John M. Barry: “O impacto na forma como vivemos vai ser maior do que em 1918”

John M. Barry estudou a pandemia de 1918, com 50 milhões de mortos e um medo que entrava nos ossos. Ainda assim, tornou-se uma nota de rodapé na história. Acredita que a covid-19, menos letal, deixará marcas maiores no quotidiano e provou que as medidas não farmacológicas salvam vidas. Mas também a importância de comunicar…

Em 2004, publicou o resultado de uma investigação sobre a pandemia de 1918, trabalho que o levaria a ser convidado para ser consultor nas Administrações Bush e Obama para a preparação de resposta a epidemias. Quis que se falasse da crise de saúde pública que, em poucos meses, matou mais do que a peste negra da Idade Média num século: pelo menos 21 milhões de mortes, segundo alguns estudos mais recentes entre 50 milhões a 100 milhões, numa altura em que a população mundial era menos de um terço da atual.

Ao longo destes quase dois anos de covid-19, revisitou as lições de há 100 anos para escrever sobre o presente. Acredita que a Grande Gripe, como lhe chamou em The Great Influenza: The Story of the Deadliest Plague in History, alterou o curso da história ao condicionar o então presidente dos EUA Woodrow Wilson nas negociações do Tratado de Paz que pôs fim à Primeira Guerra, com sanções para a derrotada Alemanha. Esta também deixará marcas, diz, numa conversa a três com o Nascer do SOL e uma publicação da Grécia, com a Europa e os EUA a serem varridos pela Omicron e comparações com o último fôlego da pandemia de há 100 anos com uma variante mais ligeira. 

Quando publicou The Great Influenza, como foi a receção? As pessoas questionaram por que estava a querer destapar um momento tão trágico da história?

Foi aceite, foi lido. Na Administração chamaram-me para estar envolvido na preparação da resposta a pandemias (Fran Townsend, conselheira de George W. Bush, recordou em 2020 como, após ler o livro, o então Presidente norte-americano lhe disse que era preciso criar uma estratégia de resposta a pandemias). A publicação acabou por coincidir com a epidemia de SARS e por ter também muita atenção por isso.

Mas havia a perceção de que durante muito tempo fora uma nota de rodapé na História.

Isso é verdade e sempre me pareceu estranho não se ter prestado muita atenção. Uma coisa curiosa é que aquela pandemia nunca recebeu um nome. Vejo hoje referências na imprensa a Great Influenza, que foi o título que dei ao livro, mas na minha investigação nunca encontrei ninguém que se referisse à pandemia de 1918 assim.

Era chamada de gripe espanhola – até por Espanha ser então um país neutro na  Guerra.

Sim, mas para as pessoas comuns, durante anos, se dissesse gripe espanhola não sabia de que se estava a falar. Isso só mudou mais recentemente.

Que lições de 1918 leva para esse trabalho de preparação da resposta a pandemias?  

Há duas lições. A mais importante, sobre a qual escrevi no livro e que tenho repetido várias vezes em editoriais e entrevistas desde que começou a pandemia, é dizer a verdade. Faz uma diferença significativa na resposta do público. E, na ausência de medicamentos ou vacinas, a resposta do público é tudo o que temos.

Não se consegue que as pessoas adiram às recomendações se não se disser a verdade. Muitos países em todo o mundo saíram-se muito melhor do que os EUA na resposta à pandemia, praticamente todos os países desenvolvidos, e fizeram-no por causa disso. A segunda lição, que não é muito evidente até se começar a fazer estatísticas e análises, é que as intervenções não farmacêuticas funcionam.

Máscaras, distanciamento social, isolamento…

Penso que funcionaram melhor nestes dois últimos anos do que mesmo os seus mais acérrimos defensores pensariam. Têm um impacto muito importante na transmissão e tiveram um impacto na redução das mortes. E as duas lições estão intrinsecamente ligadas: porque se não se disser às pessoas a verdade, elas não aderem às medidas. E, se não aderirem, as medidas não têm impacto.

A dificuldade muitas vezes para os políticos e autoridades não é dizer a verdade, mas lidar com a verdade.

Acredito que a história não acontece, é feita pelas pessoas. O papel de indivíduos em momentos chave é decisivo. Obviamente que isto depende da liderança política em cada país, de como é o sistema de governo de cada país, se é um sistema federal, por exemplo, como são os EUA. Uma das lições desta pandemia, espero, será os futuros líderes políticos, numa próxima pandemia, perceberem que fazer a coisa certa é a melhor política. Trump perdeu a reeleição por ter gerido de forma incorreta a pandemia e não ter dito a verdade.

