Sérgio Godinho: “Sou um criador de pavio curto”

Depois do romance Estocolmo, publicado ainda em ano a.C. (antes da Covid), Sérgio Godinho volta a responder à chamada da literatura. O seu mais recente livro, publicado pela Quetzal, propõe um diálogo entre poemas e fotografias.

Sérgio Godinho: “Sou um criador de pavio curto”

No seu talento versátil, Sérgio Godinho conjuga-se e declina-se criativamente em várias partituras: ora como escritor de canções que nos andam na memória, ora como poeta e romancista; ali como ator, aqui como pintor de aguarelas e acrílicos. Houvesse um competente coveiro de epítetos e ‘cantor de intervenção’ ou ‘homem dos sete ofícios’, também fatalmente designado pelo ‘dos sete instrumentos’, aplicados a Sérgio Godinho, estariam há muito enterrados: morte por desgaste, estafamento – e desvalia. A arte é o seu ofício único. A intervenção o seu modo de estar no mundo – musical, verbal, pictórico. Enquanto esse técnico de profundidade (como agora se diz) não chega, Sérgio Godinho vai-se metamorfoseando para longe de cómodas classificações. Está vivo e nem sempre escreve sol.

É sólida a relação que o autor mantém com as artes. Essa relação, com variações de nitidez e de intensidade, tem-se pautado pela volubilidade. Fidelíssimo à música, abre-se à sedução da ilustração, da pintura, do teatro e do cinema, mas também da fotografia, com a qual mantém um relacionamento mais ocasional. É um caso de poligamia artística, um sistema de união com mutáveis protagonismos, pouco propensa a hierarquias, de modo a evitar graduar um amor que, à partida e em cada momento, será sempre máximo, deixando entender que nenhum outro valor, entre os que o seu trabalho afirma, se sobrepõe ao irrestrito exercício da liberdade da criação.

No seu mais recente livro, Palavras São Imagens São Palavras (ed. Quetzal), poemas e fotos dispõem-se a dialogar. Os temas são diversos: o amor, a passagem do tempo e a especial consciência dele, a grande morte mas também as pequenas mortes de todos os dias, «a roleta do destino a descumprir-se», a posteridade. 

O formato da vizinhança imagem / poema a cada dupla página não prende o poema ao campo de visão que cada fotografia propõe. Os poemas não são cópias verbais de objectos fotográficos. A subjectividade da impressão e a vontade interpretativa suplantam o registo descritivo. Céus (numa variedade assinalável), grades, mais ou menos flexíveis, portas e janelas com saídas nem sempre praticáveis, são estruturas que neste livro se repetem ritmicamente, como numa pauta musical. 

Depois dos romances Coração Mais Que Perfeito (2017) e Estocolmo (2019) regressa ao campo da literatura com um livro de poemas e fotografias. Distingue entre letras de canções e poemas?

Estocolmo, não pela cidade, mas pela síndrome. Tenho uma amiga que quando soube do livro disse que já estava a imaginar as paisagens brancas [risos]. Disse-lhe que lamentava mas não, não iria ter muita sorte… Bom, é muito difícil definir onde está a linha divisória entre canções e poemas, até porque há canções com letras extremamente simples que apelam a um sentido poético; e outras não. É evidente que seria difícil dizer que certas letras de canções são poemas. Para mim, as minhas letras são poemas. A questão é se esses poemas são bons ou maus.

Parece-lhe que por detrás da distinção está um preconceito? Como se a uma letra não se reconhecesse estatuto literário ou capacidade de ir «ao fundo do mundo»? Como se a poesia pudesse sempre definir-se através de uma sobrecarga retórica e metafórica em relação à restante linguagem, cavando assim uma distância que as separasse? Ou um certo sentido nobre se tivesse ausentado quando falamos das letras?

