Crianças viciadas no português do Brasil

Se há quem a veja como motor de “falsas polémicas”, outros garantem que existem crianças que mal sabem falar português de Portugal. Mães, uma tia, duas professoras, uma psicóloga e uma terapeuta da fala analisam a dimensão deste fenómeno.

A influência do português do Brasil é cada vez mais forte entre as crianças e os jovens portugueses devido aos conteúdos que consomem nas plataformas digitais. Os influencers do YouTube e do TikTok, assim como os vídeos de cariz didático destas redes sociais, captam a atenção dos mais novos. Apesar de o tema não ser recente, existem algumas questões que se impõem: os vídeos produzidos por portugueses são menos apelativos do que aqueles veiculados por brasileiros? Quais são as maiores falhas nos materiais educativos e recreativos criados em Portugal para os mais pequenos? Existe uma escassez dos mesmos?

“Sempre gostei do português do Brasil, acho que tem um som muito bonito e uso-o às vezes cá em casa. A minha filha e o meu neto de três anos também e não vejo problema algum”, começa por explicar a lisboeta Marina Ponte, adiantando que, na sua ótica, “não há YouTube a mais nem a menos”, sendo que, quando se encontra com a família na rua, nota que algumas pessoas estranham as brincadeiras que têm enquanto dialogam.

“Quando estou com a minha filha, por vezes, há pessoas que pensam que somos brasileiras. É uma brincadeira e não vejo que seja um problema: é português… Dizer que se perdem as raízes com o português do Brasil é igual a dizer que quem sai do norte e vai morar para o sul – ou vice-versa – também está a pôr em perigo as suas raízes”, argumenta, avançando que “pode explicar-se o uso correto do português por motivos escolares”, contudo, não encontra outra justificação. “Por ‘medos’ não me parece que seja útil. Aproveitem a idade ‘esponja’ da criança e falem outras línguas em vez de procurarem cabelo em cabeça de careca”, remata.

“Alguma dificuldade de compreensão” “Tenho assistido a um número crescente de crianças filhas de pais portugueses que não têm ninguém na família que fale o português do Brasil, mas chegam às consultas de terapia da fala precisamente por dificuldades na língua”, confessa a terapeuta da fala Lígia Lomba. “Tendo em conta que há palavras que nós usamos no português de Portugal que são diferentes das do português do Brasil, começa a haver aqui alguma dificuldade de compreensão e misturam as duas”.

“No final, o discurso acaba por ficar confuso. O português do Brasil é mais apelativo e fácil de captar do que o português de Portugal, e quanto mais as crianças ouvirem dessa forma os vídeos mais vão assimilar essa forma de falar e o português de Portugal é deixado para trás”, observa, alinhando-se com a psicóloga Mónica Nogueira Soares que narra um caso peculiar que teve em mãos.

“Isto tem a ver com a forma como aprendemos ao longo da nossa vida: está muito influenciada por aquilo que o nosso meio ambiente nos dá. Portanto, uma criança que fica exposta, durante algum tempo, a conteúdos que não estão na língua que os pais falam, obviamente que vão fazer essa aprendizagem. Estamos a falar do português do Brasil, mas poderíamos estar a falar de outra como o inglês”, constata, recordando que acompanhou uma criança que só sabia dizer as cores nessa mesma língua. 

“Identificava perfeitamente as cores, mas dizia ‘green’ e, quando eu respondia ‘não, é verde’, ela não entendia. Não associava as cores à nomeação portuguesa e tinha somente três ou quatro anos”, conta a profissional de saúde. “Os conteúdos em português do Brasil estão desenhados de forma a que as crianças se identifiquem com os mesmos. E os pais têm a tendência de reproduzir mais esses para conseguirem, em determinadas situações, manter o foco e a concentração da criança para que coma a sopa, esteja num restaurante sossegada, etc.”.

“E esta reprodução de conteúdos, de forma continuada, leva a que sejam absorvidos. Esta criança que tive em consulta, durante muito tempo, via um vídeo que ensinava as cores em inglês e, portanto, aprendeu. Os pais, quando brincavam com ela, percebiam que não as nomeava em português. E se, por um lado, inicialmente até tinha alguma graça, por outro, rejeitava aquilo que os pais diziam. E isto acabou por ser, de facto, um problema”, narra, admitindo que, para aquela criança, “a linguagem fazia todo o sentido”, porém, os progenitores não concordavam com a mesma.

