‘Não há ministro nenhum das finanças que não gostasse de baixar os impostos’

Para o ex-governante, o crescimento da economia passa por uma maior aposta na produtividade. Só assim será possível ‘uma melhoria das condições reais de vida dos portugueses’.

Fernando Teixeira dos Santos admite que o chumbo do Orçamento do Estado, que provocou eleições antecipadas, parece um déjá-vu do que viveu no Governo socialista após o chumbo do PEC IV. O  autor do livro agora lançado Mudam-se os tempos, mantêm-se os desafios reconhece que é necessário repensar no sistema fiscal, mas  não numa de campanha: ‘Não vale a pena estar a prometer e a dar aos portugueses algo que não possamos manter no futuro de uma forma sustentada’. Garante que foi um privilégio ter estado no Governo de António Guterres, como secretário de Estado, e em relação ao cargo que desempenhou enquanto ministro das Finanças lembra que a ideia era ficar apenas um mandato, mas sentiu que ‘não era o momento para abandonar o barco’ com um país mergulhado numa crise financeira global. Quanto à sua relação com o ex-primeiro-ministro, garante que deixou de falar com ele após a sua ida para Paris. Recorda ainda os momentos intensos vividos no Governo antes do pedido de resgate financeiro. 

O que o levou a escrever o livro que tem um título curioso: ‘Mudam-se os tempos mas mantêm-se os desafios’?
Acima de tudo, senti a necessidade de deixar um testemunho escrito de alguém que ao longo de muitos anos tem acompanhado a evolução da economia portuguesa e até diria que teve o privilégio de viver alguns desses momentos importantes, fossem eles positivos ou até negativos. Como sabemos, tive o privilégio de os viver por dentro. Fi-lo nesta altura porque, como explico na apresentação, acho que existe já um distanciamento temporal que me permite olhar para as coisas com mais objetividade e com muito menos carga emocional. Longe da carga que se vivia no calor dos acontecimentos e na pressão das situações. Penso que tudo isto foi ultrapassado e o regresso à minha atividade universitária e o tempo permitiram-me ter esse distanciamento e deixar este testemunho escrito, para não deixar que as coisas ficassem só, como costumo dizer, nas notícias e nas referências aqui e acolá. Pensei que este testemunho de alguém que viveu por dentro muito dos acontecimentos marcantes das últimas décadas poderia ser interessante, além de ter consciência que o país enfrenta desafios que são importantes e que não são de agora, mas que acho que têm de ser ultrapassados para melhorarmos as condições de vida dos portugueses. É uma preocupação com o presente e com o futuro.

Diz que os desafios se mantém. Nada mudou?
Considero que têm ocorrido melhorias ao longo do tempo, não só ao longo destes 10 anos, mas também nas décadas anteriores. O país felizmente tem progredido e inúmeros indicadores, quer sociais, quer económicos, revelam essa melhoria. Todavia, o que constato é que essa melhoria tem sido insuficiente para colocar Portugal numa situação melhor do que aquela que tem tido no contexto europeu. Há 50 ou 60 anos estávamos na cauda da Europa e agora, apesar de todo o progresso que se registou, continuamos no fim da tabela entre os nossos pares europeus. Acho que isso deve ser motivo de preocupação. Penso que nos contentarmos somente em olhar para a melhoria que ocorreu não chega. Acho que temos de ter uma ambição maior que é a de melhorarmos a nossa posição relativa no contexto dos países europeus. E, se olharmos para a média dos países, em particular da área do euro, onde nos integramos continuamos longe dessa média. Aproximamo-nos mas ainda estamos abaixo de forma significa dessa média.

Os relatórios da OCDE apontam exatamente para isso…
É verdade, mesmo quando nos comparamos com os países que entraram há menos tempo na União Europeia e na Zona do Euro. Isso deve ser um motivo de preocupação e deve ser um alerta para fazermos um esforço sério de melhorarmos o nosso desempenho económico e consequentemente, a partir daí, o próprio desempenho social do país, o que me parece fundamental. 