O que é esse ‘sentido nobre’? Quem o define? Acontece-me por vezes, nos meus concertos, deixarem-me no camarim ou até entregarem-me pessoalmente livros de poetas ignotos. Já tive algumas boas surpresas, sem dúvida, mas muitas vezes penso: isto é classificado como poesia porquê? Sim, tem uma forma que se assemelha à poesia, mas… parece-me ser só isso. Eu, pelo menos, não atinjo o porquê. A própria noção de poesia foi mudando com os tempos. Certos poetas, sobretudo quando se entra no verso branco ou no verso livre, não seriam considerados poetas há um ou dois séculos atrás. Os cânones foram mudando e aquilo que tem o nome dessa catedral da poesia não se aplica. Álvaro de Campos não seria considerado um poeta, nem mesmo o seu ‘pai’, Walt Whitman. Até em poemas com rima, nem tudo seria considerado poesia há uns séculos. Agora se me pergunta se as minhas letras são poesia, eu digo que sim.

Não lhe interessa classificá-la, presumo.

Eu procuro que seja boa e trabalho nisso. Não sou de modo nenhum um imediatista. Várias pessoas me dizem: ‘Aquilo deve sair assim já tudo feitinho’. De maneira nenhuma. Trabalha-se muito para chegar a uma impressão de fluidez. Essa é a grande vitória, mas lá que dá trabalho, dá. Até porque as letras de canções obedecem a códigos de rima, de métrica, de prosódia que são muitas vezes cerrados para que a canção possa fluir. E outra coisa: ao contrário do que possa parecer, começo geralmente pela música. E a frase, mais do que a palavra, vai aparecendo e já tem ali uma cama onde se deitar e onde se levantar [risos]. Ela está também subordinada à tal cama poética, musical, para que subsista.

Mas é verdade que há poemas que valem por si só, da mesma maneira que os poemas deste seu novo livro poderiam aparecer despidos do seu complemento visual. 

Uma vez fiz um exercício que me foi proposto pela Casa Fernando Pessoa, creio que na altura dirigida pela Inês Pedrosa. O desafio era dizer letras das minhas canções abstraindo da música. Cheguei à conclusão, naturalmente, de que era um exercício dificílimo, porque a música de certo modo já lá está. E portanto se eu digo «cansados vão os corpos para casa…» [trauteia], já estou a dizer isto com uma certa cadência, uma certa entoação e é muito difícil desligar disso. Foi interessante e enriquecedor. São dois objectos que já nascem juntos, acoplados, e parece que é só um. É evidente que já houve uma coisa chamada Canções de Sérgio Godinho, publicada pela Assírio & Alvim (1977), já houve várias versões instrumentais de canções minhas (e mesmo aí há versões que tornam a canção diferente), mas o objecto completo são as duas coisas juntas.

Voltando aos poetas e escritores ignotos e juntando-lhes o desaustinado mundo da edição. Acha que o crivo da crítica está cada vez mais largo?

É evidente, também em relação à prosa, portuguesa e estrangeira, mas falemos só da literatura portuguesa. A maneira como se escreve não é a mesma de há um século. Hoje em dia, os escritores não escrevem como Eça ou Camilo, embora a construção frásica não ande assim tão longe. Eu escrevo de uma maneira que considero bastante clássica; não gosto de ousadias formais desnecessárias. Por exemplo, no livro de contos [Vidadupla, 2014] pratiquei uma coisa que depois praticamente abandonei: o uso de três adjectivos sucessivos para definir uma coisa, o que às vezes era um pouco contraditório, mas foi uma experiência interessante. Se pensarmos que Machado de Assis fez um livro como as Memórias de Brás Cubas, que é de uma enorme modernidade, muito para lá do estilo e das formas romanescas do Eça, com quem tantas vezes tem sido comparado, a sua actualidade é incrível. É pena que seja ainda muito desconhecido cá em Portugal, e lamentável. Não estou a dizer que os brasileiros não sejam também desconhecedores de muitas obras da literatura portuguesa, porque são. Há um hiato entre os nossos conhecimentos mútuos, que também passa pela música. Mas é interessante observar que no Machado de Assis há uma língua portuguesa muito mais próxima de nós do que aquela que a literatura brasileira agora pratica.

E o crivo crítico? 