“Estas crianças acabam por compreender aquela realidade como sendo aquela que lhes faz sentido e reproduzem isto no seu quotidiano. E, daí, surgem expressões como ‘mamãe’, ‘papai’ e muitas outras. E, da mesma forma que falamos no contexto da educação de infância, as crianças também reproduzem aquilo que veem. Se uma no contexto de sala de aula morde os colegas, quem está a assistir, se estes comportamentos não forem devidamente moldados, pode identificar isto como modelo a seguir. E o mesmo acontece com o YouTube, a televisão e todos os conteúdos”, raciocina, recomendando que, por estes motivos, “devem ser adequados à idade” e os pais devem sentir-se seguros com a visualização dos mesmos pelos filhos.

“Se não for acompanhada e os conteúdos não forem integrados, poderão ser reproduzidos de forma adequada, mas também podem acontecer desaquações porque vai interpretar aquilo que está a ver à luz daquilo que são os seus quadros referenciais internos” e, assim, há a necessidade de um adulto monitorizar esta atividade. 

Para Mónica, que pode ser encontrada no Facebook na página “Mónica Nogueira Soares – Psicologia da Educação & Mediação de Conflitos”, “os pais devem explicar a diferença entre o português do Brasil e o de Portugal”, sendo que tal “não tem a ver com estranheza, mas sim com línguas diferentes” e, se os mais pequenos tiverem esta noção, podem utilizar harmoniosamente conceitos de ambas.

Tio Patinhas e Zé Carioca “Quando era miúda, os livros do Tio Patinhas eram em português do Brasil, da editora Morumbi. Além desses, lia a Turma da Mónica, Zé Carioca e Recruta Zero. Ainda tenho muitos que não dou nem vendo, apesar de já ter tido ofertas”, explica a conimbricense Teresa Costa, que reside em Famalicão, frisando que por outro lado, “a televisão era composta por dois canais que funcionavam depois das 18 horas porque antes o tempo de transmissão era para a Telescola”.

“A novela depois do telejornal era uma instituição nacional. A Escrava Isaura, Ciranda de Pedra, O Bem-Amado, entre tantas outras que vieram a seguir. Foi com elas que aprendi a dizer trem, supimpa, ônibus, arretado, cabra da peste, etc.”, afirma, declarando que, devido à infância, é capaz de distinguir, a título de exemplo, um sotaque de alguém do Nordeste e o de Santa Catarina. “A minha geração teve muita exposição à variante brasileira e não deixou de saber português de Portugal por causa disso”.

“Nenhum mal saiu daí, quando muito, estamos mais bem preparados para entender um brasileiro do que ele a nós! Parem de tentar culpar os brasileiros por não terem tempo para verificar os conteúdos que eles consomem na Internet”, sublinha. “Vão propor o quê? Barrar conteúdos brasileiros em Portugal? Estas falsas polémicas só criam divisões escusadas. E patéticas!”, reconhece a mulher que considera que “há muita xenofobia disfarçada de amor à língua e pais que deixam as crianças horas com um tablet na mão e depois vêm exigir ‘medidas’”.

“Muitos dos nossos conteúdos usam um tom de voz e umas roupas muito infantiloides… Como se os miúdos fossem lentos e daltónicos”, critica, lembrando que “Sophia de Mello Breyner começou a escrever contos infantis porque tudo o que havia era confrangedor”, sendo que, na sua ótica, “se estupidificarmos as crianças elas vão procurar outras coisas” e frisa que tenta afastar o sobrinho de três anos dos gadgets para que se envolva noutras atividades.

“Já sabe tirar os talheres da máquina da loiça, dar comida aos gatos e cães, ajuda a pôr a mesa, sabe as cores das cápsulas do café que cada um toma… É claro que pôr a mesa sozinha me leva muito menos tempo. Também adora ver as montras, conversamos sobre o que vê… Mas isso dá trabalho, claro. As crianças são muito mais inteligentes do que as pessoas acham”, diz, concluindo que “não há milagres e é mais fácil ceder a um ecrã”. 

“Oportunidade de alargar conhecimentos” O facto de o português do Brasil se misturar com o português de Portugal em muitos lares portugueses já foi analisado por vários órgãos de informação nacionais e internacionais. Em abril de 2021, podia ler-se no jornal O Globo: “É uma invasão 2.0, para ficar na linguagem da internet. Após a tomada das televisões do país pelas novelas em meados dos anos 1970, agora os portugueses sintonizam canais brasileiros no YouTube. Se a brejeira Gabriela de Sónia Braga atrasava o trabalho dos deputados no Parlamento enquanto estivesse no ar, os irmãos Felipe e Luccas Neto renovaram a audiência pelas redes. Influenciados pela dupla carioca, crianças e jovens de Portugal trocam ‘gajo’ por ‘cara’ e já não saem com a ‘malta’ para ficar com a ‘galera’.