Um dos temas que aborda no livro é a produtividade. Continua a ser o nosso calcanhar de Aquiles?
É verdade, a questão da produtividade é a questão central na nossa economia. Quando constatamos que os rendimentos em termos reais dos portugueses evoluíram ao longo do tempo constatamos que essa evolução está relacionada com as melhorias de produtividade que entretanto ocorreram. E quando constatamos, ao mesmo tempo, que apesar dessa melhoria continuamos no fundo da tabela dos países europeus é porque a produtividade, apesar de ter melhorado, continua no fundo da tabela dos países europeus. Há uma correlação estreita, muito forte, entre 98% a 99%, entre a produtividade e o rendimento real e quanto a isso não haja ilusões: não haverá melhoria das condições reais de vida dos portugueses enquanto não melhorar a produtividade da nossa economia. 

E agora a culpa não pode ser só da falta de qualificações, porque nessa matéria Portugal evoluiu… 
Mas esse não é o único fator que afeta a produtividade. Diria que é dos fatores mais importantes, é um fator decisivo e o país melhorou muito nas últimas décadas, em termos dos resultados que tem obtido a nível educacional. Temos mais pessoas com o 12.º ano, temos mais pessoas com graus superiores de ensino e isso é bom, mas, apesar disso, continuamos ainda abaixo da média europeia. Este esforço tem que continuar e tem de ser reforçado. E mais, esta melhoria não é apenas uma melhoria que muitos pensam que está relacionada com os trabalhadores. Tem a ver com os responsáveis pelas organizações: com a direção, com a administração, com os cargos mais elevados dentro das instituições. Precisamos de melhorar qualificações, melhorar competências também a esse nível. O problema da produtividade não está só relacionado com o problema das qualificações, está também relacionado com as próprias condições de produção e, por isso, realço a importância do investimento. Aquilo a que chamamos em economia ‘o capital por trabalhar’ e quando se fala em capital fala-se em capital físico, dos instrumentos, das ferramentas, dos equipamentos, das instalações, das infraestruturas, tudo o que na economia alavanca o esforço do nosso trabalho. Tudo isso é fundamental para melhorar a produtividade e Portugal também nesse ponto de vista está na cauda dos países europeus. Estamos muito abaixo da média daquilo que é a relação na Europa entre o capital e o trabalho. Também precisamos de melhorar esta relação e, para isso, é preciso mais investimento. E esta questão do investimento é muito importante porque, em primeiro lugar, o país está a investir muito menos do que investia há 30 ou 40 anos. E, em segundo lugar, este stock de capital que existia na economia está a diminuir. Em vez de aumentar como deveria, está a cair e isso é preocupante. E é por isso que o país tem de fazer um grande esforço de investimento.

E qual a razão desta queda no investimento?
Como o investimento caiu, o stock de capital não está a crescer tanto quanto cresceu o volume de trabalho na economia e esta relação prejudica-se. Mas, por outro lado, como o investimento agora é mais baixo, não estamos a conseguir repor o desgaste, a depreciação normal do capital existente. Temos capital na economia, usamos esse capital na produção, mas o uso do capital, o próprio decorrer do tempo faz com que este capital perca valor. E o investimento tem que repor o valor e acrescentar ao valor e o que tem sido feito não tem sido suficiente sequer para repor essa depreciação do capital, e, por isso, esse valor tende a baixar ao longo do tempo. Temos que inverter esta situação, porque para melhorar a produtividade precisamos de ter mais capital por trabalhador e isso exige investimento. Outro aspeto que saliento é que, para haver mais investimento, precisamos de mais poupança e termos mais poupança quer dizer que temos de ter mais competitividade da economia no exterior, de forma a termos contas externas equilibradas. Isto foi conseguido, desde 2013, e há que preservar isto. O que revela que não precisamos de nos endividar no exterior para que a nossa economia funcione. Isto é um sinal que os recursos que produzimos são suficientes para responder aos níveis de gasto que temos na economia e, como tal, não estamos a gastar mais do que produzimos.

Gastar mais do que produzimos é uma ideia sempre tentadora dos Governos…
Claro, mas isso aconteceu durante muitos anos e durante muitas décadas. Este é um aspeto novo da economia portuguesa que tenho vindo a salientar. Desde 2013, o país tem, grosso modo, uns anos melhor outros pior, estado numa situação de quase equilíbrio externo, o que quer dizer que o país não está a gastar mais do que os recursos que tem e o que produz. Isto é bom, porque quer dizer que não estamos a aumentar o endividamento face ao exterior. Por outro lado, é importante que o próprio Estado, ao ter as contas equilibradas, garanta que dos recursos que tem consegue poupar o suficiente para financiar o seu próprio investimento. E o equilíbrio das finanças públicas é importante. Mas há um terceiro aspeto que gostaria de chamar a atenção, que é importante para a produtividade, e que tem a ver com a inovação, com o progresso tecnológico, com a eficiência das organizações e sua gestão – isto relaciona-se com as competências e com as qualificações dos responsáveis pela organização e pela gestão das instituições e com o enquadramento legal e regulamentar da atividade económica, como as questões da burocracia, etc. Tudo isto são fatores que melhoram a eficiência na utilização de recursos e podem, por outro lado, reduzir os custos de contexto que, muitas vezes existem, e que representam um custo para as empresas. Podemos aliviar esse ónus, melhorando o ambiente da atividade económica e em particular do investimento. Estou a pensar em coisas como os licenciamentos.