Esqueçamos – como se fosse possível – o crivo das redes sociais, do qual nem é bom falar. Mas na crítica praticada em jornais, revistas, blogues … é verdade que às vezes há elaborações que se fazem sobre um texto que são bastante absurdas, que extravasam completamente aquilo que foi dito. Parece que estão a construir um texto mais importante, na sua crítica, que o próprio texto criticado. Isso também acontece muito na crítica de artes plásticas. Não vou dizer que coisas que estão no limite do minimalismo, ou o que for, não são válidas, mas quanto a mim não merecem um tal grau de valorização que é feito em torno delas.

Na sua opinião, isso fica a dever-se a quê?

Não tenho um discurso contra a crítica. Em relação à crítica posso dizer o que já constatei quando comecei a escrever noutros campos, nomeadamente a ficção narrativa. Há, com excepções, uma espécie de … talvez possa chamar-lhe distracção em relação a esses objetos. O Sérgio Godinho faz muito boas canções e tal… Enfim, tenho de levar com isto, porque há toda essa carga, esse lastro e eu até compreendo. Está colado a mim de uma maneira forte. Se eu tivesse medo de me meter noutras áreas, noutros campos criativos, não o fazia.

Entre nós, não parece haver muita complacência para os ditos homens dos sete instrumentos. E, por vezes, nem é preciso mudar de instrumento, basta saltar desembaraçadamente de registo. Tem sentido, no campo da literatura, muitos mas, reticências…?

Algumas. As pessoas sabem que eu sou um pouco poliédrico. Não sou maltratado mas a menos importância que se dá, nesse campo, é outra forma de exprimir isso. Repare, quando o Bob Dylan ganhou o Nobel houve reacções que eu achei patetas e patéticas, de alguns cá e no estrangeiro, inclusivamente de quem já ganhou o Nobel, como o Vargas Llosa, que disse: «Ah, para o ano vão dar a um toureiro». Nem vou dar mais exemplos, por delicadeza. O Bob Dylan, e eu conheço bem o seu trabalho, é um grande criador, que tem uma relação com a musica tradicional americana, com o universo beat. Não é por acaso que ele tem um clip de uma canção chamada ‘Subterranean homesick blues’, em que ao fundo está o Allen Ginsberg. Mas já se sabe, quando se pisa outros jardins… Mas creio que foi uma vez, há tantos escritores bons que estão na fila. Mas, lá está, o Salman Rushdie aplaudiu.

É vital para si, a criação?

Absolutamente. Tenho necessidade de criar, não no sentido mórbido. Eu tenho prazer em criar. E não perfilho muito daquela ideia de que toda a criação é sofrimento, é dor. O que eu passei para compor aquela canção, o que eu sofri para publicar este livro. Nada disso. É claro que se sofre quando não se está contente com o resultado até chegar ao que se pretende, mas isso faz parte. Um corredor de maratona também sofre aos 10, aos 20 km, porque está quase a desistir e por vezes desiste. Nem sequer é isso. Eu vou procurando, mesmo porque também, neste tipo de criação, não me imponho metas, prazos. De vez em quando, imponho-me prazos mas é mais em relação às canções. Quando estou muito tempo sem criar, seja o que for, começo a ter uma impaciência e um desagrado físico de que não gosto.

E isso, sim, é um sofrimento?

Sem dúvida. Criar é a satisfação dessa necessidade. Este é um exemplo um pouco abusivo, até porque nunca consumi heroína, mas nas drogas de habituação, como a heroína, o prazer é a satisfação da necessidade, que está a ser uma angústia, um sofrimento. É por isso que se fica agarrado e é disso que se servem os dealers. Isto não anda muito longe doutros aspectos da sociedade de consumo, cria-se uma necessidade que tem de ser satisfeita.

Curiosamente, também nas suas canções e até neste novo livro – mas não apenas neste – mesmo o que aparece sob o signo da perda, nunca é dramatizado. Prefere outros registos, mais subtis, mais irónicos, mais lúdicos…

Eu não tenho o sentimento do pathos. Cheguei a falar disso com o Zé Mário [Branco], que, ele sim, tinha um sentimento trágico e eu sempre o admirei. Fui amigo dele até ao fim. Não cresci com isso, não está nas minhas características, no meu ADN.

Na sua relação com as várias artes, há hierarquias, preferências, protagonismos?