“Leciono uma Atividade Extra Curricular (AEC), nomeadamente o Ensino da Música, numa escola do Norte. Relativamente às minhas turmas, nenhuma criança portuguesa apresenta vocábulos típicos da variedade linguística português do Brasil”, refere a professora Paula Joana Guimarães, que exerce funções no Agrupamento de Escolas Júlio Dinis, em Gondomar. 
“Penso que se deve desconstruir essa ‘problemática’ e compreender que vivemos com uma geração que está em contacto constante com muitos estímulos”, aponta. “Estímulos esses provenientes de diversos pontos do mundo, seja por contacto direto ou via Internet – redes sociais/jogos online. A escola tem o papel de ajudar a criança a construir a sua identidade e a compreender o mundo ao seu redor. Assim, deve ver-se esta situação como uma oportunidade de alargar conhecimentos e potencializar a empatia e o respeito”.

“Sou professora de apoio desde 2009 e sou recentemente mãe. Enquanto professora reparo que os alunos, para além de escreverem com muitos termos em português do Brasil, também usam abreviaturas como ‘a minha mãe tá a comer um gelado’ e o gerúndio: ‘estou digitalizando o documento’”, indica a arquiteta Neuza Fonseca que, antes de engravidar, esteve no KIDS CLUB Miraflores, um Centro de Explicações e Atividades Educativas no concelho de Oeiras.

“Em relação ao YouTube tenho tido dificuldade em encontrar músicas infantis em português de Portugal, mas encontro muitas em português do Brasil. Lá encontrei, depois de muita procura pelos vídeos, o Panda e o Caricas e as músicas da Carochinha”, explica. “A verdade é que os pais muitas vezes não querem procurar e não se preocupam com isso ou simplesmente não têm tempo e acham que não faz mal. E não faz, só se a criança está a aprender a escrever e a ler. Está errado? Cada um sabe de si, mas para mim está”, destaca a explicadora de alunos até ao 9.º ano do 3.º ciclo do Ensino Básico, do Ensino Secundário e do Ensino Superior das unidades curriculares da área da arquitetura.

“Acho que o povo brasileiro tem mais tendência em fazer dobragens do que nós. O Brasil, em questão de dimensão de população, é maior. Por isso, a produção de vídeos, jogos etc. é maior, mas também acho que o povo português é mais comodista”, afirma, acrescentando que acredita que, como já existem conteúdos em português do Brasil, consideramos que não vale a pena desenvolver os nossos. 

“É pena. O meu marido gostava de mostrar vídeos do Dragon Ball ao nosso filho daqui a alguns anos e disse que só os encontra na versão de português do Brasil no YouTube. Não acho errado que os miúdos vejam vídeos em português do Brasil – não brasileiro – porque, efetivamente, também os veem em francês, inglês, espanhol e por aí fora”, explicita, esclarecendo que “o problema está em transpor essas expressões ou palavras num texto da escola ou num teste de português de Portugal. Aí está o problema”.

“Se querem deixá-los ver vídeos em português do Brasil, então façam o trabalho de casa e mostrem-lhes a diferença”, sugere, acreditando que entender a variação linguística existente é uma tarefa fundamental. “Para mim podem mostrar os vídeos em qualquer língua. Naturalmente irei fazer o mesmo, mas sei que terei de explicar as diferenças”. 
E existem dados que confirmam a informação disponibilizada pelas docentes. Por exemplo, na tese de mestrado em Ciências da Educação intitulada d’“O insucesso escolar em língua portuguesa. Um estudo de caso”, da autoria de Célia Maria Vaz Alves, apresentada à Escola Superior de Educação João de Deus, em 2010, lê-se: “Dos resultados obtidos e à luz do enquadramento teórico em que se baseou este estudo, concluímos que a classe social é um fator determinante no insucesso escolar e é fulcral o acompanhamento do encarregado de educação”.

“As causas do insucesso escolar apontadas pelos entrevistados foram a falta de incentivo, de conversa com a família, a permissividade da família, a falta de leitura. Através do testemunho dos alunos, concluímos que as atividades diversificadas e com algum caráter lúdico desenvolvidas foram as preferidas e fundamentais para minimizar as dificuldades, que juntamente com o seu empenhamento originaram uma melhoria significativa no aproveitamento e um interesse maior pelo hábito de ler”.
 