Às vezes são uma dor de cabeça…
São uma dor de cabeça porque demoram tempo e basta pensar neste exemplo simples, mas tão complexo há que o dizer: quantos projetos de investimento estão meses e meses, se não anos, à espera de um licenciamento. Isto custa dinheiro. 

E pode penalizar a atração de investidores estrangeiros …
Sem dúvida. Embora reconheça que seria muito bom reduzir os impostos, quer o IRC, quer o IRS, não sendo possível fazê-lo porque temos desafios no domínio das finanças públicas e temos de assegurar o seu equilíbrio, é importante atuar nestas frentes e reduzir estes custos. Isto é sem dúvida algo de muito benéfico para a atividade empresarial e para o investimento: a redução destes custos, desta burocracia. E um ambiente de inovação e de progresso tecnológico é algo que dinamiza, que incentiva e estimula o investimento. Precisamos de criar um ambiente desta natureza para fomentar o crescimento e a melhoria da produtividade. 

Já disse que é preciso mais de 290 anos para igualar a média de produtividade da zona euro…
Esse é um exercício simples: se supusermos que vamos continuar a crescer a nossa produtividade em média conforme cresceu nos últimos 20 anos e que a produtividade a nível europeu também vai crescer em média como cresceu nos últimos 20 anos, então vamos precisar de cerca de 290 anos para atingir a média europeia. Isto é preocupante, como é evidente. Espero que não tenhamos de esperar este tempo. Isto é mais um alerta para realçar a urgência e a prioridade que deve ser dada a este esforço de melhoria da produtividade. Temos de fazer algo muito significativo neste domínio.

Também já disse que o poder de compra per capita português está na cauda da Europa e que não basta aumentar os rendimentos para sairmos dessa situação…
Com este aumento de produtividade que estamos a ter e se continuar a aumentar como tem aumentado nos últimos anos Portugal, não vai ter uma melhoria significativa da sua posição no contexto europeu.

Também diz que enfrentamos o futuro com esperança, mas também com desilusão por falta de reforma. Que reformas são essas?
Tem a ver com as reformas que falei e com as reformas em geral para que haja o bom funcionamento da economia, dos mercados, com o papel das instituições em geral e, em particular, do Estado na economia. O Estado tem de balizar bem qual é o seu papel e o seu peso na economia e, por isso, temos de pensar seriamente em assumir um compromisso de, para já, estabilização da despesa. A despesa não pode aumentar indefinidamente. Temos de colocar um travão ao aumento da despesa, sem deixar de garantir o funcionamento em qualidade e de forma sustentável os serviços que são fundamentais para a população e  que estou convencido que querem que continuem.

E quais serviços?
Na Educação, na Segurança Social. Os portugueses querem ter um bom serviço de Saúde, querem ter boa Educação, querem ter assegurada a sua pensão. O Estado tem a responsabilidade de assegurar que estas políticas são sustentáveis e que vai ter recursos para assegurar essas políticas, mas esses recursos têm de vir do crescimento económico.

É a tal ideia que não se pode gastar mais do que aquilo que temos? 
Sim, mas temos de gastar até um ponto em que o peso da manutenção destas políticas, que são importantes, é aceitável na economia e não pode de forma alguma prejudicar os incentivos ao trabalho e ao investimento, que são fundamentais para o progresso e para o crescimento económico. Este compromisso tem de ser assumido, porque,  por um lado, permite ao setor privado saber com o que pode contar do Estado e, por outro lado, exige do Estado um rigor, uma eficiência na utilização de recursos que é muito importante e que será muito de salutar sob o ponto de vista financeiro para a nossa economia. 