Não, não hierarquizo, embora algumas delas sejam mais ocasionais. Por exemplo, o meu trabalho de actor foi sempre um bocado ocasional, embora no teatro tenha feito coisas mais interessantes que no cinema. Em novembro passado, durante doze dias, estive a trabalhar como actor num novo filme português, do João Maia, que realizou o Variações. Foi um trabalho muito agradável, pela relação com a equipa, com os actores, com o próprio João Maia, mas não foi muito interpelante. Faz-se. Ao passo que coisas que fiz com o Ricardo Pais, com o João Canijo, o Jorge Silva Melo, nos Artistas Unidos, foram trabalhos muito mais exigentes, desafiantes.

Mas é verdade que as canções ocupam um especial lugar?

Sim, as canções e o universo que eu fui construindo, a feitura de canções, o trabalho de estúdio, o momento em que essas canções são arquitectadas com músicos. Tenho a mesma banda [Os Assessores] desde o princípio deste século (fica sempre bem dizer [risos]), embora com hiatos, porque fiz muitos concertos com outras formações. Mas o concerto, a prática da canção num palco, é o que me dá mais gozo. É quando a canção cumpre enfim a sua função plena, nesse contacto com o público. E depois agrada-me também esse risco, que eu gosto de assumir, de ir para um palco e aí ficar, do começo ao fim. É uma viagem que não pode ser interrompida, a menos que aconteça alguma coisa grave.

E já aconteceu?

Sim, mas eu procuro continuar. Há uns anos, não tantos assim, num festival de música portuguesa, o Festival Bons Sons, em Cem Soldos, uma aldeia perto de Tomar, eu era o cabeça de cartaz e no último dia tropecei e caí do palco, à frente. Fui para trás, vieram os bombeiros. Tinha dois grandes lenhos profundos na testa mas disse que queria continuar. E assim foi: depois de me enxugarem o sangue, voltei ao palco, terminei o concerto e, depois sim, fui para o hospital, onde acabei por levar nove pontos. 

The show must go on…

Gosto que as coisas continuem a acontecer. Sentia-me bem, na medida do possível, era o último dia… A energia que o público nos dá é uma força muito forte e eu relaciono-me muito com essa energia que se transmite, que se leva e se deixa no fim de um espectáculo. É diferente o grau de exigência que temos como profissionais, ou é complementar. Uma coisa é querer fazer bem, outra coisa é sentir que essa energia nos dá uma espécie de brio suplementar e que temos de ser rigorosos para não fazer má figura.

Centremo-nos no novo livro, que põe a dialogar poemas e imagens. A capa reproduz a foto de uma Bic. A julgar pelo poema que lhe corresponde [«Uma mão e uma Bic»], ela é bem distinta da Bic de um Herberto Helder, a canalizar uma força criativa que o excedia e trespassava. 

A escrita é um ofício. Aquela Bic, que é um clássico, é um pouco simbólica. Eu escrevo sobretudo a computador. A essência deste livro é a relação que os poemas mantêm com a imagem, o que me interessa são os reflexos, as consequências, como essa foto mostra. E mais uma vez estou a trabalhar com dois meios de expressão. As fotografias são minhas, tirei-as sem nenhuma preocupação de servirem o poema, bem pelo contrário: há uns oito casos em que foi a imagem que me sugeriu o poema, como é o caso da fotografia dos degraus que abre o livro e que dialoga com o poema «A cada degrau». Aí, a relação é mais que óbvia.

Noutros casos, essa relação é mais enigmática …

Mas há sempre uma interação, uma união de facto entre uma coisa e outra, e eu gosto disso. Vou escrevendo poemas sem preocupação, sobretudo à noite. Escrevo geralmente à noite porque tudo pára e a noite parece que vai durar para sempre. Na canção ‘Lisboa que amanhece’, diz-se que «as dádivas da noite são eternas». Não sou propriamente um noctívago, mas gosto mais de escrever à noite. E entretanto ganhei, mais no que respeita à prosa, algo que eu não conhecia: o sentido da continuidade. É interessante, no dia seguinte, ir ver o que se fez. Por vezes, no outro dia, não é tão bom quanto nos pareceu. Mas estes poemas não foram feitos para ilustrar nada. Este livro tem alguns pontos de contacto com O Pequeno Livro dos Medos: comecei a fazer aguarelas e comecei a encontrar nexos – figuras, pessoas, bichos – que começaram a dirigir a história para um determinado lugar. Neste livro, foi caso a caso, tratei cada um como uma entidade. Não sou monotemático, ou monocolor, mesmo musicalmente acho que tenho uma paleta extensa.

