Mallu Magalhães: “A música entra em contacto com a essência que temos mas nem sempre podemos ouvir”

Quando era pequena tinha ‘colapsos absurdos’ em que se interrogava sobre a ‘ausência da vida’, talvez por nela ‘caber o mundo inteiro’. Hoje, Mallu Magalhães é um dos nomes mais conhecidos da música brasileira. E, com o seu sorriso tímido, mas generoso, será também um dos rostos que pisará o palco do Nos Alive, no…

Mallu Magalhães: “A música entra em contacto com a essência que temos mas nem sempre podemos ouvir”

Quem é a Mallu para além da artista?

Eu acho que tento o meu melhor diariamente. Acordo e penso: ‘Vou tentar fazer o meu melhor pelo próximo, pela minha família, pelas pessoas que encontro na rua, pelo meu trabalho’. Sou também uma pessoa que tenta manter sempre a calma. O mundo tem muitos estímulos, é muito desafiador, por isso eu procuro me concentrar em manter a calma e a sanidade… Tentar manter o eixo. Essa rotina que a gente, em geral, vive, impõe muitos desafios. Evito ficar pensando muito tanto no passado como no futuro. Lido com uma situação de cada vez porque eu acho que aí consigo ser inteira, estar inteira. Acho que o resumo da minha ópera é esse: sou uma pessoa que vive um dia de cada vez, que aproveita as oportunidades que lhe são dadas, os momentos… Na verdade o momento é tudo aquilo que a gente consegue tirar da vida, do mundo, de quem a gente é. O resto não está nas nossas mãos. Nem o que passa, nem o que se vai passar…

E o que é que ficou da Mallu com 16 anos que juntou dinheiro e gravou quatro músicas, colocando-as depois no MySpace?

Eu acho que é a mesma, só que passou tempo… A gente tem a nossa essência… Claro que, naturalmente, aprendemos com os nossos erros e certamente que os meus erros me levaram a um lugar muito mais consciente. Só beneficiei dessa trajetória de já ter tido muitas experiências positivas e desafiadoras. Isso me fez ter mais recursos para lidar com tudo. O que é que ficou? Ficou um sonho. Eu me agarro aos sonhos e continuo a pensar que é só uma questão de tempo… Continuo a ser assim. E é verdade mesmo. A nível prático, se você tentar, tentar e tentar outra vez, é uma questão de tempo. E, às vezes, quando as coisas parecem que não vão dar certo, eu procuro voltar para essa fonte de sonho. Claro que existe toda uma parte prática da vida que precisa ser levada em conta… Eu, às vezes, acabo tomando decisões que são baseadas em necessidades práticas. Por exemplo: ‘Tenho o sonho de escrever um livro, mas agora não dá tempo por conta de eu ter outros projetos!’. Então vou conciliando o sonho com a realidade, mas tentando aproveitar os dias. Ficou isso dessa essência… Esse lembrete de tudo o que eu preciso está aqui. Sabe? A paciência e essa crença no meu próprio sonho. 

Com a mesma idade, depois das pessoas começarem a conhecer o teu trabalho, dizias que gostavas muito de abraçar as pessoas. Já mais recentemente afirmaste ser «uma das pessoas que continua a acreditar nas pessoas».

É… Eu acredito muito… No outro dia estava a escrever um texto refletindo sobre isso, da entrega que é o palco, a exposição, a coisa de ser uma figura pública e sei lá… Eu confio mesmo, entrego-me a 100%. Claro que tem os seus desafios e consequências e é natural que numa quantidade grande de pessoas existam aquelas que são diferentes de mim e que vão apontar essas diferenças de uma maneira crítica, mas tudo bem. É verdade que com o tempo a gente fica mais protegidas, mas também não precisa de acreditar. Eu acredito que é possível ter um ambiente de trabalho, uma conduta de carreira e uma conduta de vida, de carinho, amor, generosidade, compreensão, tolerância. Eu acredito nesse ambiente de vivência e procuro criar ele diariamente nos lugares onde estou. O que fica é isso. Mais do que as conquistas ou até o dinheiro, o que ficou é se você foi feliz. A verdade é que no fim compensa. Acredito nas pessoas, confio nelas, vou de encontro a elas. 

