Bebés-milagre da pandemia. “Não sabia nada sobre o que era a ECMO e como funcionava”

Chama-se ECMO e para quem vive fora dos corredores da Medicina Intensiva só se tornou mais conhecido com a pandemia. Pelas máquinas que substituem os pulmões já passaram cerca de 300 doentes com covid-19 em Portugal e contam-se agora cinco casos de grávidas com covid-19 que deram à luz. Santiago nasceu esta quarta-feira no S.…

Tiago fez um ano no dia 18 de novembro. “Já gatinha e anda aqui para cima e para baixo a querer falar”, conta Elisângela Neves. Há um ano, por esta altura, a história da primeira grávida com covid-19 a ter o filho de cesariana ligada à ECMO, a máquina usada nos Cuidados Intensivos para substituir os pulmões quando a oxigenação sanguínea natural deixa de ser compatível com a vida, tornava-se conhecida. Internada no Hospital de Santa Maria desde meados de novembro de 2020, Elisângela foi submetida a uma cesariana quando estava em coma e só conheceu o filho depois de recuperar, em dezembro. São agora cinco casos no país de grávidas infetadas que tiveram os filhos nesta situação limite, contabilizou o i junto dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde que têm máquinas de ECMO, por onde passaram desde março de 2020 já cerca de 300 doentes com covid-19 – números que em dois anos em alguns hospitais equipararam os casos de doentes que passaram por ECMO nos últimos 10 anos, desde que a técnica se iniciou no São João. Foi neste hospital do Porto que foi realizado esta quarta-feira o quinto parto com a mãe diagnosticada com covid-19 a precisar de Oxigenação por Membrana Extra-corpóreal (ECMO). Santiago nasceu bem, com 2420 gramas, e a mãe, embora ainda esteja em cuidados intensivos, encontra-se estável, explicou o hospital.

Do outro lado do telefone, com o filho a palrar à sua beira como qualquer criança de 13 meses, Elisângela diz que ficou contente quando soube da notícia. “Ainda bem que há mais um caso de sucesso”, diz a contabilista de 32 anos, para quem toda esta realidade, como para a maioria dos portugueses, era desconhecida antes de se deparar com a covid-19, grávida do segundo filho no segundo trimestre da gestação. “Não sabia nada sobre o que era a ECMO e como funcionava, os médicos é que me explicaram depois que era como ter o pulmão fora do meu corpo. Fiquei impressionada, não fazia ideia que era possível. Se não fosse aquela máquina, já não estava cá”. 

Elisângela apanhou covid-19 em outubro de 2020, grávida de 27 semanas. Começou com tosse, febre e ao início pensou que iria passar com o benuron e com chás. Mas os sintomas foram agravando. Quando foi às urgências no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, o nível de oxigénio no sangue já não era suficiente para ela e para o bebé, explicaram-lhe. Foi entubada para receber oxigénio, mas não chegou. Transferida para o Santa Maria, um dos centros de referência para tratamento de adultos em ECMO em Lisboa a par do Hospital de São José, foi colocada em coma induzido a lutar pela vida com os pulmões artificiais a fazerem o que os seus não conseguiam e, além da covid-19, surgiram outras complicações. A equipa realizou a cesariana do bebé prematuro no dia 18 de novembro e a mãe só conheceria o filho cerca de quatro semanas mais tarde, duas semanas depois de acordar. 

“Quando fui acordada a primeira coisa foi sentir falta da minha barriga, mas foi tudo estranho. Não entrei em pânico porque era como se eu fosse um bebé, não sabia onde estava, porque é que estava ali. Sabia o meu nome, que tinha família, mas era como um recomeço”, lembra Elisângela. 

A recuperar nos cuidados intensivos, o dia em que pôde sair do quarto sem as máquinas atrás e ir conhecer o filho foi vivido entre a emoção e o receio de poder infetá-lo. “Estava em pânico, era aquela altura em que a gente pensava que não podia tocar em nada, tinha medo até de passar nos corredores”. Eram sete ou oito minutos até ao serviço onde estava o filho, recorda. “Só o medo de ter de entrar no elevador com outra pessoa e ir pegar o vírus ao meu filho fazia-me confusão. Quando o vi pela primeira vez, a primeira reação foi não lhe vou pegar, mas as enfermeiras insistiram e foi assim que peguei nele pela primeira vez ao colo e vi como estava bem tratado, bem cuidado, foi muito bom”. Quando irão contar a história ao filho ainda não decidiram, mas guardaram os registos todos e pensam em escrever as memórias. “Quando chegar à altura, havemos de contar e ele vai ver como foi um guerreiro. Um milagre mesmo. Há quem diga que lhe devíamos ter dado o nome de Vitorioso”, sorri Elisângela. 

Histórias que marcam Para os intensivistas que têm lidado com estes casos, além de marcantes, mostram o avanço da Medicina e como o SNS deu na última década um salto nesta área. 

