As provações destes dias

O coronavírus veio sem dúvida desafiar a estabilidade, previsibilidade e controlo que julgávamos ter. O que tínhamos como adquirido desvaneceu-se e as normas da DGS tomaram as rédeas das nossas vidas.

São inúmeras as famílias que estão em isolamento neste momento. Algumas ficam fechadas em casa semanas a fio porque os testes não chegam positivos todos de uma vez. Começam numa ponta do agregado e vão correndo todos, a pouco e pouco. Uma amiga contava que uma colega sua que se viu forçada a ficar sozinha com as três filhas pequenas em casa lhe teria dito que era a coisa mais difícil que tinha feito na vida.

O coronavírus veio sem dúvida desafiar a estabilidade, previsibilidade e controlo que julgávamos ter. O que tínhamos como adquirido desvaneceu-se e as normas da DGS tomaram as rédeas das nossas vidas.

Acredito que daqui a muitos anos, quando olharmos para trás, este tempo será lembrado não só pelas mortes e complicações físicas e psicológicas, mas também pela mudança de hábitos que provocou.

Numa sociedade sofisticada, com pais e filhos cada vez mais independentes, em que os pais se habituaram a trabalhar demasiado e os filhos foram obrigados a ir para a escola cada vez mais cedo, onde chegam a estar 12 horas por dia, às vezes apenas com os 22 dias úteis de férias do trabalho dos pais, o coronavírus forçou-nos a parar e a reorganizarmo-nos. 

De repente as escolas fecharam, o teletrabalho tornou-se obrigatório e as famílias reuniram-se em casa, não para um tempo de férias, mas de provação. A sociedade sofisticada recuou e ficámos entregues a nós próprios, sem ajudas do exterior. Mesmo quem estava habituado a ter a vida facilitada viu-se obrigado a cozinhar, a limpar, a arrumar, a lavar, a cuidar das crianças, a fazer de professor, de educador, de cabeleireiro, ao mesmo tempo que cumpria o horário e as tarefas do trabalho.

As famílias encontraram-se e conheceram-se como nunca. Umas uniram-se, outras zangaram-se e a maioria passou pelas duas coisas. Perante a súbita mudança de planos os pais reagiram, reorganizaram-se e superaram-se e as crianças e jovens tiveram de acompanhar as tropas. Todos fizemos um trabalho incrível. Louvável. Os mais novos viram-se separados dos amigos, mesmo em idades em que o contacto próximo diário é essencial, afastaram-se dos avós, interromperam os seus hobbies, as suas atividades, tiveram de se habituar à desafiadora telescola e muitas vezes a estar em último plano em casa, onde os pais já não tinham mãos a medir.

Por seu lado, os pais desafiaram os seus níveis de tolerância, paciência, cansaço e persistência, tentando levar tudo e todos às costas. Todas estas provas não se deram só durante os confinamentos. Estamos há quase dois anos a ser constantemente submetidos a sucessivos testes de superação das nossas capacidades, dignos de vários diplomas. 

Quero acreditar que estamos na reta final. De qualquer forma acho que nos saímos muito bem e que talvez devêssemos aproveitar para reter algumas coisas essenciais de que nos vimos privados nestes anos sui generis. Como a importância das relações, da proximidade, do toque, do afeto, dos amigos, dos avós, da família. A sorte que temos em ter a vida tão facilitada, mas como também é bom às vezes voltar ao básico, ao genuíno, deixando para trás o supérfluo. A importância das escolas e de quem lá está todos os dias com os nossos filhos a cuidar deles, a ensiná-los, a ajudá-los a crescer. E sobretudo a sorte de termos um caminho pela frente que podemos percorrer livremente, de acordo com a nossa vontade, projetos e desejos, ao lado de quem mais gostamos.