Morrem mais pessoas afogadas no inverno do que na época balnear

Tendo em conta que o número total de mortes por afogamento não é divulgada publicamente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) desde 2019, o i teve em conta os dados apurados pela Fundação Portuguesa de Nadadores Salvadores (FEPONS) para apurar a quantidade de óbitos que ocorrem.

No espaço de cinco anos, 13 pessoas morreram nas praias enquanto passeavam junto à água. Por exemplo, em junho de 2016, um jovem de 22 anos, de nacionalidade portuguesa, ficou ferido com gravidade após cair de uma falésia na praia das Açoteias, em Albufeira. Contudo, tem-se vindo a verificar que existem variadas causas de morte por afogamento que, à semelhança desta, são tidas em conta na época balnear e esquecidas no inverno.

Há apenas três dias, uma mulher, com aproximadamente 50 anos, perdeu a vida na praia de Faro. Segundo se apurou, a vítima sentiu-se mal na água enquanto nadava. Sabe-se que o alerta foi dado pelas 14h50 por populares que se aperceberam de que o corpo da mesma flutuava na água, sendo que foi resgatada já sem vida, tendo sido o óbito declarado no local por elementos do INEM. 

Este acontecimento leva a que surjam várias questões na nossa mente, como “É comum morrerem pessoas em meio aquático no inverno?”. É e, mais do que isso, é exatamente entre outubro e maio que se dá a maioria das tragédias. De acordo com dados veiculados pelo Observatório do Afogamento, coordenado pela Fundação Portuguesa de Nadadores Salvadores (FEPONS), entre 1 de janeiro e 30 de setembro de 2021 86 portugueses e cidadãos de outras nacionalidades morreram por afogamento.

Destes, 57 eram homens, 28 mulheres e num dos casos não estava identificado o género. A faixa etária em que se registaram mais óbitos foi aquela que está compreendida entre os 70 e os 74 anos – dez –, sendo que, no extremo oposto, uma criança entre os 0 e os 4 anos e outra entre os 5 e os 9 anos perderam a vida. Em 2020, no período homólogo, constataram-se 106 mortes – 92 homens, 12 mulheres e uma pessoa que não estava identificada o género, havendo mais óbitos na faixa etária dos 50 aos 54 anos. 

Por outro lado, em 2019, verificaram-se 87 mortes – 64 homens e 23 mulheres –, sendo este desfecho mais comum nos idosos entre os 70 e os 74 anos como em 2021, 91, 66 homens e 25 mulheres – em 2018 – 66 homens, 25 mulheres e mais óbitos entre os 60 e os 64 anos – e 96 em 2017 – 80 homens e 16 mulheres, sendo a faixa etária mais afetada, novamente, aquela que mais sofreu em 2018.

Porém, Alexandre Tadeia, presidente da FEPONS, em declarações ao i, começa por clarificar que segundo os números que têm vindo a ser apurados pela federação por si fundada em 2008, “durante os meses de verão, temos 46 mortes. E, até setembro, 86. Neste momento, até 30 de novembro, contabilizámos 97 mortes no meio aquático. Destas, 46 foram nos meses de verão”.

“Há mais óbitos fora do verão, as coisas não são bem como as pessoas imaginam. No mar, houve 21 mortes e apenas duas foram em zonas vigiadas. No Interior, 45 mortes e apenas uma foi numa zona vigiada. Conclui-se que as pessoas estão a morrer por afogamento fora da época balnear e mais no Interior do que no Litoral”, explica, sublinhando que, todos os meses, enviam relatórios de mortes por afogamento aos órgãos de comunicação social e verificam “falta de interesse” por parte dos mesmos.

“Temos 100-120 mortes por afogamento, por ano, e este tema devia ser sempre assunto. A verdade é que os portugueses não têm cultura de segurança aquática: o assunto não é convenientemente ensinado nas escolas e há pouca oferta na idade adulta. Não havendo esta educação, este tema é algo que não levanta interesse. Só quando, de facto, alguém próximo morre afogado ou se aproxima a época balnear tudo é mais divulgado”, realça o também Presidente da BÚZIOS-Associação de Nadadores Salvadores de Coruche.