A pandemia também exigiu um aumento da despesa…
Não podemos ignorar que há situações excecionais, a que é preciso fazer frente. A pandemia é um exemplo claro, como também foi a crise financeira que tivemos há 10/12 anos com os problemas económicos e sociais que trouxe. Mas uma vez superadas estas situações extraordinárias temos de regressar a uma situação de equilíbrio e de solidez das finanças públicas. Não podemos permanentemente manter um défice das contas públicas porque isso é comprometedor da estabilidade financeira, por um lado, e representa um aumento da dívida que é um encargo que vai ter de ser suportado pelas gerações futuras, por outro. Não me parece que isso seja uma manifestação de solidariedade da geração presente para com os seus filhos, netos e vindouros. Penso que temos também de ter esse sentido de solidariedade entre gerações.

E vê a despesa com a TAP como uma situação extraordinária?
Não me debruço sobre a questão específica da TAP no livro, mas a certa altura refiro como princípio geral que deve ser uma preocupação que devemos ter: é que não faz sentido andarmos a colocar anos após anos dinheiro em empresas que não são viáveis. Não tenho condições, nem a informação toda para poder avaliar a situação da TAP e as perspetivas de evolução da empresa e, como tal, tenho dificuldade em fazer um juízo concreto sobre a sua situação atual. Agora, o que acho é que a sua situação deve ser avaliada à luz deste princípio. Não é salutar e diria que é uma forma ineficiente de afetação ou de utilização dos nossos recursos andar a colocar dinheiro em empresas que não têm perspetivas de viabilidade e de futuro. Se é este ou não o caso da TAP tem que ser devidamente avaliado e os responsáveis políticos que conhecem melhor o dossiê poderão avaliar isso melhor. 

O mesmo princípio deverá aplicar-se às Parceria Público Privadas e às SCUT?
Sem dúvida, mas creio que tem vindo a ser possível progressivamente melhorar as condições financeiras subjacentes aos projetos das SCUT, embora os números que, muitas vezes, vemos referidos dos encargos atuais – o chamado valor líquido atual desses projetos – não têm em linha de conta o facto de o equipamento ou a infraestrutura continuar a existir depois do fim da concessão. Muitas vezes, o valor líquido da PPP que estáa a ser analisado é o valor líquido que tem como horizonte temporal o período da concessão. Mas, terminada a concessão, do hospital, da autoestrada, seja qual for o equipamento continua e tem valor e, muitas vezes, esse valor não é tido em conta. Esta avaliação tem de ser um pouco mais abrangente e depois há outro principio base na chamada análise custo/benefício, quando fazemos essa análise de um projeto de natureza social, como é este, não podemos focar exclusivamente os aspetos financeiros imediatos. Há benefícios sociais que não são contabilizados, mas que não podem ser ignorados. É o caso, por exemplo, do aumento da segurança rodoviária, isto não é contabilizado, nem a redução do número de mortes, etc. A maior rapidez das comunicações e dos transportes também não são tidos em conta. Mas tudo isto são benefícios sociais importantes e que, muitas vezes, não são contabilizados nessas contas. Acho que estes projetos têm de ser bem avaliados, uma coisa é a sua avaliação estritamente financeira para o período da concessão, outra coisa é a avaliação financeira para toda a vida útil do equipamento, o que são coisas diferentes. E uma coisa é a avaliação financeira e outra é a avaliação social, uma vez que há aspetos sociais que têm de ser tidos em conta a par ou em cima da avaliação financeira que é feita. É com todos estes parâmetros que devemos avaliar este tipo de projetos. Ainda assim, acho que tem-se vindo a melhorar e creio que as renegociações que entretanto ocorreram ao longo dos anos têm vindo a melhorar a posição do Estado e a reduzir os encargos líquidos que este tem de ser suportar.

Aborda num dos capítulos do livro o SMS que enviou a José Sócrates a dizer que o pedido de ajuda era inevitável, mas que havia alguma resistência por parte do primeiro-ministro da altura. Se esse pedido tivesse sido feito mais cedo, poderia ter mudado alguma coisa?
Acho que esse pedido se tornou inevitável. Mudaria alguma coisa se esse prazo tivesse sido encurtado? O pedido foi formulado em abril, mas se tivesse sido formulado cinco ou seis meses antes teria sido melhor para o país? É difícil responder claramente a esta questão, a minha perceção, olhando para aquilo que se passou com a Grécia e com a Irlanda, que pediram esse auxílio, antes havia um figurino muito pré-formatado pelas instituições financeiras e pelo Fundo Monetário Internacional quanto às condições que a sua ajuda poderia ser dada. E esse figurino seria o mesmo, na minha opinião, em outubro ou novembro de 2010 face aquele que foi em abril de 2011. Não creio que houvesse aí grande diferença. Creio que tivemos uma boa negociação da parte portuguesa do programa, houve francamente exigências fortes por parte da chamada troika a que resistimos e a troika acabou por ceder e deu-nos razão, o que revela bem que a negociação foi feita. 