Penso que o Presidente Bolsonaro está significativamente diminuído por causa da forma como lidou com a pandemia. Teria sido do interesse pessoal de Trump ter sido mais incisivo no combate à covid-19. Não o viu dessa maneira, adotou uma visão muito mais de curto prazo e pagou um preço por isso. E, portanto, espero que os líderes políticos, que não são gente da saúde pública mas pessoas que recebem informação da saúde pública, percebam que numa situação destas ouvir esses conselhos é o melhor que podem fazer pelo seu futuro político.

Fala da importância de dizer a verdade quando o que vimos ao longo dos últimos meses foi muita gente a questionar o que é a verdade e podemos sempre interpretar factos de diferentes maneiras. Como lidar com isso?

Há uma diferença entre interpretar e contextualizar e distorcer os factos. E por alguma razão bizarra sabemos que há pessoas, por interesses políticos ou outros, a usar a pandemia para espalhar informação falsa, seguramente nos EUA isso ainda está a acontecer. Mas penso que podemos diminuir esses movimentos se houver um esforço concertado desde o início e de cima para explicar a situação. Haverá sempre pessoas que querem acreditar noutra coisa qualquer e por isso nunca se terá toda a gente, 100% do tempo, a prestar a atenção aos factos. Mas há factos concretos.

Quando participava em reuniões de planeamento, dizia sempre que a forma como se transmite uma mensagem é muito importante. Ser transparente desde o início é crucial. Lembro-me de, numa reunião, uma vez, uma responsável me dizer: ‘mas não queremos assustar as pessoas!’. E respondi: ‘Não, se há algo para ter medo, queremos assustar as pessoas’. Quando se perde a credibilidade, não se consegue recuperá-la.

Portanto, a abordagem desde o início é muito importante e deve incluir que, se não sabemos uma coisa, dizemos que não sabemos e por que não sabemos. E dizemos que, quando soubermos, explicaremos o que sabemos e por que sabemos. Não é simplesmente dar uma diretiva, é enquadrar. Assim, se uma pessoa mais tarde tem de voltar atrás no que disse, claro que haverá críticas, mas tem uma abordagem que permite fazê-lo com uma perda de credibilidade mínima.

Encontra nessa perda de credibilidade explicação para o crescimento de movimentos de antivacinação?

Acho que os movimentos antivacinação são um fenómeno um pouco diferente. Muitas pessoas estão simplesmente a mentir, outras são manipuladas, outras fazem-no por dinheiro. Aqui nos EUA tem sido referido que alguns grupos online são patrocinados pela Rússia e pela China. Há um esforço organizado para espalhar desinformação. Alguns antivacinas são simplesmente loucos, não querem saber da verdade.

Nos EUA, temos o Robert F. Kennedy Jr, filho de Bobby Kennedy e sobrinho do antigo do antigo Presidente John F. Kennedy, que era democrata e agora vai para estes eventos antivacinas onde se juntam pessoas que são contra tudo. Não sei o que os move, se é o dinheiro ou não…

Em 1918 também havia estes movimentos?

Bom, em 1918 não tinham vacinas para protestar. Havia e não havia. Nos últimos anos tem-se falado de grupos anti-máscaras mas acho que é um pouco exagerado. Houve alguma resistência, mas foi diferente. Em São Francisco, por exemplo, havia o uso obrigatório de máscara, a pandemia recuou, a ordem foi levantada bem como as outras restrições, a pandemia voltou e as medidas foram reintroduzidas.

As pessoas sentiram que tinham saído da prisão e tinham de voltar para a prisão e aí houve alguma resistência, mas não foi generalizada. Mas também é preciso perceber a diferença entre a pandemia de 1918 e esta. Em 1918, a população mais vulnerável foram crianças com menos de 10 anos, especialmente com menos de cinco anos. Os segundos mais afetados foram jovens até aí saudáveis: houve um pico de mortalidade nos jovens com 28 anos. Mais de 90% do excesso de mortalidade foi em pessoas com menos de 65 anos. O vírus era muito mais letal. 

O que se sabe hoje sobre a taxa de letalidade?

Varia muito de região para região. No mundo desenvolvido, ronda os 2%, no mundo menos desenvolvido terá sido bastante superior, 6% a 8%. Mas nos grupos mais atacados foi muito maior. Por exemplo, vi 13 estudos sobre grávidas que foram hospitalizadas e o rácio de mortalidade variava entre 21% e 71%. A Metropolitan Life Insurance, a maior seguradora dos EUA, concluiu por exemplo que mais de 6% dos mineiros que tinham segurados entre os 25 e os 45 anos morreram. Não é 6% de taxa de letalidade (que percentagem de pessoas morre entre infetados), é 6% de mortalidade. No mesmo grupo etário, mas no universo de trabalhadores industriais, 3,26% morreram. Mais uma vez, não é a taxa de letalidade, é a mortalidade. E isto aconteceu num período mais curto do que aquilo que estamos a viver.