Embora a técnica tenha sido iniciada na década de 1970, chega a Portugal em 2009, na pandemia de H1N1. Antes, histórias como a destes bebés e muitos doentes que passam por ECMO em situações graves de pneumonia ou por vezes insuficiência cardíaca teriam menor probabilidade de sucesso. Mas falamos de casos extremos e delicados – um dos cinco bebés não sobreviveu. João Ribeiro, diretor do serviço de Medicina Intensiva do Hospital de Santa Maria e coordenador de ECMO, explica que entre os doentes com covid-19 submetidos à técnica desde o início da pandemia, houve neste centro hospitalar uma taxa de sobrevivência de cerca de 75%. “Quando temos presentes os critérios para um doente ser submetido a ECMO seguidos na maioria dos centros, os doentes colocados neste suporte são pessoas que estão com um risco de mortalidade de 80% ou superior, pelo que estamos a falar de inversão quase total das perspetivas de desfecho para estes doentes”, sublinha. 

O médico salienta no entanto que o ECMO, que em situações ainda mais raras é usado em idade pediátrica, não é um tratamento para a doença pulmonar, ou seja, numa situação em que o funcionamento dos pulmões está comprometido, não é isso que os vai tratar – o que permite é que seja possível manter a oxigenação do sangue fora do corpo enquanto se tenta que organismo recupere. E por esse motivo, os casos submetidos a ECMO têm de ser muito bem ponderados. “Casos como os destas mães são casos importantes para nós porque constituem desafios clínicos inovadores, muitas vezes ainda com pouca literatura e depois porque há sempre o lado emocional de haver duas vidas, da mãe e do bebé. São mais uma faceta da expressão dramática que teve a covid-19”, sublinha, vincando que perceber que no país existe hoje uma capacidade que há 15 anos não existia para tratar estes casos mostra o investimento que houve e a necessidade de continuar a apostar em recursos humanos nesta área.

Antes da pandemia, no Santa Maria ainda não tinha sido preciso fazer nenhum parto com uma mãe em ECMO. No São João, o primeiro centro a avançar com a técnica há 10 anos, contam-se, além dos três casos de mães com covid-19, cinco casos de mães que tiveram filhos nas mesmas circunstâncias mas com outros quadros clínicos. Que a técnica foi importante na forma como se pode lidar com os casos mais graves de covid-19, hoje menos mas que continuam a chegar aos hospitais, não restam dúvidas. “Na fase inicial da pandemia foi muito debatido o interesse do ECMO nas formas mais graves de doença covid-19. Primeiro porque não se sabia se uma doença que comprometia de tal forma os pulmões era reversível e a técnica de ECMO permite eliminar o CO2 do sangue mas não aumenta a possibilidade de curar a doença pulmonar, e depois pelos recursos que consome. Houve centros na Europa que devido a essas dúvidas suspenderam a utilização desta técnica porque acharam que era muito consumidora de recursos e não se sabia se seria eficaz. Nós, apesar de tudo, achando que havia razões de natureza clínica e ética para atuar, decidimos fazê-lo como aconteceu noutros centros e felizmente temos visto que quatro em cinco doentes sobrevivem”, diz João Ribeiro. 

Também João Gouveia, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva, sublinha o avanço feito nesta área ao longo da última década, que hoje permite que o país tenha três centros de referência (Centro Hospitalar de Lisboa Central, o Centro Hospitalar Lisboa Norte e o Centro Hospitalar de São João) e que a técnica esteja também disponível no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, Gaia/Espinho e no Funchal. “É a última arma que temos para a insuficiência respiratória. O grande boom do ECMO da era moderna começou com a pandemia de H1N1, tendo sido uma experiência mais limitada no tempo e com menos doentes, e hoje com o avanço da técnica e indicações conseguimos ter melhores resultados com doentes graves”. Para o médico, hoje a capacidade instalada responde às necessidades do país, até pela necessidade de estes tratamentos mais complexos serem feitos em centros com casuística significativa. “Não temos país para ter mais que dois a três centros de ECMO, é evidente que em situações de pico é necessário aumentar essa capacidade, mas no quotidiano não será, pelo que hoje com esta distribuição penso que estamos bem”. 

Como funciona o ECMO: entra oxigénio, sai CO2, tudo fora do corpo, cinco litros a cada minuto

Medicina A técnica de oxigenação através de uma membrana extracorpórea começou a ser desenvolvida nos anos 50 nos EUA, começando por ser usada em crianças com cardiopatias congénitas. Como funciona? O sangue circula fora do corpo com auxílio de uma bomba e passa por um aparelho, que substui o que aconteceria nos alvéolos pulmonares. “Conseguimos fazer a circulação de cinco litros de sangue por minuto, explica o intensivista João Ribeiro. Temos no corpo em média 25 litros de sangue. “Usando uma imagem, é como se tivessemos uma torneira aberta a deitar cinco litros por minuto. Esse sangue passa por uma membrana especial que simula o pulmão onde é oxigenado e onde se remove o dióxido carbono que as nossas células produzem”, continua o médico. “Costumo dizer meio a brincar que também somos máquinas de combustão, eliminamos CO2 como os automóveis porque os processos químicos nas nossas células produzem CO2. E temos de o eliminar porque se se acumular no organismo é tóxico”. Hoje já é possível um doente estar em ECMO quatro a cinco meses.