“Temos uma campanha, que é a SOS Afogamento, que tenta aumentar essa cultura e é difícil porque não temos apoios estatais. Não é um conteúdo do programa escolar e não há verbas, por isso, estamos a tentar criar uma estratégia para chegar às escolas”, contudo, Alexandre lamenta que, até hoje, a federação nunca tenha obtido qualquer resposta por parte do Ministério da Educação. 

“No ano passado, o afogamento subiu imenso pós-covid. Por regra, os homens morrem mais, as idades com mais prevalência são as pessoas acima de 40 anos, normalmente afogam-se no período da tarde, os afogamentos acontecem mais em rios, barragens e poços – o mar não tem assim tanta prevalência – e o local não é vigiado habitualmente e a atividade que maioritariamente desempenhavam era tomar banho por lazer”, observa o diretor pedagógico da Escola de Formação de Nadador-Salvador Profissional FEPONS e Nadador-Salvador Formador do ISN, Formador de SBV/DAE do Conselho Português de Ressuscitação.

“Não são situações presenciadas e o distrito pior é o do Porto”, refere, sendo que tal conclusão se pode corroborar nos dados: entre janeiro e setembro de 2021, morreram 11 pessoas afogadas, 16 em 2020, cinco em 2019, 14 em 2018 e 15 em 2017. “O que nós fazemos é a recolha dos dados através da imprensa: os números oficiais surgem dois anos depois.

É que podem ser mais: em 2017, 2018 e 2019, quando o Instituto Nacional de Estatística partilhou os dados oficiais com base nas certidões de óbito, os números ainda eram superiores. Mas o INE não faz este trabalho dos fatores de risco”, indica, reconhecendo que este levantamento “não é fácil”, pois, na sua opinião, a FEPONS devia ter acesso às certidões de óbito das vítimas tal como o INE. “É que, por exemplo, pode ter sido por ataque cardíaco e não por afogamento”. 

“A nacionalidade é o dado mais complicado de apurar”, destaca, podendo compreender-se que, em 2021, morreram 28 portugueses – 27 em 2020, 35 em 2019, 40 em 2018 e 22 em 2017 –, quatro brasileiros, dois ingleses, uma francesa, uma austríaca, uma cabo-verdiana, uma ucraniana, e 48 vítimas cuja nacionalidade não foi determinada por falta de informação disponível nas notícias.

A dor para lá dos números Num fim de semana, no final de julho de 2009, Sílvia Batista deixou a filha Gabriela, de sete anos, a dormir em casa do avô. “Era a única pessoa em quem confiava para isso”, confirma, hoje, com 42 anos, recordando igualmente que combinara com o pai que iria buscar a criança por volta do meio-dia e seguiriam para a praia.

“Foram visitar um amigo a uma quinta ali perto e ele tinha uma piscina que nem sequer estava em condições de ser utilizada. Não estava previsto, a menina não tinha fato de banho, mas caiu na piscina e morreu por afogamento”, constata a mãe que considera ter passado por uma fase muito negra.

“Fui a um psicólogo, à minha médica de família, mas sou uma pessoa mental e espiritualmente forte e nunca aceitei as depressões. Para mim, não fazia sentido. Achava que as pessoas eram fracas de cabeça. Entretanto, passei por essa situação, não a assumi. Hoje, consigo entender”, avança Sílvia que “estava, como todas as mães que perdem filhos, à procura de respostas”.

“Porquê eu? Porquê comigo?”, questionava a mulher, até porque os amigos que lhe eram mais próximos afastaram-se por se sentirem constrangidos, na ótica da progenitora. “Foram anos de reformular a minha vida e a minha própria pessoa. Então, andava por todo o lado, pela psicologia, pela psiquiatria, não dormia, estive internada duas noites em Santa Maria para fazer a cura do sono”, afirma, reconhecendo que tal somente acabou quando uma conhecida, “que era muito da onda das energias e do zen”, foi ter consigo e começou a frequentar um centro de meditação para lidar com esta perda.

