A Justiça pode esperar…

Van Dunem, magistrada de carreira, não se inibiu de suspender por algumas horas a sua atividade como governante, para tomar posse, em março de 2016…

Há temas que, estranhamente, andam arredios, quer do debate pré-eleitoral, quer da campanha em curso. Um deles, é o estado da Justiça, tratado normalmente com pinças, mesmo no confronto televisivo de António Costa e Rui Rio, onde se percebeu que nem um nem outro queriam chamar ‘os bois pelo nome’.

E, no entanto, a morosidade paralisante dos principais casos mediáticos, desde a Operação Marquês ao antigo BES, ou a ‘guerra surda’ e às escancaras entre juízes, ou, ainda, a promiscuidade entre a política e a Justiça, dariam ‘pano para mangas’.

Por exemplo: poderá aceitar-se, com um encolher de ombros resignado, que José Sócrates e Ricardo Salgado permaneçam, indefinidamente, sem julgamento, apesar das suspeitas e acusações pesadas que impendem sobre ambos?

Quando se ‘enche a boca’ com a separação de poderes, fixando teoricamente uma linha vermelha entre a Justiça e a Política, será legítima a ‘porta giratória’ que tem permitido a magistrados desempenharem funções governativas – ou no perímetro do executivo –, retomando, depois, os seus lugares de carreira, sem cuidarem sequer de um ‘período de nojo’?

Maria José Morgado, procuradora jubilada, não tem dúvidas e, num recente artigo publicado no Expresso, apontava a «ansiedade» que pressentiu em colegas, cansados da penúria em que trabalhavam, desejosos de uma sinecura, que lhes garantisse «um bom gabinete, um motorista e um telemóvel». 

Morgado lembrava mesmo, citando a Transparência Internacional de Portugal, que, entre novembro de 2015 e 2019, «foram registadas 23 nomeações de magistrados para os cargos de ministro, secretário de Estado, chefe de gabinete, diretor-geral e diretor-adjunto» (dos quais, 16 continuam em funções), algo que o estatuto dos magistrados judiciais e do Ministério Público não proíbe, embora o faça em relação a atividades partidárias. 

Colocam-se, todavia, questões delicadas. E já em 2019, o atual presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares, comentava na Visão, que «os juízes reprovam essa situação, não por constituir uma ilegalidade […] mas porque pode levantar problemas de ética», afetando a imagem de independência da Justiça.

Os sentimentos dominantes na magistratura, serão, portanto, a fazer fé no presidente da ASJP, de «incómodo e reprovação» perante quem utiliza essa ‘porta giratória’.

Mais recentemente, Manuel Soares notava que os programas eleitorais do PS e do PSD não incluíam «nem uma linha sobre questões como o impedimento das ‘portas giratórias’, que permitem que juízes saltitem entre os tribunais e comissões de serviço de confiança político-partidária (…) ».

Já Maria José Morgado defendeu, sem tibiezas, que «talvez fosse importante proibir os magistrados de exercer tais funções », algo que está fora dos mesmos programas eleitorais.

O certo é que não foram proibidos e o caso da atual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, ilustra bem as preocupações de Morgado e de Soares. 

Magistrada de carreira, não se inibiu de suspender por algumas horas a sua atividade como governante, para tomar posse, em março de 2016, do cargo de juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, para o qual fora, entretanto, nomeada. 

Preenchida essa formalidade, a vaga ficou cativa e o início de funções naquele órgão ficou «automaticamente suspenso e é diferido» para quando sair do Governo, o que vai acontecer em breve.

Houve polémica na altura, que mobilizou juristas, e chegou, até, ao Parlamento através do então deputado do PSD, Carlos Abreu Amorim, mas nada se alterou, exceto em pomposas declarações de princípio, como no ‘Compromisso ético dos juízes portugueses’ documento aprovado em 2009 pela ASJP, onde consta que «o juiz, para preservar a sua independência e imparcialidade» deve rejeitar «a participação em atividades políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política».

Pelos vistos, o compromisso é ‘letra morta’, a julgar pelo número de magistrados investidos em funções governamentais. 
Mas a opacidade na Justiça não se fica pelas ‘portas giratórias’ bem lubrificadas. É intolerável, por exemplo, o arrastamento dos megaprocessos, agravado pelos mais variados expedientes dilatórios, antecâmara de prescrições e de arquivamentos. 

A juntar a este estado de coisas, as ‘guerras’ entre juízes só podem contribuir para o desprestigio da Justiça, minando a confiança, que é uma pedra angular num Estado de Direito. 

E assim se atrasa, irremediavelmente, a aplicação da Justiça em tempo útil, o que é facilitado, também, pelo excessivo garantismo da legislação portuguesa, que sucessivos governos não corrigiram.

Sócrates e Salgado, entre outros arguidos de renome, podem dormir descansados…