Houve então alguma margem de manobra…
Exato, houve espaço de negociação, houve coisas relativamente às quais nos opusemos e a troika acabou por vir de encontro às nossas preocupações e mudar a sua posição. Sob esse ponto de vista não esperaria nada de muito diferente do que foi conseguido se essa negociação tivesse ocorrido cinco ou seis meses antes. 

Um pedido que se tornou inevitável com o chumbo do PEC IV?
É caso para dizer que ‘ficámos no meio da ponte’, ou seja, havia consciência que tínhamos de fazer alguma coisa para aliviar as pressões existentes no domínio do financiamento dos Estado e o PEC que foi negociado com a Comissão Europeia e com o Banco Central Europeu dar-nos-ia um tempo para podermos normalizar a nossa situação com os mercados e, porventura, melhorá-la. Como o PEC IV não mereceu uma aceitação política generalizada, as coisas precipitaram-se e devo dizer que as dificuldades com que o país se encontrou e a resposta que demos foi insuficiente, basta ver aquilo que foi a reação dos mercados e as dificuldades que sentimos. Os mercados acharam que não chegava e a resposta foi insuficiente. Por um lado, porque sentia essa relutância dentro do Governo em avançar com medidas mais ousadas; por outro lado, do ponto de vista política em geral, os políticos – em particular os principais partidos de oposição – também não se manifestaram muito abertos a aceitarem políticas mais ousadas. Se virmos o que se passou em Portugal com o que se passou na vizinha Espanha: em Espanha foi possível um consenso político mais alargado em torno das medidas a tomar face aquilo que foi possível em Portugal. Esta falta de consenso político alargado, o facto de a oposição se unir toda contra o PEC IV foi um sinal claro de que o Governo não tinha apoio político para ser mais ousado e isso também não facilitou a resposta portuguesa.

O Orçamento do Estado para 2022 também não contou com o apoio dos partidos e acabou por ser chumbado. Sentiu um déjá vu?
Sob esse ponto de vista é uma situação semelhante. A situação vivida com o Orçamento do Estado para 2022 é também um exemplo da instabilidade e das dificuldades que pode criar ao país quando os partidos se reúnem todos contra o Governo e isolam o Executivo dessa forma. 

Em contrapartida, a troika impôs uma série de reformas…
Com o pedido de ajuda e com o programa de assistência financeira que depois foi celebrado com a troika, o país acabou por ter que implementar medidas que no essencial eram medidas que estavam previstas no PEC IV que foi rejeitado, aliás comento isso no livro. Curiosamente, passados poucos meses, Pedro Passos Coelho, o seu Governo, teve que implementar aquelas medidas que rejeitou no PEC IV. Podemos dizer que houve aqui alguma ironia do destino sob esse ponto de vista. Essas reformas foram implementadas e creio que, no meu entender, os resultados estão aí à vista. Essas medidas combinadas já com reformas que tinham sido feitas anteriormente – ainda antes da crise financeira e da intervenção da troika houve uma reforma da Segurança Social, da administração pública, em particular no que diz respeito às carreiras, vínculos e remunerações da administração pública, sistemas de aposentação, quer do regime geral da Segurança Social, quer da Caixa Geral de Aposentações – e foram medidas muito importantes que deram frutos nos anos a seguir, em termos de controlo da despesa. Em cima disto, as medidas que vieram com a troika permitiram que as finanças públicas entrassem numa rota de correção e de melhoria do seu saldo. Houve, em alguns anos, uns eventos extraordinários relacionados com ajudas a bancos, etc., mas, abstraindo dessas situações pontuais e extraordinárias tivemos desde aproximadamente 2010/2011 e daí a adiante, fruto destas medidas, quer das reformas que foram tomadas, quer das medidas da troika houve uma melhoria das finanças públicas. E na segunda metade da década passada, a melhoria do crescimento económico permitiu atingirmos uma situação de quase equilíbrio orçamental em 2019. No domínio externo, o programa da troika também foi importante. O país melhorou claramente a sua competitividade, as empresas de alguma forma foram forçadas a virarem-se mais para os mercados externos, porque as medidas foram muito restritivas, bastante recessivas do ponto de vista interno, o que fez com que muitas empresas tivessem que explorar o mercado externo face à estratégia do mercado interno que se contraiu bastante, em virtude das políticas adotadas. E isso melhorou muito a competitividade da nossa economia face ao exterior. Daí termos conseguido ter praticamente um equilíbrio externo que dura há 8 anos. E sublinho muito aspeto porque, nos últimos anos da nossa história, nunca estivemos tanto tempo com uma situação de equilíbrio externo tão prolongada. É algo muito importante que o país não pode perder. Vamos ter de continuar este equilíbrio externo e que não precisamos de nos endividar face ao exterior. 