Provavelmente dois terços das mortes aconteceram no período de 14 ou 15 semanas no final de 1918. Foi uma experiência complemente diferente, muito mais intensa, muito mais assustadora. É pensar naquilo que se sentiu no início disto quando as ruas ficaram vazias com o medo, porque não sabíamos o que era. Esse medo foi intensificado em 1918 e foi assim dia após dia. Em seis ou oito semanas, estava em todas as cidades e ao final de alguns meses tinha acabado.

Portanto, não houve praticamente resistência ao que se tentava fazer, às imposições, porque havia medo. Não tivemos isto em nenhum lugar do mundo com esta pandemia. Terá havido alguns sítios onde foi assim, em Manaus por exemplo, onde houve corpos pelas ruas. Mas a maioria do mundo não lidou com isso. A idade das pessoas que morreram, a letalidade do vírus e a duração foram as grandes diferenças face ao que vivemos. Era um vírus que causava sintomas assustadores.

O primeiro surto na segunda vaga foi detetado na Suíça. No livro cito um relatório dos serviços de informação dos EUA, de agosto de 1918, em que diziam ‘chamam-lhe influenza espanhola mas é a peste negra’. Por causa da cianose. Cito um documento de um médico em Camp Devens, no Massachussets, que dizia que a cianose era tão intensa que não conseguia distinguir um soldado afro-americano de um soldado americano. Entre letalidade, sintomas, rapidez e a idade das pessoas que morriam, foi uma experiência muito diferente.

Nos países em guerra, o Governo mentia sobre a seriedade da doença mas ninguém acreditava, porque a viam. O vizinho morria em 24 horas. A imprensa pode mentir mas isto não passa despercebido. Não li a imprensa portuguesa da altura, nem a grega, mas era da Guerra que se falava na maioria dos países.

Desde o início da covid-19 houve sempre muitas comparações com as vagas da pandemia de 1918. Pode recapitular esse desenrolar?

Foram três vagas. A primeira foi tão ligeira que não foi sentida em muitos sítios. A segunda vaga, muito mais transmissível e mais letal, foi a que provocou a maioria das mortes a partir do outono de 1918. Há um dado interessante: quem esteve doente na primeira vaga teve 94% de proteção contra morte na segunda vaga. É melhor proteção do que qualquer vacina que alguma vez se fez para o vírus influenza. Mas se tinha estado doente na primeira ou na segunda vaga, não tinha proteção nenhuma na terceira vaga. É como a Omicron.

A segunda vaga foi tão generalizada no mundo que a surgiram variantes que conseguiram escapar aos anticorpos. Mas foi menos letal. Não se sabe se foi por a variante ser menos virulenta ou porque toda a gente já tinha alguma proteção cruzada de exposições prévias. A terceira vaga começou em março de 1919. Depois em 1920/1921 há quem diga que houve uma quarta vaga, eu considero que terá sido a gripe sazonal, mas é uma questão de semântica. Não foi um bom ano, mas não teve nada a ver com os anteriores. E em 1921 estávamos de volta à gripe sazonal. A variante perdeu virulência. O que se pensa é que o vírus que inicialmente se ligava às células dos pulmões perdeu essa capacidade.

Que é também uma das conclusões que se tem estado a tirar da Omicron. Alguns investigadores e a própria imprensa têm comparado o que se está a passar com o final da pandemia de 1918. Também faz essa ligação?

Esperamos que sim, pelo menos há a expectativa de que o vírus siga essa direção e que um dia venha a causar uma constipação comum. Escrevi um artigo no Washington Post sobre isso em outubro antes de aparecer a Omicron. Há uma teoria de que a pandemia da chamada gripe russa em 1889-1890 pode ter sido na realidade realidade causada por um coronavírus que hoje em dia causa uma constipação ligeira, o coronavírus OC43. É apenas uma hipótese, mas é razoavelmente plausível. Quando tempo demorou a ser assim não sabemos, mas hoje causa apenas constipações.

A ser assim, esta não seria a primeira pandemia causada por um coronavírus.

É um teoria, não está provado. Há alguns argumentos. Um deles é que os sintomas descritos na época são parecidos com o que vivemos com o SARS-Cov-2. Mas isso para mim não prova nada porque em 1918 os sintomas que vimos com a covid-19 também ocorreram. Só não me lembro de ver referências aos chamados ‘dedos covid’, mas esta descrição de uma doença que podia afetar todos os órgãos também aconteceu na altura. Um segundo argumento são alguns estudos sobre este coronavirus OC43 que sugerem que entrou na população humana por volta daquela altura. Não sei quão preciso será, mas é uma hipótese que penso que se mantém em aberto. 

