Pestes

Durante a primeira vaga, cometeram a proeza de arredar dos écrans os enfadonhos analistas do futebol, embora ajudados pela suspensão da prática desportiva. Ainda bem, porque seria explosivo juntar o drama sanitário com a discussão acirrada em torno de penáltis e foras-de-jogo.

Por Álvaro Carvalho, médico

Passámos mais um Natal confinados! As pessoas continuam receosas, embora se percecione que casos de doença provocados pelo SARS-CoV-2 são menos graves que no passado. Para aquele estado de espírito contribui bastante o alarido na comunicação social. Nas televisões, os longos períodos informativos massacram-no sem dó nem piedade (António Barreto afirma que ver e ouvir notícias nas televisões é pena capital!), e muitos comentadores de serviço não têm suficientes conhecimentos técnicos que os habilitem a desempenhar tal papel com rigor.

Durante a primeira vaga, cometeram a proeza de arredar dos écrans os enfadonhos analistas do futebol, embora ajudados pela suspensão da prática desportiva. Ainda bem, porque seria explosivo juntar o drama sanitário com a discussão acirrada em torno de penáltis e foras-de-jogo.

Os representantes clubísticos não perderam pela demora e regressaram com outros condimentos: a operação ‘Cartão Vermelho’, um espelho do que se passa nos subterrâneos do futebol. A estirpe Omicron, instituída como um fenómeno patológico terrível, acrescentou mais achas para a fogueira.

Como se tudo isto não bastasse, a confusão aumentou com os múltiplos e crispados debates da campanha eleitoral. Em jeito de réplica, são seguidos de análises facciosas por comentadores petulantes que, sem disfarçar o emblema partidário, debitam banalidades incríveis; até têm o desplante de exibir tiques professorais para dar notas às diversas prestações. 

Quem não tiver paciência para entrar neste circo mediático rasca tem de arranjar tarefas alternativas para passar o tempo e evitar a depressão.

O Pai Natal veio em meu socorro. Sendo mais sensato que os figurantes dos media, percebeu que não ia oferecer casacos e gravatas, que não se usam nos tempos que correm, mas sim fatos de treino e livros. Alguém lhe soprou ao ouvido os meus gostos literários, onde a História tem lugar marcado. Entre algumas obras veio uma de William H. McNeill: Pestes e Povos (Um relato sobre o impacto das epidemias na ascensão e queda das civilizações). 

Li-o de supetão, entusiasmado pela atualidade do tema e pelo seu rigor literário e científico. É brilhante a forma como relaciona a evolução demográfica das múltiplas civilizações e o impacto que tiveram nesse longo processo as pandemias (microparasitismo) e as lutas pelo poder político-militar e económico (macroparasitismo).

Aconselho a sua leitura, sobretudo a quem tem pretensões de esclarecer o público sobre alguns aspetos da pandemia atual; se conjugarem os dados científicos já disponíveis com o conhecimento histórico, estarão em melhores condições de falarem publicamente, sem incorrerem no risco de cometer erros de análise grosseiros, como o de dar excessiva importância patológica à variante Omicron.

Para esta estirpe também é válido o seguinte princípio geral: à medida que as populações primeiramente atingidas por uma pandemia adquirem imunidade (natural ou artificial), o agente infeccioso começa a perder agressividade, porque os hospedeiros que o alimentam criam-lhe dificuldades de progressão. Nessa altura, saltam rapidamente para organismos virgens, o que aumenta a contagiosidade. Em resumo, estas duas facetas dos germes são inversamente proporcionais.

Neste ciclo evolutivo corre-se sempre o risco dos microrganismos se irem acantonar em agregados populacionais mais pequenos, sem imunidade, criando-lhe boas condições de sobrevivência e dando-lhe a possibilidade de gerar posteriormente perigosas mutantes resistentes. Em qualquer dos casos, se nesta trajetória epidemiológica voltarem ao ponto de partida, só farão estragos significativos muito mais tarde, nas gerações posteriores, que não adquiriram imunidade por falta de contacto com o agressor ou através da vacinação.

Face a esta problemática, seria bom que o esforço de vacinação para o SARS-CoV-2 fosse dirigido aos países pobres, não só para proteger as suas populações, mas também para defender as gerações vindouras dos países que primeiro beneficiaram com a imunização. É outra forma de solidariedade geracional, pois se queremos que os cidadãos em idade ativa paguem a reformas dos idosos, será desejável que lhes deixemos como herança um ar mais respirável.