Há um bem conseguido poema chamado «O futuro esqueleto dos abutres». Somos os nossos próprios predadores?

A foto foi tirada no Museu da Ciência, da Universidade de Coimbra. Mas sem dúvida que sim. Basta ver, já nem direi os casos extremos de guerras, de massacres mas, de uma maneira mais comezinha, nas relações amorosas, familiares. Muitas vezes há um lado predador que pode surgir e ser extremamente nocivo. Não é por acaso que tantas relações se desintegram. E outras que não se desintegram mas deveriam, porque aí o predador tem a mão na sua presa. E mais: a presa não é só vítima, acaba por colaborar. A vítima não é tão neutra e tão inocente como isso. Não há essa força.

São algumas as estruturas que se repetem ritmicamente, como se estivéssemos diante de uma pauta musical. Uma delas é o céu, nas suas muitas variações. É uma inclinação?

Tenho imensas fotografias de céus, céus com nuvens; interessam-me as dinâmicas, os movimentos concêntricos. Há no livro uma fotografia, tirada em movimento, nas estepes áridas da Patagónia, em que parece que as nuvens estão a convergir, que se convocam para um ponto em que a água se vai derramar sobre a terra. Muitas fotos são tiradas com iPhone, que permite boas fotos mas com recursos limitados. O que me interessa não é o lado estético, não as vou expor numa galeria.

Há também uma foto de um ralo de banheira, que conversa com um poema admirável. Parece-lhe que nos tornámos incapazes de tapar o ralo por onde todas as imagens se escoam hoje, quase indistintamente, deixando apenas um ruído branco?

As redes sociais trazem-nos sempre fixados em imagens diferentes, roubando-nos a capacidade de concentração. Mas há aquela célebre frase «uma imagem vale mais que mil palavras» e há o genial Millôr Fernandes que diz: «sim, mas tentem dizer isto numa imagem». É de uma sabedoria enorme. Eu, por natureza, já sou um bocado disperso e tenho sempre as antenas ligadas. Não consigo estar muito tempo a trabalhar numa só coisa muitas horas. Sou um criador de pavio curto. Até por isso, tenho de me controlar para não estar permanentemente a ser interpelado por todos esses outros estímulos.

Quem lê as suas entrevistas e está atento ao seu trabalho e à apreciação que, aqui e ali, vai fazendo dele, rapidamente dá conta de que a falsa modéstia está arredada do seu discurso. Desagradam-lhe as falsas modéstias?

Sim, desagradam, porque acho que é uma atitude vã. E é inútil. Eu faço sempre um exercício… nem é bem um exercício, acontece. Quando acaba um concerto, as pessoas aplaudem, levantam-se e ficam de pé e há um momento de ‘glória’ que não pode ser tomado por mais do que isso, um momento. E eu tenho muita consciência disso. E muitas vezes, no final do espectáculo, rumo ao camarim, passa-se ao lado do palco ou até pelo palco – tudo está a ser desmontado – , olhamos a sala vazia e dizemos: ‘Já acabou, não acredites em mais do que isso’. E isso é um exercício de humildade. Acho que posso usar esta palavra, embora ela traga agarradas umas coisas que podem ser mal entendidas, como a hipocrisia. Conheço tantas pessoas que admiro e que não recebem palmas, que não são figuras públicas. Há coisas que me dizem na rua que me nutrem muito. E por vezes são simples agradecimentos. Mas não é para ficar vaidoso. Uma vez, houve uma rapariga que me interpelou na rua, só para agradecer também, e disse-me: ‘Você constrói-me’. E eu fiquei surpreso. É muito bonito. Mas não tenho, não, a falsa modéstia é um sentimento da treta.