Quando eras pequena entravas rapidamente em «colapsos absurdos» em que te interrogavas sobre a «ausência da vida». Porque é que uma criança pensa nisso?

Eu pensava muito: ‘Numa hora vai acabar, numa hora vai acabar’. Entrava num colapso porque eu gosto muito de viver, então eu realmente não queria que acabasse. Mas acho que é uma coisa bonita de se sentir, é um sinónimo de amor à vida. Mesmo nos momentos mais difíceis da minha vida, eu sempre estimei muito a coisa de estar aqui. É uma gratidão e respeito. É muito frágil e, por isso, é preciosa. Mas sim, eu entrava em muito em colapsos absurdos porque sempre tive muitas dificuldade em gerenciar as minhas emoções.
 
E como é que a música entra na tua vida? O facto de teres um pai músico influenciou o teu percurso de alguma forma?

No outro dia o Marcelo [marido e músico] falava da teoria de um filósofo que me fez muito sentido. O compositor e o músico canalizam os nossos pulsos, que estão entre o corpo e a consciência, na música. Então são como os desejos viscerais da gente. A gente consegue canalizar na música. Cada um canaliza de uma maneira. Há pessoas que encontram isso no esporte, nos passeios, na dança… Cada um tem uma coisa que encontra na sua vida e que o faz pensar: ‘Nossa… Aqui eu consigo colocar para fora coisas que não estão nem na minha consciência, nem no meu corpo. Estão ali no meio. São desejos, mas estão aí’. Toda a gente precisa dessa válvula de escape. Foi isso que aconteceu comigo. Eu acho que a música foi fundamental para mim a dada altura. Todo o mundo tem dificuldades com gestão de sentimentos e emoções e, para mim, foi desafiador. 

Então acreditas que a música pode salvar vidas?

Totalmente! Para mim foi uma salvação. Porque a música entra em contacto com essa essência que temos que nem sempre podemos ouvir. Nem sempre você pode dar ouvidos a determinados impulsos e acho que a música medeia isso. Você está no carro e começa a tocar uma música que te causa um desejo enorme de viajar, de ser feliz, ir em direção aos seus sonhos. Isso é muito valioso… São lembretes, são faróis. Tal como as outras artes, ou as companhias. Muitas vezes temos amigos ou familiares que numa frase, num gesto ou num passeio, são capazes de despertar as coisas em nós. Coisas que temos dentro de nós mas que estavam escondidas. 

Tu falas da música como mantra, ou como hino… São dois dos seus poderes?

Sim. A música permite-nos trabalhar tantos campos e conhecer tantas emoções… Tem a arte crítica que tem como objetivo alertar para uma injustiça, tem uma arte que acalma, tem aquela que faz você querer dançar… Cada uma tem um poder. E eu sinto que eu mesma vou mudando como pessoa e vou começando a produzir músicas de formas diferentes, também para suprimir o meu desejo de música. É como se eu escrevesse música para mim mesma e aí ela serve para outras pessoas. Então, às vezes, me dizem que eu pareço ser muito alegre, porque as minhas músicas entregam isso. Sim, eu acho que sou. Mas, na verdade, eu fiz aquela música para que eu olhasse também. É um lembrete para mim também. É curioso, mas na realidade, o que a gente canta, muitas vezes, não é o que a gente tem, é o que a gente não tem! [risos] Cantamos justamente para alcançá-lo. 

E como é que vês o teu crescimento enquanto artista? Estás a aproximar-te cada vez mais da artista que um dia ambicionaste ser?