Mas isso também  implicou um aumento da carga fiscal…
Houve um aumento e o próprio ministro falou em ‘aumento colossal dos impostos’ e sem dúvida que temos de fazer um esforço da redução da carga fiscal, mas temos que ter prudência nesse esforço porque é importante que asseguremos um ambiente de crescimento económico sustentável e consigamos assegurar de forma sustentada uma situação de equilíbrio das finanças públicas com a tal estabilização e controlo do peso da despesa na nossa economia. E se isto for conseguido com o crescimento económico sustentado então aí teremos espaço de manobra para reduzir os impostos. Isso parece-me importante, quer para melhorar a competitividade das empresas, quer para melhorar o rendimento dos portugueses. Temos um sistema fiscal, em particular no que diz respeito ao IRS, que pesa muito na classe média. E quer a solidez da economia, quer a solidez da democracia dependem de uma classe média que tem de sentir que é devidamente recompensada e reconhecida pelo esforço que desenvolve e, um sistema fiscal que penalize em excesso a classe média cria um ambiente de desilusão face ao regime democrático, etc., o que é perigoso.

A solução poderá passar pelo desdobramento dos atuais escalões?
Não queria discutir soluções em concreto. Não sou fiscalista, não quero meter a foice em seara alheia.

Mas foi o Ministro das Finanças que esteve mais tempo no poder.
É verdade. Mas há fiscalistas. Tinha gente da área fiscal que me assessorava e tinha um secretário dos Assuntos Fiscais que era especialista nestas áreas. Não estava sozinho, como é evidente. Creio que a carga que existe nesse domínio tem que ser repensada. Se calhar temos de pensar de uma forma mais ampla a tributação deste país porque o que está em causa não é só o IRS, não é só o IRC. Poderá valer a pena pensarmos em todo o sistema fiscal português em conjunto e não necessariamente em medidas pontuais neste ou naquele imposto. O sistema, no seu todo, na sua equidade, na sua eficiência merece ser debatido e refletido, mas não para responder a necessidades eleitorais que estão aí. Esse debate e essa reflexão deveriam decorrer fora deste ambiente eleitoral porque não me parece que seja o melhor ambiente para uma discussão aprofundada dessa matéria.

E que se fala muito nestas últimas semanas…
São aspirações que existem na economia. E digo por experiência própria: não há ministro nenhum das Finanças que não gostasse de baixar os impostos. Mas temos que ser muito realistas nestas medidas porque não vale a pena estar a prometer e a dar aos portugueses algo que não possamos manter no futuro de uma forma sustentada. Enquanto não tivermos condições nas finanças públicas que assegurem que essas medidas possam ser tomadas para ficarem e para serem sustentadas temos de ser prudentes. Se não, o que fizemos agora, se não preencher esses requisitos, vai-se traduzir em défices, em dívidas e depois para corrigir o défice e a dívida vamos ter de recuar. Não faz sentido.

E temos desafios preocupantes pela frente: o aumento da inflação, o risco da subida de juros… um cenário económico que poderá ser ameaçador em termos de crescimento.
Temos riscos que não podem ser ignorados. Riscos esses que devem ser devidamente ponderados e que, no meu entender, aconselham a prudência, a reflexão da atual situação e das perspetivas de evolução da atual situação orçamental.

