Médio Oriente. Conflito sobe de tom no aniversário da morte do general Souleimani

Um jornal israelita foi alvo de hackers, enquanto um navio iemenita era tomado no Mar Vermelho, levantando receios quanto à segurança marítima. Está tudo ligado à guerra nas sombras que opõe monarquias do Golfo e Israel ao Irão. Em lado nenhum o conflito se desenrola de forma tão sanguinária como no Iémen, onde os houthis…

“Estamos próximos de ti onde não pensas nisso”, lia-se em hebraico e inglês no site do Jerusalem Post, esta segunda-feira. Por trás da imagem ameaçadora via-se Dimona, um centro nuclear israelita escondido no deserto do Negev, a explodir. Nesta montagem, um míssil caía sobre Dimona, disparado de um anel, muito semelhante ao usado pelo general iraniano Qasem Soleimani, assassinado por um drone americano exatamente há dois anos, no aeroporto de Bagdade.

O ataque informático a este jornal israelita – apontado como sendo obra de hackers pró-Irão, estando por apurar se tiveram apoio estatal – foi só mais uma ofensiva na guerra que se trava no Médio Oriente, nas sombras, com monarquias do Golfo e Israel em confronto com o Irão e a sua rede de aliados, montada pelo general Souleimani. Nesse mesmo dia, no Mar Vermelho, que vai dar ao canal do Suez, uma artéria crucial, por onde passa cerca de 12% do comércio global, forças houthis, uma milícia iemenita alinhada com o Irão, liderada por um clã que se diz descendente do profeta Maomé, tomaram um navio com bandeira emirati, o Rwabee, levantando receios quanto à segurança do tráfego marítimo na região. E todos recordam o caos que foi quando o porta-contentores Ever Given bloqueou o Suez, com um custo que a seguradora Allianz estimou entre os cinco e os nove mil milhões de euros por semana.

A coligação militar liderada pela Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU), que se degladia contra os houthis no Iémen, denunciou a tomada do Rwabee como “pirataria armada”, alegando que o navio transportava equipamento médico e medicamentos oriundos de um hospital militar saudita na ilha de Socotorá, no Índico. Rapidamente os houthis, conhecidos pela sua sofisticada estratégia de comunicação, utilizando redes sociais e canais por satélite como o Al Masirah, divulgaram vídeos filmados por drones de lanchas militares, camiões e caixas cheias de espingardas a serem descarregadas do Rwabee.

Seja como for, subitamente, com o comércio internacional em causa, volta a falar-se da guerra no Iémen, um conflito esquecido. E muitos perguntam-se quem são os houthis, o que é que sauditas e emiratis andam a fazer no Iémen, ou porque é que este país se tornou parte tão crucial da estratégia do Irão, numa guerra por procuração que virou a grande tragédia humanitária deste século. Em sete anos, morreram uns 377 mil iemenitas nesta guerra, estimou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. São números terríveis, ainda para mais sabendo que cerca de 70% das vítimas mortais foram crianças com menos de cinco anos.

“Sauditas desesperados para acabar a guerra” O poderoso clãs dos houthis, oriundo da província de Sa’ada, no noroeste do Iémen, se destacava como proponente do zaidismo, uma vertente xiita próxima do sunismo. Mas nada indicava que se viessem a tornar a imponente força militar que são hoje, equipada com um vasto arsenal – a Arábia Saudita anunciou no final desde ano que, desde o começo da guerra, o seu território foi alvo de 430 mísseis balísticos e 851 drones dos houthis, avançou a Reuters, tendo um desses ataques, contra fábricas da Aramco, em 2019, paralisado a produção petrolífera saudita – e capazes de tomar de assalto cidades defendidas pela força aérea saudita, abastecida por potências como os EUA, Reino Unido e França. Muitas dessas bombas acabam por atingir alvos civis, tendo a coligação liderada pelos sauditas bombardeados hospitais, autocarros escolares, mercados e mesquitas, denunciou a Human Rights Watch.

Em 2004, quando os houthis lançaram a sua primeira rebelião contra o Governo iemenita, dirigido pelo autoritário Presidente Ali Abdullah Saleh, aliado próximo dos EUA, foram rapidamente esmagados. Não conseguiram sequer defender as suas cavernas nas montanhas Marran, acabando o seu carismático líder, Hussein al-Houthi, capturado e sumariamente executado.

O Governo de Saleh cometeu o erro de mandar cobrir as paredes de Sa’ada com cartazes do cadáver de al-Houthi, “inadvertidamente ressoando com o tema xiitas do martírio, elevando-o ao estatuto de santo”, escreveu Michael Knights, investigador Washington Institute, num artigo para o Combating Terrorism Center, de West Point. Seguir-se-iam anos de guerrilha, centrada no norte do país, que ainda continua a ser bastião dos houthis.

Contudo, os grandes avanços dos houthis surgiriam em 2011, com o despoletar da Primavera Árabe, levando à queda de Saleh, afastado pelo marechal Abd Mansur Al-Hadi. Numa reviravolta estranha, mas perfeitamente comum na complexa política tribal iemenita, os houthis alinharam com Saleh, tomando a capital, Saná, em 2014. Pelo meio, capturaram muito armamento das forças armadas, o seu arsenal de mísseis e as baterias de proteção costeira, cooptando ainda boa parte dos serviços secretos, ao mesmo tempo que começavam a receber mais apoio vindo do Irão e dos seus aliados, como o Hezbollah.

Já Hadi acabaria por fugir para a Arábia Saudita, furiosa com o surgimento de um regime pró-Irão, que juntou uma coligação de países árabes, apoiada logisticamente pelo Ocidente, numa ofensiva militar contra os houthis, em 2015 lançando ataques aéreos maciços.

A guerra – que teve Mohammed bin Salman como um dos seus grandes proponentes, ainda antes de se tornar príncipe herdeiro – virou um lamaçal para a coligação liderada pelos sauditas, incapaz de bater os houthis. Pelo meio foram surgindo novas fações, Saleh entrou em choque com os houthis e foi assassinado, os emiratis passaram a apoiar separatistas no sul, combatendo o Governo apoiado pelos sauditas, e a Al Qaeda ganhou um novo fôlego. Enquanto isso, a economia colapsava, com oito milhões de pessoas a passar a fome, alertaram as Nações Unidas o mês passado, estando outros cinco milhões em risco disso.

Já os houthis entraram na cidade portuária de Hodeia em novembro, crucial para receberem abastecimentos, cuja defesa em tempos foi considerada uma prioridade pela coligação liderada pelos sauditas. Agora avançam para Marib, no centro do país, onde fica a única refinaria funcional no Iémen e a autoestrada que leva à Arábia Saudita. Os houthis admitiram ter perdido quase 15 mil homens nesta ofensiva, lançando-os em vagas humanas contra os montes em redor de Marib, debaixo da força aérea saudita, mas continuam a avançar.

“Os sauditas estão cada vez mais desesperados para acabar a guerra”, escreveu recentemente o Economist, notando que Riade até se viu forçada a tentar negociar com o seu grande rival, Teerão. No entanto, se há coisa que os ataques dos últimos dias mostraram, no segundo aniversário da morte de Souleimani, é que o fim da guerra fria no Médio Oriente não está ao virar da esquina.