É curioso porque eu lembro-me de ver televisão e eu gostava muito, mas não me imaginava ali. Se me dissessem: ‘Olha podes ter o trabalho que quiseres na televisão… O que você quer?’. Eu acho que seria ‘o câmara’. Eu sinto que quando eu tenho alguma coisa para dizer que eu acho bonito, eu sinto um desejo muito grande de dizer. Ir lá e dizer. Se tiver um palco vazio vou e digo. Eu quero contribuir, quero dizer. É um desejo construtivo. Mas eu prefiro, sei lá… Trabalhar em grupo, estar com pessoas, dividir ideias. Esse imaginário de um artista solitário e sempre com os holofotes em cima de si, não era uma coisa que eu apreciava nem aprecio. Sinto que existe uma necessidade de divulgação e exposição, mas não era essa a minha meta. Quando eu comecei a tocar eu não pretendia fazer isso por muito tempo. Eu lembro até que uma vez, uma pessoa da minha equipe me falou: «Mallu, tu não pode dizer na entrevista que você não pretende continuar, senão ninguém vai querer patrocinar o seu álbum!». Mas eu não sei fazer de outra forma… Nunca soube. Por isso, não tinha a noção da artista que queria ser, imaginava-me mais numa coisa de produção artística, ou museus… Não me via como artista, podia ser outras coisas. 

Então foi uma coisa que simplesmente foi acontecendo…

Lá está, aquela coisa de aproveitar as oportunidades. Eu fico aberta para as coisas e sinto que fui sendo levada para determinados caminhos e fui também cavando espaços que não tinha. Mas é evidente que houve uma altura em que comecei a olhar o mundo do showbiz de outra forma, via as pessoas ganhando prémios… Eu ganhei alguns, mas não ganhava todos. Era importante para mim e eu ficava muito triste! Ou via que queria fazer shows em mais cidades e não dava… Também tive esses desafios e essas etapas. Portanto, olhando para trás, se tivesse de buscar uma conclusão, muito embora eu não tivesse essa visão clara de querer ser uma artista e querer me posicionar de uma maneira profissional, no fundo, eu queria. Queria conseguir fazer daquilo profissão, mas nunca tive uma visão megalómana das coisas.
 
Como é que são os teus processos criativos? Compões de uma forma mais cerebral ou mais intuitiva?

São várias etapas… Você começa a pensar em algumas ideias, a imaginar um rascunho… Depois as coisas nunca vêm logo de uma forma muito clara, então você vai aprimorando. Geralmente eu componho em movimento, gosto de compor dirigindo, ou caminhando, ou correndo, ou no avião, numa van, num uber… O movimento funciona muito bem para mim, na hora que eu começo mexendo, o meu imaginário dispara. E aí, geralmente gravo no celular. Começa com uma frase, normalmente melódica [canta para exemplificar] e, depois, vou repetindo e pensando naquilo. As pessoas na rua pensam que estou gravando um áudio, mas quando isso não era um hábito achavam-me maluca [risos]. Vou fazendo essas melodias, depois, em casa, vou colocando acordes, como ficaria mais ou menos e, por fim, é a letra. E essa última parte é a que demora mais…

E escreves olhando para dentro, ou atenta ao que está cá fora?

Acho que escrevo aberta, para fora. Mas também acho que é da idade. Já estou mais perto dos trinta! [risos] Eu acho que vivi um ciclo e que agora estou num momento completamente aberto, muito pacífico. Por isso, abro-me!

O teu último disco, ‘Esperança’, tem músicas em inglês, português e espanhol. É muito diferente escrever para cada uma das línguas?

Não! Geralmente vem a melodia e uma outra palavra. Tenho a melodia e vou falando palavras por cima, livremente. As primeiras frases quase nunca fazem sentido nenhum… Mas, às vezes, surge uma frase muito bonita e eu guardo ela… Vou montando e desenvolvendo. O idioma vem nesse conjunto que é o conceito da canção. Como se fosse um quadro, ele é um conjunto de coisas. Vou fazer uma paisagem, meter tons azuis e colocar elementos florais… A composição é a mesma coisa, só que com os recursos melodia, idioma, sonoridade e letra. É uma coisa inteira. Claro que é mais desafiador para mim compor em espanhol, porque é uma língua que eu só entendo, mas não consigo falar muito bem. 

E achas que a nossa língua tem alguma coisa de muito especial que as outras não têm?

Tem, tem mesmo. A língua portuguesa tem uma grande especificidade nas palavras. Temos uma palavra para tudo. Gosto muito de procurar palavras que são exatamente aquilo que quero dizer. E isso é interessante, faz com que a música fique realmente precisa e específica. Gosto muito da riqueza das palavras. 