Foi o ministro das Finanças que esteve mais tempo no Governo em tempo de democracia. Estava à espera de ficar tanto tempo com essa pasta? Antes disso foi secretário de Estado…
Fui secretário de Estado do Tesouro e das Finanças de Sousa Franco, no primeiro Governo de António Guterres. Primeiro tinha sido convidado por Daniel Bessa – que foi ministro da Economia do engenheiro António Guterres – para ser o seu secretário de Estado do Comércio. Mas entretanto, António Guterres e Sousa Franco entenderam que me queriam convidar para secretário de Estado do Tesouro e das Finanças. Nessa altura, tive alguma relutância em voltar atrás com o compromisso que tinha assumido com Daniel Bessa. Estava a contar comigo para ser seu secretário de Estado do Comércio. E a minha primeira resposta foi que não, que tinha sido convidado para secretário de Estado do Comércio e iria respeitar o meu compromisso. Mas António Guterres achou que seria um desperdício e que era mais importante que fosse para o Tesouro e Finanças e foi isso que aconteceu. Para mim, foi um privilégio ter estado nesse Governo e, em particular, ter estado com o primeiro-ministro António Guterres e com  Sousa Franco.

Mais tarde entra no Governo pela mão de José Sócrates como ministro das Finanças e foi aí que ficou os tais cinco anos com a pasta…
Cinco anos e 11 meses certinhos.

Um Governo maioritário e minoritário…
Sim. Quando fui para o Governo contava – porque havia uma maioria absoluta – estar até ao fim do mandato, ou seja, durante quatro anos. Mas ainda em 2009, o país estava a confrontar-se com uma crise financeira global, os seus efeitos nocivos e a instabilidade financeira vivida na altura entendi que não era  o momento para abandonar o barco. Também José Sócrates manifestou interesse em que continuasse atento à situação do país e achei que era meu dever não abandonar o país nessa situação e continuar a enfrentar as dificuldades e os desafios que ela nos colocava.

Pelo que li no livro José Sócrates terá ficado um pouco desiludido por ter dado aquela entrevista ao Jornal de Negócios a falar na necessidade de pedir ajuda financeira. Sócrates terá entendido isso como uma forma de pressão?
A pressão fi-la antes. É evidente que entendi que uma era decisão necessária. Não podia manter anónima a minha posição ou o meu entendimento quanto à situação e sim, ele ficou muito espantado e cortou relações comigo na sequência dessa entrevista.

Até diz que entrou calado e saiu calado do Conselho de Ministros.
Entrei mudo e saí calado, é verdade. Nesse dia à noite comunicou ao país que iríamos fazer o pedido de ajuda externa. Mas antes reuniu os ministros na residência oficial a explicar a razão do pedido. Nunca se queixou da minha entrevista durante essa intervenção mas era evidente que não estava satisfeito. Entrei nessa reunião, como disse, mudo e saí calado. Não teci qualquer comentário, eles sabiam o que pensava e tinha consciência que os meus colegas também tinham consciência da gravidade.

A relação foi retomada depois destes anos todos?
A relação foi, de alguma forma, normalizada quando o Governo deixou funções e antes de ele ir para França. Organizou um almoço com outros ministros, convidou-me para ir e disse-me ‘Isto é para não acabarmos zangados, as coisas acabam aqui’. Depois disso falei com ele ao telefone poucas vezes mas depois a relação sofreu bastante na sequência de uma entrevista que ele deu ao Expresso à Clara Ferreira Alves onde teceu algumas considerações que me pareceram muito infelizes relativamente ao que se tinha passado na altura e àquilo que tinha sido a minha ação e intervenção. Acho que não foi muito correto nas considerações que teceu e, nessa altura, voltámos a cortar relações e a partir daí nunca mais falei. Já lá vão uns sete, oito anos.

E sente que a sua imagem – neste caso, do Governo em que esteve – vai ficar sempre associada a este resgate? O PSD diz que durante o Governo de Passos Coelho não pode aplicar as suas políticas por estar sujeito ao programa de ajuda financeira…
Acho que sim. Este Governo ficará sempre com a sua imagem ligada a esse pedido de resgate. Pessoalmente, não tenho qualquer preocupação em que a minha imagem fique associada a esse pedido de resgate. E acho importante que os portugueses não esqueçam isso. Que não esqueçam que o país chegou a uma situação, em que foi necessário pedir um resgate. É importante que não voltemos…

A cometer os mesmos erros do passado?
Que não voltemos a estar novamente numa situação como esta, que não se volte a repetir.