“Durante 10 anos, tive sonhos em que a minha filha apareceu e mostrava-me um menino. Eu dizia ‘Tu é que és a minha filha’ e corria atrás dela” e, por este motivo, há cerca de três anos, quando descobriu que estava grávida, disse de imediato: “É um menino!”. E, de facto, Sílvia é hoje mãe de Dieggo, de dois anos, cujo um dos Gs no nome é uma homenagem à irmã que partiu.

“Uns cinco meses antes de engravidar, sonhei com ela e disse-me ‘Tenho de deixar de vir, agora vou chamar-me Jennifer e não Gabriela’. Como se fosse reencarnar. Não sei se isto é possível, não faço ideia, mas foi a conversa que ela teve comigo. Hoje em dia, olhando para trás, até eu tenho pena daquilo que passei, mas o pequeno retiro que criei foi a minha tábua de salvação”, adianta a terapeuta complementar em meditação sensorial.

“O problema, neste momento, é político e não operacional” Entre janeiro de 2017 e setembro de 2021, a FEPONS percecionou que três crianças entre os 5 e os 9 anos – faixa etária em que Gabriela se inseria – morreram por afogamento, todavia, a análise feita pela federação tem limitações.

“O Observatório regista só a morte: o que temos são as 16 associações parceiras. Fazemos uma outra coisa que considero importante: quando alguém não profissional faz um salvamento fazemos um reconhecimento público a essa pessoa. Ainda não fizemos nenhum por causa da pandemia, mas esperamos fazer”. Alexandre adianta que um dos galardoados será José Brito, imigrante em Portugal e ex-pescador em Cabo Verde, que, em dezembro de 2020, salvou um homem de 68 anos de se afogar no rio Tejo. 

“Em tempos tão difíceis, esta ação certamente marcará os que assistiram, no local, ao salvamento, como todos os que dele tiveram conhecimento”, escreveu, à época, Marcelo Rebelo de Sousa numa nota publicada no site oficial da Presidência da República. “O exemplo de José Brito deve ser distinguido pela coragem e pela vontade de ajudar o próximo”.

“Há países que fazem este registo minuciosamente e divulgam-no como a Austrália ou o Reino Unido. Quando os nossos políticos não aprenderam a nadar, dificilmente decidirão algo nesta área. O problema, neste momento, é político e não operacional”, garante Alexandre, que, desenvolvendo várias atividades, é igualmente conhecido por exercer funções enquanto formador de Condução Defensiva e em Emergência, professor e investigador de Salvamento Aquático, Socorrismo e Segurança Aquática e Professor convidado da Escola Superior de Desporto de Rio Maior, em Santarém.

“A inclusão desta temática nas escolas já foi por demais sugerida e continua tudo igual. A FEPONS vive de patrocínios privados como o da Fundação Vodafone Portugal. Não podemos esquecer que a morte por afogamento é um acontecimento traumático”, diz, raciocinando, consequentemente, que “não faz sentido que a noção portuguesa deste fenómeno seja tão baixa”.

“Quando começámos a divulgar estes dados, as pessoas ficaram assustadas. A morte de um familiar já é complicada, então por afogamento é ainda pior porque se sabe que seria evitável e o sentimento de culpa é muito grande”, clarifica o nadador-salvador que falava com o i a partir de uma piscina em Coruche, alinhando-se com Francisco Mendes, de apenas 23 anos, que iniciou a atividade de salvamento há seis.

“Deviam interditar algumas praias e não o fazem. É muito pouco viável haver nadadores fora da época balnear. De vez em quando, no inverno, trabalho para piscinas. Há quem trabalhe o ano todo na Nazaré e em Carcavelos. E creio que em mais nenhum lugar ou mais um ou dois”, conta o estudante universitário da licenciatura em Gestão Portuária da Escola Superior Náutica Infante D. Henrique, em Paço de Arcos.