Em 2012, dizias que, muitas vezes, te consideravas egoísta por passares tanto tempo ‘enfornada’ em casa a compor. Ainda o sentes?

Não. Eu acho que não. Agora tenho outras demandas… Primeiro a maternidade, claro! Porque não é só a criança… É a casa também. Antes a casa não precisava estar tão arrumada, não precisava de passar a roupa, não precisava de cozinhar. Antes eu dava um jeito. Comprava qualquer coisa congelada e comia. Era tudo muito menos exigente. Não tinha carro, não tinha essa necessidade. Com a criança é tudo diferente. O meu dia-a-dia, é muito mais fora do que dentro de casa. E isso é bom. Porque sinto que, como tenho pouquíssimos momentos no dia para produção artística mesmo, quando eu sento para produzir, valorizo muito esse momento. Antes não o fazia. Agora é uma coisa rara e, por isso, é quase um momento de meditação. É mais fácil você se focar quando sabe que se, não for ali, não é. 

Então isso significa que a maternidade mudou um bocadinho a tua maneira de gerir o teu trabalho…

Sem dúvida. Comecei também a relativizar muito as coisas, não sei.. Para mim a Luisa é a coisa mais importante de todas. Ela está à frente de qualquer outra demanda. Mas existe uma necessidade de trabalhar, por isso também coloco o meu trabalho num lugar muito valioso. A rotina adaptou-se e eu fico a tentar balancear a vontade de estar com ela com a necessidade que tenho de trabalhar. É complexo, mas é inspirador. É assim para todos. 

Enquanto artista, tens consciência do poder que podes ter na vida de quem te ouve?

Sim! Eu penso nisso! Justamente quando eu fico mais desanimada e penso: ‘Nossa, porquê? Lá vou eu de novo!’. É muito desgastante, é preciso você ser muito multifacetada, atuar em muitos fatores e investir de muitas maneiras. O tempo, o emocional… Nós entregamos absolutamente tudo de nós. Mas quando me questiono, procuro lembrar dos artistas que têm uma importância muito grande para mim… Emocional mesmo! Eu ouço uma música e ela desperta qualquer coisa em mim, isso é muito bonito. Há aquelas que nos ajudam a enfrentar dias mais difíceis… Então eu tenho essa noção, eu acho que é uma contribuição muito importante e isso, por si só, já compensaria. 

Isso significa que também tens relações diferentes com cada uma das tuas letras?

Tenho e é engraçado porque com o tempo elas se transformam e passam a fazer sentido de novo, mesmo que de outra maneira. Às vezes, músicas antiquíssimas, eu olho e penso: ‘Nossa… Essa música é muito velha!’. Aí eu começo a cantar e: ‘Nossa… É muito atual!’ [risos].

Em 2018, mudaste-te para Lisboa. Porém, vais muitas vezes a São Paulo. O que é que cada um destes lugares desperta em ti?

A primeira vez que cá vim foi em trabalho, mas depois quis vir passear. Comecei então a vir visitar e o Marcelo tinha muita vontade de morar em Lisboa. O Brasil é muito cheio, muito produtivo, muito próspero, e nós viemos para cá à procura de calma. Foi muito bom! Lisboa é uma cidade linda. Os passeios, os museus, a calma do rio, do dia-a-dia. Viemos a pensar que ficaríamos um ano… [risos] Fomos ficando e ficando… Eu também sou muito apegada ao Brasil, por isso não consigo ficar muito tempo longe. A medida perfeita é ir a casa três meses. Lisboa desperta em mim essa calma, essa tranquilidade, mas também desperta um desejo de futuro, porque aqui tem uma vida cultural muito, muito, forte. Tem uma energia qualquer de design, de arte, música… Tudo muito cosmopolita! Uma produção cultural interessante. Gosto muito de moda também, Portugal é muito rico nisso. O Brasil também, depende da cidade, mas sinto que quando lá vou tenho vontade de tocar, de estar com as pessoas, uma vontade maior de me entregar à vida. É como se aqui eu tivesse mais vontade de produzir e lá tivesse mais vontade de me entregar. As duas coisas se juntam, se complementam… Vou e volto!

