Em nome da liberdade

Não nego que existe ainda muito machismo, mas não me parece que este se combata com as munições largamente absurdas da ‘Teoria do Género’.

Por Maria de Fátima Bonifácio, historiadora

Aqui há uns poucos anos, quando ouvi falar na introdução no curriculum liceal da disciplina obrigatória de ‘Educação para a Cidadania’, desconfiei imediatamente que se trataria de lavar os cérebros de crianças e adolescentes desprovidos dos meios mais elementares para conceber quaisquer críticas aos conteúdos ideológicos que – tinha a certeza – marcariam tal ensino. Não me enganei.

Conhecedora das vogas académicas oriundas do mundo anglo-saxónico, e rapidamente abraçadas com fervor por todos os igualitaristas radicais, coisas como a ‘Teoria do Género’ foram elevadas à categoria de dogmas inquestionáveis. Aparentemente, a adopção dos princípios da ‘Teoria do Género’ condicionariam positivamente a nossa Weltanschauung, o que não é dizer pouco. Confesso que nunca consegui perceber o que era, em essência, essa ‘teoria’. Creio que seja uma ‘teoria’ nos termos da qual o género transcende o nosso sexo biologicamente definido, queira lá isto dizer o que for. Será que ‘género’ é preferível porque permite a superação entre os sexos? E, portanto, consagrar a total igualdade entre masculino e feminino? 

Talvez seja isto. Mas, como antiga feminista que sou, não posso deixar de referir que, tendo em jovem devorado o Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir, recordo-me que nesse autêntico tratado feminista, publicado originariamente em 1949 mas apenas amplamente difundido nos anos 50-60, nunca a autora pretendeu anular ou negar as diferenças entre homens e mulheres resultantes da diferença do sexo biológico. O que ela defendia era que tais diferenças não legitimavam as discriminações entre os dois sexos, e que portanto deviam ser abolidas. O que ela defendia era a autonomia pessoal, e portanto económica, da mulher, e a igualdade de direitos, tanto em casa como no local de trabalho como no espaço público. Mas nunca lhe ocorreu que homens e mulheres não fossem sexualmente diferenciados mediante a aplicação do novíssimo conceito de ‘género’.

Mas nada disto basta para os mais modernos furores das feministas fanáticas que se agarram à ‘Teoria do Género’, parte integrante da ‘Educação para a Cidadania’. E, já agora, o que tem uma coisa a ver com a outra? O título da cadeira, além de ser enganoso, remete para a externalidade que somos nós todos a viver em sociedade; ‘Teoria do Género’ remete para a intimidade individual, muito embora, na prática e na realidade, depois de muitos contorcionismos, acabe por ser ou ser tomada por uma teoria social. E aposto que é como tal que ela é ensinada às nossas crianças e adolescentes. Não espanta: trata-se de uma versão do extremo igualitarismo hoje reinante. Essa teoria social diz-nos que as mulheres estão sujeitas a uma conspiração machista que inibe o seu desenvolvimento e prejudica a sua ascensão social. Não nego que existe ainda muito machismo, mas não me parece que este se combata com as munições largamente absurdas da ‘Teoria do Género’. Para este combate, Beauvoir continua a parecer-me mais útil. Claro que ela incomoda muitas feministas que depois de uma grande berraria contra os machos entendem que o cavalheiro lhes deve pagar o jantar…

Muito mais útil do que a verborreia da ‘Teoria do Género’ seria dar passos enérgicos a fim de extirpar ou minorar a praga da violência doméstica. Deve ser tão velha como os casais, mas só mais recentemente, por via dos media, vamos sabendo das atrocidades cometidas na intimidade dos lares. Há mulheres espancadas todos os dias; mortes frequentes. Isto tem que acabar. Para que acabe, é preciso atacar as causas. E as causas são muito cruamente a diferença de força física entre o sexo masculino e o sexo feminino. Que fazer? Se eu fosse ministra da Educação, a primeira medida que tomaria era decretar a criação de uma disciplina de artes marciais logo a partir da primeira classe e exclusivamente para raparigas. Não tenho uma dúvida de que, chegadas ao fim do Liceu munidas com esta capacidade de defesa e ataque, a maioria dos homens pensaria duas vezes antes de, uma vez casado, levantar a mão para a mulher e lhe pregar um bofetão. Seria uma disciplina mil vezes mais útil e eficaz do que as patacoadas da ‘Educação para a Soberania’, não tenho dúvidas. Porém, vejo as nossas (e as outras) feministas mais empenhadas em divulgar a ‘Teoria do Género’ do que em atacar efectivamente esta praga, em vez de apenas a deplorar com lágrimas de crocodilo.

Nesta nova disciplina, pomposamente intitulada ‘Educação para a Cidadania’, inclui-se, além da ‘Educação para a Igualdade de Género’, um módulo espantoso: ‘Educação para a saúde e sexualidade’. Os meninos ficam a saber que os bebés não vêm de Paris trazidos no bico de uma cegonha. Isto, que dantes se descobria muito natural e saudavelmente através de uns coleguinhas mais espertinhos e mais informados, é agora objecto de lecionação especial! Que, a meu ver, mata a deliciosa malícia com que descobríamos que não era verdade o que nos diziam em casa. A partir daí a nossa curiosidade crescia e nasciam os namoricos infantis. A partir daqui, competia aos nossos Pais educarem-nos para a ‘saúde e sexualidade’ – os que quisessem fazê-lo. Nos meus tempos, é claro, o assunto era tabu. Mas, como a tantas outras e outros, a vida foi-me ensinando até ao ponto em que eu dispensaria lições paternais.

Muitas coisas mudaram, e entre elas avultam as relações entre pais e filhos, que se tornaram muito mais desportivas, digamos assim. Hoje, a maioria dos pais são camaradas e abertos à discussão de todo o tipos de temas. Não sei se é melhor ou pior, mas sei uma coisa: se há domínio exclusivamente privativo da família, é precisamente este tópico íntimo que respeita ao desenvolvimento sexual dos filhos. A que propósito vem o Estado meter-se nisso??? Não apenas é inconstitucional (art.º 43), como inevitavelmente só pode gerar a galhofa na aula – ou no recreio subsequente – em torno de um tema sério.

E a ‘Educação para a Cidadania’? É ensinar que não se cospe para o chão? Que não se atiram beatas para a rua? Que se deixa passar os mais velhos à frente? Que não se escrutina de alto a baixo pessoas com um ar exótico? Que se deve participar nos actos eleitorais? E por aí fora? Mas estas e outras coisas que fazem parte do que se chama civismo aprendem-se em casa e/ou na vida. Deve portanto a ‘Educação para a Cidadania’ ser algo mais do que o ensino destas trivialidades. Imagino que faça parte do currículo da cadeira a aprendizagem da Constituição, mas, como a nossa é uma constituição totalmente ideológica, suspeito que o conhecimento da mesma pouco ou nada contribua para incutir o gosto pelo pluralismo que uma verdadeira cidadania, livre e democrática, deve garantir. Em nome da Liberdade.