Diabetes. Há 100 anos, Leonard foi o primeiro doente salvo pela insulina

Leonard Thompson, um rapaz canadiano de 14 anos, foi o primeiro diabético a receber uma injeção de insulina. Passam hoje 100 anos e só em Portugal há 60 a 70 mil diabéticos que dependem do medicamento para viver. “Salvou milhares de vidas, continua a salvar, mas ainda não conseguimos ir mais longe”, diz José Manuel Boavida, que…

Deu entrada no Hospital Geral de Toronto em dezembro de 1921. Com 14 anos, Leonard Thompson pesava já menos de 30 quilos e foi considerado pelos médicos um caso terminal de diabetes juvenil, doença que na altura era sinónimo de uma morte certa e agoniante. Tinha sido diagnosticado com 11 anos e, como todas as crianças que sofriam da doença, a última estratégia para tentar controlar nos níveis de glicemia no sangue era a fome, até a um ponto em que se tornava incompatível com a vida. 

Debilitado, Leonard foi colocado num regime em que só podia ingerir 450 calorias por dia, sem melhorias. A respiração cheirava a acetona. O nível de açúcar no sangue variava entre 3,5 e 5,6 miligramas por centímetro cúbico quando o normal seria 1 miligrama, recordam os registos do hospital citados em livros sobre a descoberta e o início do uso da insulina.

À família, foi dito que só um milagre o podia salvar. Ao contrário de muitos que sucumbiram à doença nos primeiros anos de diagnóstico, Leonard chegaria a experienciá-lo: a 11 de janeiro de 1922, foi o primeiro doente diabético a receber uma injeção de insulina, cobaia do tratamento experimental descoberto meses antes, em julho de 1921, por Frederick Banting e Charles Best na Universidade de Toronto.

Passam 100 anos e a história do rapaz canadiano, que viveu mais 13 anos e morreria aos 27 em 1935, faz parte daquele que foi um dos maiores marcos na Medicina no século XX. Quando os médicos decidiram usar a insulina em Leonard, o tratamento estava longe de estar demonstrado: estava ainda a ser experimentado numa cadela sem pâncreas, Marjorie, com sinais contraditórios. 

No serviço de Walter Campbell no Hospital de Toronto, o primeiro a tentar testar clinicamente as experiências de Banting e Best, os resultados iniciais foram um balde de água fria. A primeira injeção, recorda-se em Breakthrough: Elizabeth Hughes, the Discovery of Insulin, and the Making of a Medical Miracle, foi inconclusiva: a glicemia de Leonard baixou um pouco, mas com uma forte reação que levou a interromper o tratamento. 

Seria retomado apenas no dia 23 de janeiro, depois de um terceiro investigador, James Collip, ter descoberto como obter um extrato mais concentrado de insulina, numa altura em que os ânimos aqueciam na Universidade de Toronto: reza a história que Collip não terá querido contar a Banting e Best, seus colegas, como teria chegado à nova fórmula, depois de o extrato deles ter aparentemente falhado. John Macleod, diretor do departamento, que viria a vencer o Nobel com Banting em 1922, terá tentado pôr água na fervura e o extrato de Collip teve luz verde para ser experimentado na clínica.

Às 11 da manhã do dia 23 de janeiro, Leonard recebeu uma segunda injeção já com o novo extrato de insulina. Seis horas mais tarde, uma terceira. No dia seguinte, mais duas. Os níveis de glicemia no sangue baixaram para 1,2 miligramas por centímetro cúbico. Era o milagre. O rapaz começou a melhorar e Banting acabou por decidir usar o mesmo extrato em Marjorie, que voltou a conseguir andar mas que os investigadores decidiriam eutanasiar dias mais tarde devido à debilitação em que se encontrava. Chegariam a acordo sobre o papel e responsabilidades de cada um e Leonard Thompson continuou a receber injeções. Teria alta do hospital no dia 15 de maio de 1922, mais forte e fez insulina diariamente até contrair com 27 anos uma pneumonia que se revelaria fatal.

Elizabeth Hughes, protagonista do livro que citávamos há pouco, foi a primeira norte-americana tratada, tendo iniciado o tratamento em agosto de 1922 em Toronto, onde Leonard alimentou a esperança para que mais doentes começassem a fazer o tratamento. Viveu até aos 73 anos, esperança de vida que mudou com o início da utilização da insulina.

Em janeiro de 1923, Banting, Best e Collip venderiam a patente por um dólar cada um à Universidade de Toronto, que chegou a acordo com a farmacêutica norte-americana Eli Lilly para iniciar a produção, mantendo-se a produção no Canadá a cargo da Connaught Labs, com uma fábrica chefiada por Best. 