Já eras fã do Marcelo antes de se apaixonarem. Ele ajudou-te neste teu percurso enquanto artista?

Muito! Acho que a contribuição do Marcelo é muito completa. Como companheiros, somos totalmente unidos, sempre foi a minha grande companhia. Temos uma amizade muito real, a gente sempre se apoia muito, se ajuda muito… A gente se põe para cima. Trabalhamos muito juntos, porque estamos sempre conversando sobre ideias, e partilhamos… Na minha produção tem sempre a presença dele. Ele me estimula, diz que é «lindo», para eu ir sem medos. Isso me incentiva muito. Ele já tinha uma trajetória e quando nos conhecemos eu pude aprender com ele como profissional. 

E a diferença de idades alguma vez foi um problema?

Nunca. Nunca houve nenhum problema! [risos]. 

Como é que se passa da música para o desenho e pintura? Onde é que estas artes entram na tua vida?

Tal como a música, foi muito natural. Sempre desenhei, sempre gostei de ilustrar. Na escola, via as pessoas à minha volta e tinha pessoas muito mais talentosas do que eu, que desenhavam muito melhor. Mas isso nunca foi um problema para mim. Eu conseguia chegar até um certo lugar e, até hoje, acho que mesmo nesse espetro que eu tenho de limitação, tenho muitos recursos! Divirto-me muito. Gosto de desenhar, pintar, recordar, fazer stop motion… Gosto muito dessa variedade de recursos. Fazer vídeo, música, desenho, pintura. Isso me estimula, me sinto trabalhando em vários aspetos e deixa o mundo mais interessante. Parece que, dependendo daquilo que você está fazendo, você olha em volta de uma certa maneira ou de outra. 

E é mais uma forma de olhares para dentro…

É isso mesmo! [risos] Imagina, você está desenhando ou está compondo e, depois, vai ouvir ou ver e pensar: ‘Nossa! Eu disse isso, ou eu pintei isto… É isso que eu sinto, afinal!’. [risos]

Em 2017/2018, decidiste criar um documentário da tua turnê ‘Vem’. Foi uma forma de te aproximares do teu público?

Era exatamente isso. Queria criar um canal direto entre a minha mensagem e as pessoas. Tentar oferecer a mensagem completa e detalhada. Senti que queria dizer coisas… Já tinha lançado o disco, já estava em turnê e pensei que queria muito dizer essas coisas. Organizei-as em vídeos, em episódios, com narrações e disse… É criar conteúdo para oferecer…

Querias mostrar um pouco da tua realidade?

Porque, às vezes, o público não tem noção de como funciona a vida de artista… É isso! É verdade! Ainda não tinha pensado nisso! [risos] É muito menos glamoroso do que parece. Acho que é interessante a gente ver, porque às vezes a gente tem a tendência de olhar uma figura, seja ela de qualquer setor, e pensar que o que ela está a fazer, já existia. Não… As pessoas fazem as coisas do zero. Claro que com a ajuda de muitas pessoas, mas é interessante pensar que para chegar até ali teve um trajeto muito grande. 

O teu último álbum chama-se ‘Esperança’, mas sei que esse não foi o primeiro nome escolhido… Podes falar-nos um bocadinho do disco?

É interessante porque ele se chamava ‘Felicidade’, mas depois veio a pandemia e essa ‘felicidade’ perdeu o sentido. Eu achei que podia ser um pouco desrespeitoso… Lançar um álbum com esse nome podia soar, para quem tivesse recebendo, como uma coisa meio estranha, porque ninguém sente felicidade neste momento… Eu não o sentiria assim, mas esta pandemia foi e ainda está a ser muito dura… Mesmo antes disso, com o álbum já pronto, eu queria fazer uma espécie de homenagem às felicidades da vida. Passar a mensagem que conversámos no início… De que se deve aproveitar o dia, receber, estar disposto, estar aqui quando chegarem coisas boas. Elas vêm, então você tem de estar aqui. Estar com os olhos abertos, o coração aberto… Era um lembrete. Mas realmente o mundo ficou num grau de não felicidade… [risos] Nós terminámos o álbum em janeiro de 2020, as coisas fecharam em março, então, em fevereiro de 2021, sentimos que era uma boa altura para lançar… Ainda na pandemia.  Esperámos um pouquinho. Mas como senti que a mensagem que queria passar não era aquela, mudei o nome para Esperança.  Mudei o nome, mudei a capa, tirei uma música, lancei assim adaptado e fez-me todo o sentido. O álbum faz-me muito sentido para este momento. E aí, me fez ver que a felicidade e a esperança são quase a mesma coisa. Estão muito juntas, tem muitos traços da felicidade que pertencem também à esperança. É como se fossem fruto da mesma fonte. São irmãs. Achei muito legal! 

