Teletrabalho afasta juízes dos tribunais

Desde um primeiro interrogatório a 300 quilómetros de distância, até juízes que não conhecem os colegas. O teletrabalho trouxe uma nova panóplia de opções ao mundo da Justiça, entre elas o afastamento dos tribunais físicos, e com ele efeitos não tão positivos.

Teletrabalho afasta juízes dos tribunais

A pandemia da covid-19 trouxe ao país uma nova realidade: o teletrabalho tornou-se cada vez mais comum e as tarefas passaram a poder ser realizadas, maioritariamente, à distância.

A Justiça não ficou aquém deste modo de trabalho e, agora, dois anos após o início da pandemia, há quem aponte o dedo aos efeitos colaterais que resultaram do trabalho remoto. Histórias de juízes que presidem a primeiros interrogatórios a 300 quilómetros de distância do tribunal, ou de profissionais que nem conhecem os colegas porque são raras as vezes em que estão, presencialmente, nos tribunais, são os exemplos ilustrativos das queixas de alguns magistrados.

Entre eles, por exemplo, Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), que, num artigo de opinião publicado no Boletim Informativo da ASJP, listou os exemplos. Para além daqueles já mencionados, Manuel Soares alertou para «julgamentos com os sujeitos processuais no tribunal e o coletivo de juízes disperso,  com uns elementos no tribunal e outros em casa, diligências de menores com o juiz em casa e os intervenientes presentes no tribunal».

«Todos conhecemos casos desses e sabemos como eles se estão a multiplicar», concluiu o líder da ASJP.

Mas o tema é transversal a toda a área da Justiça e causa também dúvidas entre outros magistrados, como é o caso de Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).

Ao Nascer do SOL, o líder sindical dos magistrados do MP começou por contextualizar a situação, esclarecendo que «o contexto decorrente da pandemia por Covid-19 determinou a necessidade de se apostar em meios alternativos de realização das diligências sem a presença física dos intervenientes, sobretudo num primeiro momento em que inexistiam quaisquer meios de proteção instalados e até disponíveis no mercado». A proposta, inicialmente, «levou à implementação nos tribunais de soluções de comunicação à distância  e novas formas de realização de audiências e diligências foram implementados nos tribunais». Uma solução encontrada «em tempos de desconhecimento, insegurança e incerteza perante uma nova realidade e a única capaz de permitir que o sistema judicial não paralisava por completo».

Adão Carvalho explica, no entanto, que, com o decurso do tempo, foram sendo implementados meios que permitiam a atividade presencial em segurança nos tribunais, com «o recurso à cedência ou aluguer de espaços, o acesso a máscaras de proteção,  etc.».

 

Distância reflete-se na qualidade das decisões

Uma medida importante, realça, «até porque se percebeu que em áreas como a jurisdição criminal, a família, o trabalho, tais meios não permitiam garantir a necessária imediação, contraditoriedade e liberdade dos depoimentos».

Mas o líder do SMMP faz ainda questão de reforçar que, apesar do ‘reencontro’ com as condições presenciais nos tribunais, «a pandemia determinou ainda uma nova realidade que, essa sim, ainda se mantém e que tem a ver com a ausência dos magistrados dos espaços físicos dos tribunais para além da comparência nas diligências agendadas e que têm de intervir»., Entenda-se, por isto, que «todo o restante trabalho de despacho dos processos é efetuado a partir das suas casas, através da plataforma ‘VPN’».

«Na minha perspetiva esse é a maior incógnita para o futuro pós-pandemia e o dado mais preocupante», augurou o magistrado, que continuou: «O afastamento dos magistrados dos espaços físicos dos tribunais, do convívio e contacto permanente com os funcionários judiciais, com os demais magistrados, com outros intervenientes processuais; as decisões tomadas no isolamento das suas casas; podem ter reflexos negativos não só nas relações interpessoais como na qualidade das decisões».

Maior arrogância, distanciamento, falta de razoabilidade e bom senso na tomada de decisões, com claros reflexos na qualidade da justiça prestada, são os ‘sintomas’ diagnosticados por Adão Carvalho, como resultado do «isolamento e a falta de discussão dos assuntos nos espaços físicos dos tribunais com os demais colegas e funcionários». 

Mas, afinal, que razões poderão estar por trás desta ‘multiplicação’ de casos em que os juízes estão fora das salas dos tribunais?  «Essencialmente a insegurança perante a pandemia e a necessidade de proteção dos próprios e respetiva família, por um lado, e o hábito decorrente de uma imposição inicial num quadro de pandemia e que se foi instalando, porque os ‘homens são animais de hábitos’», diz Adão Carvalho.

Mais, o líder do SMMP alerta para a possível perda de confiança dos cidadãos nos tribunais como resultado destes casos, argumentando que esta confiança «também depende dessa perceção e da presença física dos magistrados, advogados e funcionários nos tribunais». Este convívio, aliás, também contribui para uma justiça mais «humana, mais próxima do cidadão», defende o líder sindical dos magistrados do MP, que conclui: «Os magistrados não se podem fechar em casulos, fora do mundo real, sob pena de tal ter efeitos nefastos na qualidade da justiça.»

Em jeito de conclusão, Adão Carvalho argumenta que «o recurso a meios de comunicação à distância deve ser, sempre, a exceção», e que «as diligências e julgamentos devem ser, em regra, presenciais, onde magistrados, advogados, arguidos, testemunhas e demais intervenientes processuais, estão frente a frente, num único espaço», já que «a perceção correta da prova exige ritmo, imediação, oralidade, análise da postura dos intervenientes, contraditoriedade, fatores só possíveis com a presença física e que são essenciais na formação da convicção do decisor».

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