A 23 de dezembro, na Praia do Areão, em Vagos, pelas 19h30, Ana Rita Almeida, de 25 anos, foi arrastada por uma onda durante um alegado ritual de bruxaria. Na companhia da avó, de 65 anos, conhecida por “Bruxa de Agualdate”, e de um amigo, de 51 anos, a rapariga ficou inconsciente na água e acabou por ser arrastada até ao areal pela ondulação. Os Bombeiros de Vagos e uma equipa do INEM reanimaram-na durante duas horas, no entanto, depois de ter sido transportada para o Hospital de Aveiro, com hipotermia extrema, morreu na véspera de Natal.

“Posso dizer que em Santo Amaro de Oeiras via muitos rituais, mas penso que eram religiosos. As pessoas entravam mesmo na água para se batizarem”, confessa Francisco, achando estranho que, em cinco anos, somente uma pessoa tenha morrido durante um ritual religioso, mas entendendo as lacunas existentes na recolha de dados e asseverando que, até agora, só resgatou pessoas durante o verão.

“Acho que as pessoas têm de ter noção daquilo que são capazes. Há aquelas que não sabem nadar e ficam dentro de pé, algumas que sabem e podem aventurar-se com cuidado, há quem se afaste muito sem haver necessidade… Depende muito”, admite, indo ao encontro dos dados do Observatório do Afogamento: entre 2017 e 2021, a maior parte das vítimas mortais estava a tomar banho ou a conduzir uma embarcação quando perdeu a vida, sendo a queda de carro à água e o surf as atividades que se encontram em 3.º e 4.º lugares.

“Fui ganhando o gosto fazendo coisas que não são muito boas: indo para praias agressivas quando era criança, para dentro de água com a bandeira vermelha, o nadador-salvador ia falar com os meus pais e, quando fiz 18 anos, já sabia o que havia de fazer e tirei o curso. Foi um mês de aulas diárias: duas teóricas e duas em piscina. E aos fins de semana íamos ao mar”, declara o jovem para o qual “as provas podiam ser mais exigentes” e ter uma validade inferior a três anos.

“Ao nível de situações como quebra de tensão, desmaio, golpe de calor, etc. no mar ou no areal, o curso prepara-nos mal. Devíamos ter formação adicional porque há quem não saiba medir parâmetros como a tensão arterial. E depende da postura de cada um: há quem queira esforçar-se e outros não”, revela o rapaz que, todos os dias de manhã, dá um mergulho e tenta conviver ao máximo com quem encontra na praia. 

“Quando acabar a faculdade não terei condições para estar lá: são 10 horas, portanto, não dá para conciliar com um trabalho. Chego a casa às 20h e só me apetece dormir. Além disso, os salários não são propriamente muito atrativos”, justifica, acrescentando que, por aquilo de que tem conhecimento, nas praias entre Carcavelos e o Guincho, em Cascais, estes profissionais ganham por volta de 4 euros à hora.

“Eu recebia 4.50 euros à hora, mas comecei por receber 3 euros. Já recebi por fora também porque existe muito pouco controlo a esse nível e tinha 18 anos, era novinho. Mas quando comecei a ver o que era a experiência e a valorização… Entendi que não tinha feito a melhor escolha”, afirma, rematando que, devido à pandemia de covid-19, fez cinco épocas balneares sem renovar o curso.

“Se não tivessem feito isto, também não haveria nadadores-salvadores suficientes. Há pessoal que sai do curso fraquinho: as provas são um bocadinho fáceis. Mas, a verdade, é que se apertassem mais não tinham ninguém”, assinala. “Normalmente, mesmo que não estejamos na nossa melhor forma física, não há grandes prejuízos para as pessoas porque não precisamos de nadar muito e temos a opção da prancha, mas há que refletir acerca desta profissão”.