É um disco leve?

Eu acho que ele traz leveza e uma sensação de calma de que vai ficar tudo bem. E tem também músicas mais tristes, mais para refletir…  Mas mesmo elas, estão nos levando para um lugar próspero, para um futuro. Acho que isso é importante. Termos esses momentos de reflexão, de sentimento, nunca devemos fechar os olhos… Estou sofrendo, mas não estou com os olhos fechados. Portanto, mesmo as músicas tristes, são fortes…
 
O disco está recheado de estilos musicais que sempre estiveram presentes na tua trajetória – como MPB, rock e o jazz. Também gostas de ser versátil aqui?

É! Sim! Mas foi mais sem querer… Não foi uma ideia pré-concebida, foi natural. Aquele conceito da canção já vir carregada de uma ideia… Eu sinto que todos os conceitos são acompanhados pelos instrumentos musicais… «Ah isso fica bem com uma guitarra [faz o som da guitarra], e uma bateria [faz o som da bateria]!». A escolha do repertório já puxa muito o que o disco vai ser, então nós gravámos 14 ou 15 músicas e o disco ficou com 11, sendo que uma vai só na versão do LP. Tenho uma que só é tocada ao vivo ou no LP. Essa questão de muitos estilos musicais é muito para colocar a roupa na canção.

Tens uma colaboração com a Preta Gil na música ‘Deixa menina’, música que escreveste para a Luisa. Contas-nos a história dessa música?

Foi uma das primeiras frases que a Luisa começou a falar… Ela deve ter ouvido alguém falar… Ela é muito autónoma e tem muita vida, então quer muito fazer as coisas de uma maneira muito determinada… Então ela já sai fazendo! Pula, corre… Só que para uma criança pequena é perigosa. Chegávamos na praia, era só abrir a porta do carro e lá já queria correr em direção ao mar. Nós dizíamos: «Não pode Luisa!». E ela respondia: «Deixa menina!». [risos] Chegava no jardim e subia a árvore… Eu dizia que não podia e ela respondia: «Deixa menina!». [risos] Aí ficou! [canta a música] «Deixa a menina brincar em paz/Dançar a dança que é só dela…» Eu admiro muito tudo isso nela, essa coragem. É inspirador. Depois é muito interessante se a gente aplicar isso na gente mesmo. Temos de nos lembrar de ser essa pessoa para nós mesmos. Quando a minha voz interior estiver muito elevada pela voz do entorno, quando a gente estiver fazendo o que os outros dizem é bom lembrar ‘Deixa a menina’.
 
O videoclip ‘America Latina’ é muito diferente de todos os outros. Sentes que com isso mudaste um pouco de conceito? Era essa a tua vontade?

Sim! Ele é muito mais ‘para fora’. A minha produção artística antes era muito mais íntima, contida e pessoal… Ainda é pessoal, mas parece que agora é como se eu estivesse falando de outro lugar, como se eu estivesse falando de um lugar onde eu posso abrir a porta toda. Sabe? Bora! É uma entrega total de um lugar que pode realmente ser entregue. 

Quando eras adolescente tinhas um papel colado no espelho para o qual olhavas todos os dias. Dizia: ‘Hoje eu estou achando que…’. Se estivesses agora diante desse espelho, estarias achando que…

[risos] Uau! Hoje eu estou achando que o dia está lindo, que bora lá trabalhar e levar as coisas para a frente. Vai dando tudo certo!