Com o impacto da pandemia de 1918 tão presente, como olha para esta e como será lembrada?

Como uma de vocês dizia no início, 1918 foi durante muito tempo uma nota de rodapé apesar da letalidade e dos milhões de pessoas que morreram. Mas esta pandemia dura há dois anos e afetou a forma como vivemos o nosso dia a dia. Seguramente vai ter um enorme impacto na sociedade. Se uma pessoa tem 13, 14 anos e teve dois anos com a escola a ser interrompida, não pôde estar com os amigos, isto deixa cicatrizes. Nunca se vão esquecer disto. E da arquitetura ao Zoom, sei lá, antes disto já praticamente só se faziam prédios em que não dava para abrir as janelas e agora vão pensar nisso. Vai afetar tudo. Portanto, o impacto na forma como vivemos vai ser seguramente maior do que a pandemia de 1918.

Tem havido alertas para uma crise de saúde mental. A pandemia de 1918 deixou sequelas a esse nível?

Uma coisa que também existiu foi aquilo a que chamamos hoje o longo covid (sintomas que permaneciam durante meses). Nos anos 20 aparece uma doença chamada encefalite letárgica, que foi ligada ao vírus, embora não definitivamente. Não há dúvidas de que em 1918 o vírus teve impacto neurológico, mais do que o reportado covid-19, mas mesmo a gripe comum pode ter efeitos neurológicos.

Esta doença encefalite letárgica – deixava os doentes catatónicos – foi ligada epidemiologicamente e especulativamente ao vírus de 1918 mas parece ter desaparecido. Em termos de doença mental, penso que não é muito claro que impactos houve. Uma das diferença significativa é que em 1918 as pessoas morriam de doenças infecciosas. O que para nós, sobretudo nos países desenvolvidos, já era menos comum.

Um sociólogo de Yale admitiu que poderemos ter de novo uns loucos anos 20 quando a pandemia acabar. Acredita nisso?   

Não creio que isso vá acontecer. Antes de chegarmos aos loucos anos 20 passou-se por uma recessão. E acho que a guerra foi muito mais determinante para esse estado psicológico de querer festejar até morrer do que a pandemia. Mas a pandemia deixou marcas. Há uma passagem em Berlin Stories, o livro de Christopher Isherwood que inspirou o filme Cabaret, em que escreve que quando os nazis entram em Berlim, foi como a influenza a entrar nos ossos. Vinte antes depois da pandemia, esperava que os leitores entendessem o significado daquele pavor. Houve um pavor que permaneceu durante alguns anos.

No seu livro escreve que a pandemia de 1918 mudou o curso da história. Defende que a doença do presidente norte-americano Woodrow Wilson condicionou o resultado da Conferência de Paz de Paris, o faria recuar na carta de 14 princípios e na ideia de um acordo de paz global sem punições. Depois do Tratado de Versailles, a Alemanha mergulha numa crise que leva à ascenção de Hitler.

Sim, Wilson teve um AVC mas creio que é claro que isso pode ter estado ligado a ter contraído o vírus em plenas negociações do Tratado de Paz. Antes disso, estava empenhado num acordo que refletisse os princípios pelos quais os EUA tinham entrado na Primeira Guerra, garantir a paz mundial. Teve influenza, isso afetou-o, todos à sua volta o comentavam. Lloyd George refere-se ao seu colapso no meio das negociações. Depois da doença afundou-se praticamente em tudo.

No meu livro cito John Maynard Keynes, que deixou Paris a dizer que Wilson era a maior fraude ao cimo da terra. Herbert Hoover acreditava que aquele tratado iria partir a Europa e disse-o. Teria sido assim se ele não tivesse adoecido? É impossível saber, mas podemos afirmar que ele adoeceu, que o ataque afetou a sua mente e que ele recuou.

Vê esta pandemia a alterar o curso da história para lá das mudanças no quotidiano?

Obviamente, não há um ponto decisivo como havia em 1919 com Wilson, por isso não há um acontecimento único que possa mudar tudo. Mas há impactos cumulativos que terão repercussões enormes, de longa duração, se não permanentes, provavelmente incluindo em termos políticos. Ninguém antecipou a resistência a vacinas que vemos nos EUA, em França, na Alemanha e noutros lugares … Como isso se infiltrará noutras coisas, ninguém sabe – a não ser podermos dizer que terá efeitos. 

Que cuidados continua a ter no seu dia a dia?

Monitorizo as condições locais. Continuo a sair mas uso uma máscara de qualidade – não de tecido – e decido com base nas condições se é ok comer dentro de um restaurante. Não vou a locais com multidões.