A fama de Felipe e Luccas Neto “Como brasileira, preciso dar minha opinião a respeito: o português ‘abrasileirado’ está para além dos vídeos e conteúdos de internet. Está nas próprias escolas e outros espaços lúdicos, visto a grande quantidade de imigrantes que vivem cá”, explicita Elizabete Mercês, natural de Recife, capital do estado de Pernambuco, e que vive em Barcelos. 

“Penso ser adequado conversar com educadoras, ter um ponto de vista mais empírico. Além disto, quero dizer-lhes que a educação sempre será a primeira escolha . Estes vícios de linguagem são, para mim, como a diferença entre portugueses do sul e do norte. Sem querer simplificar a discussão. O mais importante é quem os nossos filhos serão no futuro, pessoas que possam, acima de tudo, respeitar as diferenças e ser tolerantes. Acho esta uma preocupação mais coerente e muito mais adequada para notícias atuais”.

Deste modo, depois de conhecermos o ponto de vista de Elizabete, faz sentido regressarmos ao artigo publicado n’O Globo há dois meses. “Não entendeu? Os pais portugueses também não. Foram atingidos pela chuva de ‘joinhas’ que dominou a web portuguesa. Precisam traduzir os próprios filhos, porque virou moda se expressar em ‘brasileiro’, como chamam em Portugal, com um tom de discriminação, a derivação da língua portuguesa escrita e falada no Brasil”, foi redigido, sendo aprofundado o impacto de Felipe e Luccas Neto que “têm juntos mais de 70 milhões de seguidores no YouTube, sete vezes a população de Portugal”, sendo que “as entonações e gírias da dupla estão na ponta da língua e na palma das mãos, agarradas nos celulares”.

O primeiro – de 33 anos – é conhecido do público por se ter destacado no YouTube, numa fase inicial, como comentador de celebridades, de atividades do quotidiano e filmes, apostando na crítica e na comédia, sendo o primeiro brasileiro a conquistar um milhão de seguidores, no canal, no Brasil. O segundo, irmão deste, de 29 anos, é ator e comediante: curiosamente, como foi noticiado pelo Folha de São Paulo, fará a dobragem das suas “produções disponíveis em Portugal com a variação linguística da língua portuguesa no país, segundo sua assessoria confirmou ao F5. A dublagem deve ser realizada em 2022, e não apenas no português de Portugal”.

“Em novembro deste ano, o jornal lusitano Diário de Notícias apontou que crianças portuguesas estariam falando apenas ‘brasileiro’ devido às produções do youtuber. ‘Para o ano que vem, a empresa [Luccas Toon] vai dublar todos os nossos episódios no YouTube, além dos filmes e séries’”, foi anunciado sobre as novidades que surgirão no ano corrente. A assessoria da figura pública asseverou que esta decisão “faz parte do processo de internacionalização da marca dele, devido ao grande alcance internacional em diferentes países que ele tem conquistado”. 

À época, em entrevista ao jornal O Globo, Luccas elucidou que, por trabalhar com o universo infantil, optou por não se envolver em qualquer polémica. “Resolvi encontrar uma solução: decidimos dublar nossos episódios e filmes em português de Portugal”, expôs o youtuber que tem dupla cidadania, pois a sua avó materna é portuguesa, segundo o jornal. 

Contudo, é de realçar que, apesar disto, a polémica continuou a crescer virtualmente. “O medo do imperialismo linguístico do Brasil e o nacionalismo pouco discreto da reportagem do DN, logo caiu nas redes sociais tupiniquins e, como não poderia deixar de ser, virou um grande meme na mão dos internautas brasileiros”, escreveu o Correio Braziliense.

Poucos dias antes de a reportagem do Diário de Notícias ter sido publicada, o espetáculo ao vivo “Luccas Neto e a Escola de Aventureiros” chegou a Portugal para seis sessões após o adiamento das datas de setembro. A 6 e 7 de novembro, a performance decorreu na Altice Arena, em Lisboa. Entre 19 e 21 de novembro, houve espetáculos no Pavilhão Multiusos de Guimarães. Tanto na capital como naquela que é conhecida como a Cidade Berço de Portugal, os bilhetes esgotaram.
A opinião de Cláudia Castanheira parece sintetizar as perspetivas das professoras, mães, terapeuta e psicóloga entrevistadas: “A minha mais nova tem seis anos e agora está bem melhor, mas até ao verão passado falava mais português do Brasil do que alguns brasileiros que eu conheço. Problema? Nenhum! Vamos corrigindo e ensinando corretamente. Também sabe as cores e contar em inglês, logo, o que depreendo é que é de rápida aprendizagem. O problema é estarmos mal servidos de conteúdos em português de Portugal”.