de Sousa:

Numa primeira fase esteve bem, cumprindo com autoridade as funções que por inerência lhe pertencem, as de Comandante Supremo das FA. Não aceitou a proposta governamental de destituição do Chefe do Estado-Maior da Armada e a sua substituição pelo homem das vacinas, desautorizando, publicamente, o ministro da defesa e reprimindo-o com um valente puxão de orelhas.

Mas, posteriormente, voltou a alinhar no jogo a que nos habituou, o de querer estar bem com Deus e com o diabo. Não demitiu o ministro, esse sim, com razões para despedimento com justa causa, por, ao tornar pública uma decisão sua de afastamento de um chefe militar, responsabilidade última da exclusiva competência do Chefe do Estado, ter exorbitado das funções que lhe foram confiadas.

Mais grave ainda, e absolutamente inexplicável, o ter viabilizado agora a troca de Almirantes, quando não houve nenhuma alteração objectiva do cenário que se vivia em Setembro e que justificasse uma mudança de procedimentos.

Se, para Marcelo, a destituição do Almirante Mendes Calado era inadmissível num passado muito recente e não havendo, desde então, qualquer actualização de pressupostos, obviamente que esta se mantinha intolerável!

De um Presidente espera-se firmeza, ou seja, que não mude de opinião ao sabor do vento. O que deliberou ontem tem que se manter para hoje, caso contrário quebram-se os laços de confiança entre governante e governados.

Marcelo, uma vez mais, desiludiu!

António Costa:

Esteve desaparecido em combate durante quase todo este processo.

Só os mais distraídos se podem ainda surpreender com este comportamento serpenteado do inquilino de S. Bento, habituado que está a dar a cara quando as coisas correm bem e a desertar quando dão para o torto.

Costa chama sempre a si os louros de qualquer sucesso, mesmo que relativo, desde que cheire a acréscimo de popularidade. Aparece de imediato, auto-elogia-se e baba-se todo, inchado de tanta auto-estima.

Mas quando se apercebe de que a opinião pública manifesta algum tipo de descontentamento, sacode a água do capote e envia para o meio da arena um qualquer ministro, lançado às feras.

A culpa nunca é dele, é sempre dos outros!

Foi precisamente a atitude que adoptou neste folhetim, a de passar entre os pingos da chuva. E conseguiu-o, pois passou praticamente sem ser beliscado nesta trapalhada toda, quando foi o seu primeiro responsável!

Gomes Cravinho:

Quis correr com um chefe militar, que dele dependia hierarquicamente, esquecendo-se dos trâmites normais e necessários para o efeito.

A sua arrogância teve como consequência um raspanete presidencial em plena praça pública, acabando desautorizado e obrigado a conviver com o subordinado de que se quis ver livre.

A dignidade, que se crê ser um vínculo obrigatório a um governante, somente lhe reservava um destino, e da sua iniciativa, o da demissão.

Mendes Calado:

Chefiou a Marinha num período complicado, com notória escassez de meios humanos e materiais, mas fê-lo com elevada competência e dedicação, granjeando a estima e a consideração dos seus pares.

Foi alvo de uma tremenda injustiça, vítima colateral de inconcebíveis joguinhos políticos.

Deveria ter batido imediatamente com a porta, recusando-se a permanecer no seu posto caso o ministro não fosse demitido. Em circunstância alguma poderia voltar a despachar com quem o desconsiderou e lhe aprontou uma afronta infame.

Teria saído de cabeça erguida, com o orgulho e dignidade inatacáveis.

Em vez disso acabou por sair pela porta pequena, imerecida, sem dúvida, mas real!

Gouveia e Melo:

A sua ambição, pela qual se bateu e nem sempre através de jogo limpo, a de promoção a Almirante, fez dele o actor principal neste filme de qualidade medíocre, permitindo-se chegar ao topo da Marinha espezinhando, para o efeito, um camarada de armas, perante o qual estava sujeito aos deveres militares da lealdade e da obediência.

A um oficial exige-se honra e verticalidade. Gouveia e Melo, obedecendo a esses valores, jamais poderia ter aceitado que a obtenção de uma quarta estrela tivesse como contrapartida a desqualificação de um dos seus pares, por sinal um dos mais prestigiados.

Em nome da coesão e da camaradagem, apanágios da Instituição Militar, teria sido seu dever, logo no início deste folhetim, recusar-se a nele participar.

Se tivesse assumido essa postura, a sua popularidade ter-se-ia mantido intacta, quiçá reforçada, e o seu carisma colocaria em sentidos os politiqueiros que se passeiam pelos corredores do poder.  

Mas, ao entrar neste jogo, sem hesitações, pois da parte dele nunca se ouviu um simples murmúrio quanto ao enredo de que fez parte, passou a usufruir de idêntico estatuto ao dos políticos que dele se aproveitaram, o qual se caracteriza pela completa ausência de escrúpulos.

Se, para além de alcançar o lugar cimeiro da carreira que abraçou, está, como por aí se diz, a cobiça de voos mais altos, percurso a que já nem o próprio desmente, certamente que a sua ingenuidade, ao deixar-se instrumentalizar pelos seus supostos amigos, tornou esse objectivo numa quase irreversível miragem.

O agora Chefe do Estado-Maior da Armada, para ascender ao almejado cargo, contou com o parecer negativo, felizmente, para ele, não vinculativo, da maioria dos oficiais generais do ramo.

Na sua tomada de posse, sem pompa nem circunstância, foi surpreendido com a ausência do seu antecessor, caso inédito nos anais da Instituição, e com a do seu congénere do Exército.

Notória foi, igualmente, a falta de presença do primeiro-ministro. Costa interrompeu as suas alegadas férias para se prestar a uma entrevista em directo numa televisão, mas a solenidade do acto da entrada em funções do novo homem forte da Marinha não lhe mereceu essa mesma consideração.

A quase unanimidade à volta do nome de Gouveia e Melo transformou-se agora, por sua exclusiva culpa, num factor de desunião e de discórdia.

Quando um comandante não se mostra à altura de contar com a solidariedade dos seus comandados, deixa de estar ao seu alcance o sucesso numa tarefa de maior responsabilidade.

Por via disso, Belém, num futuro próximo, só visto por um canudo!