“Precisamos de mais investigação pública” Passado um século, José Manuel Boavida, presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, que seria fundada em 1926 pelo médico Ernesto Roma para garantir o acesso a insulina a doentes pobres, diz que é difícil estimar quantas vidas foram salvas pela insulina ao longo destes anos, doença que na altura surgia na infância e significava esperanças de vida muito curtas. 

Hoje em Portugal a ADPD estima que 70 a 80 mil portugueses com diabetes vivam com insulina, desde os jovens que são diagnosticados com diabetes com tipo 1, por vezes com poucos meses de idade, a pessoas com diabetes tipo 2 em que a medicação antidiabética deixa de funcionar e que hoje são a maioria dos doentes a fazer insulina. “Salvou milhares de vida e continua a salvar, mas gostávamos de ter ido mais longe”, diz ao i o médico, sublinhando como 100 anos depois a insulina continua a ser dada como foi aos primeiros doentes: com injeções subcutâneas, quando ao longo dos anos foi havendo a expectativa de que pudessem surgir novas formas de administração menos invasivas do que a injeção intradérmica, da toma em comprimido à administração bocal, pulmonar e nasal – o que mesmo que hoje com bombas perfusoras a permitir a administração automática da insulina aos doentes nas doses programadas não deixa de ser um procedimento invasivo.

“Lembro-me que no início dos anos 80, era eu um jovem médico, veio a Portugal o dr. José Barbosa, que trabalhava nos EUA, e que dizia que nos anos 2000 iríamos lembrar-nos daqueles anos bárbaros em que crianças e jovens tinham de fazer injeções várias vezes por dia. Infelizmente não vimos ainda esse avanço”, diz o médico, defendendo que 100 anos depois, além de garantir um acesso a nível global à insulina, continua a ser necessária mais investigação em torno de melhores estratégias terapêuticas para a diabetes – e a montante disso, no caso da diabetes tipo 2, maior aposta na prevenção e educação para a saúde.

Para o médico, o reforço do financiamento público da investigação é fundamental: “A primeira patente da diabetes foi vendida por um dólar mas ao longo dos anos o que vimos foi que a insulina foi ficando cada vez mais cara e mesmo hoje é uma medicação cara, embora cá as pessoas não o sintam porque é comparticipada a 100%. Nos EUA, chega a haver excursões ao Canadá para comprar insulina”, diz, recordando as excursões organizadas por Bernie Sanders, confrontado com diabéticos tipo 1 que chegam a ter de pagar mais de 1400 euros por ano pelo tratamento – muitas acabam a racionar as injeções. 

“A indústria farmacêutica continua em muitas situações a ter o lucro como preocupação central, por isso precisamos de ter maior investimento público em investigação e mais autonomia das universidades e dos investigadores para definir linhas de investigação. No fundo, a mobilização que vimos na pandemia e que permitiu ter vacinas e que ainda não foi possível numa pandemia silenciosa como é a da diabetes”, defende José Manuel Boavida. 

Em 2021, o Dia Mundial da Diabetes, que se assinalou em novembro, teve por mote o acesso à insulina. De acordo com um relatório apresentado pela Organização Mundial de Saúde, mais de 60 milhões de diabéticos do tipo 2 precisam de insulina para reduzir o risco de falência renal, cegueira e imputação mas uma em cada duas não tem acesso adequado e os preços de insulina sintética são incomportáveis para os países menos desenvolvidos. “Três multinacionais (Eli Lilly, Novo Nordisk e Sanofi) controlam mais de 90% do mercado de insulina, deixando pouca margem para empresas mais pequenas”, chamava a atenção a OMS, apontando para problemas na regulação de preços e também nas cadeias de distribuição, insuficientes para a procura.

De acordo com uma análise publicada pela consultora Mordor Intelligence, o mercado de insulina a nível mundial deverá atingir os 29,9 mil milhões de dólares em 2025, com cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo a precisar do medicamento, entre mais de 500 milhões com diabetes – fazem insulina doentes com diabetes tipo 1 e 10% a 25% dos doentes com diabetes tipo 2. 

As projeções são para um aumento significativo da população com diabetes tipo 2 ao longo dos próximos anos, fruto do envelhecimento, estilo de vida sedentário e obesidade, alguns dos principais fatores de risco. Portugal surge nas estatísticas europeias como um dos países com maior prevalência de diabetes e pré-diabetes, que poder ser revertida com alimentação e exercício físico.

Ao todo, estima-se que haja mais de três milhões de portugueses com diabetes ou pré-diabetes, cerca de metade por diagnosticar. Em 2019, último ano com dados, a diabetes foi associada em Portugal a 3840 mortes, 10 mortes por dia.