CAN. O futebol selvagem

Poucas competições são tão divertidas com a Taça de África das Nações, sobretudo para quem já teve a sorte de a acompanhar ao vivo.

A CAN, Coupe d’Afrique des Nations, para utilizar o francesismo que a ela há muito está ligado, já deu início à sua 33.ª edição, desta vez com fase final marcada para os Camarões e um ano depois do seu real agendamento, por causa desse mal dos nossos tempos que leva o já insuportável nome de covid. 

A prova começou mal para um dos portugueses em cena, no caso Carlos Queiroz, que viu o seu Egito perder o jogo de abertura frente à Nigéria, por 0-1, e hoje precisa de vencer a Guiné-Bissau para poder garantir a continuidade em prova daquele que é o grande vencedor dos vencedores. Porque o Egito é, até agora, o grande dominador da prova, com sete vitórias, duas finais perdidas e três terceiros lugares, bem destacado do seu seguidor mais direto, os Camarões, com cinco vitórias, duas finais perdidas e um terceiro lugar.

Criada em 1956, em Lisboa, durante o III Congresso da FIFA que teve ligar na capital portuguesa, a Taça de África, como é por nós mais conhecida, é uma das provas mais interessantes de seguir ao vivo e eu pude testemunhá-lo por três vezes. Não é apenas o ambiente em redor dos jogos, com um público rendido ao seu estado selvagem, seminu, transportando consigo os seus feiticeiros que, durante os encontros, praticam os seus truques, sejam eles quais forem – e cortar cabeças de galinha é quase um ritual –, mas igualmente o ambiente entre as equipas que, geralmente, se instalam nos mesmos hotéis permitindo aos jogadores uma confraternização absolutamente impossível de encontrar num Campeonato do Mundo ou da Europa.

Em 2002, por exemplo, Em Djenné, no Mali, tive a possibilidade de fazer uma entrevista conjunta com os dois treinadores portugueses em liça e que se defrontaram, Humberto Coelho com Marrocos e Carlos Queiroz com a África do Sul, num campo militar meio perdido no meio do areal e no qual se encontravam as quatro equipas do mesmo grupo da primeira fase.

Se Paulo Duarte, comandando o Burkina Faso, foi o técnico nacional que mais longe chegou nesta prova, na edição e 2017, este ano voltamos a ter dois selecionadores, o já referido CarlosQueiroz, com o Egito – que apesar dos sete triunfos já não é campeão de África desde 2010 – e António Conceição com os Camarões, que entraram em força, vencendo o Burkina Faso por 2-1, e despachando a Etiópia na quinta-feira por 4-1. Apurados!

Os portugueses
Outros portugueses em prova, ou melhor, países de língua portuguesa (desculpem mas vou esquecer-me propositadamente da Guiné Equatorial, cá por coisas…), são Cabo Verde e Guiné Bissau, curiosamente preparados para o futebol moderno como não estão Angola e Moçambique, os grandes fornecedores de jogadores para o futebol nacional no tempo já lá ido da colonização (e até depois disso). Cabo Verde está situado no Grupo 1, juntamente com os Camarões, o Burkina Faso e aEtiópia (a surpreendente vencedora da CAN de 1962), e entrou também bem na competição ao bater os etíopes na primeira jornada por 1-0, perdendo o segundo jogo com o Burkina pelo mesmo resultado. Por seu lado, os guineenses não foram além de um empate a zero com o Sudão no terrível Grupo D onde estão também Nigéria e Egito.

Vinte e quatro seleções discutirão até ao próximo dia 6 de fevereiro o vencedor da competição. Como sempre, os Faraós do Egito, os Elefantes da Costa do Marfim, os Leões dos Camarões e as Super-Águias da Nigéria surgem na frente da lista das apostas. Mas este ano, talvez o favoritismo deva cair sobre os ombros da Argélia e das suas Raposas. Vendo bem, é a campeã em título e, com o empate da primeira jornada do Grupo E (Argélia, Costa do Marfim, Serra Leoa e Guiné Equatorial), face à Serra Leoa (0-0), conseguiu a proeza de atingir o seu 34.º jogo consecutivo sem derrotas, aproximando-se a passos largos do recorde mundial da Itália (37), subitamente quebrado na recente fase final da Liga das Nações perante a Espanha.

A festa começou em Yaoundé, em Douala, Garoua, Bafoussam e Limbe. Não teremos estádios a abarrotar, como noutros anos, porque a maldição da doença ainda paira sobre nós como uma nuvem negra e nem o vudu parece conseguir afastá-la de vez. Ainda assim, haverá a possibilidade de termos mais de 50 mil espetadores nos jogos da equipa da casa e não faltará, de forma, a alegria natural de um futebol que teima em permanecer numa espécie de estado selvagem quando surgem oportunidades como esta de África poder ser intrinsecamente africana. Se é que percebem o que quero dizer.