A catástrofe das cheias repete-se em Moçambique

Vemos desastres a esta escala uma e outra vez, nota João Feijó do Observatório do Meio Rural, lembrando que a terra é mais fértil em zonas com risco de cheias, atraindo a população.

A época das chuvas não costuma ser fácil em Moçambique, mas este ano está a ser particularmente duro. O norte e centro do país foram devastados pela tempestade tropical Ana, que afetou centenas de milhares de pessoas, fazendo pelo menos dez mortos – neste tipo de desastres em Moçambique, os números oficiais são sempre por baixo, com muitos desaparecidos que nunca serão encontrados – e causando cheias históricas nas províncias de Tete e Zambézia, deixando populações isoladas devido à queda de pontes, enquanto casas e infraestruturas eram destruídas.

Com operações de salvamento ainda a decorrer, a tragédia pode estar só a começar. Além de ter causado estragos brutais, a tempestade tropical Ana devastou algumas das principais zonas de produção agrícola de Moçambique, onde a segurança alimentar é um problema constante.

“É muito, muito provável que afete o rendimento agrícola da região”, alertou João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural, ao i. ”Os mais velhos não se recordam de ver estes níveis das águas, sobretudo em Tete”.

As imagens que chegam desta província são impressionantes, com o rio Revúboè, o maior afluente do rio Zambeze, a galgar as margens, derrubando a ponte entre a cidade de Tete e Moatize, os dois grandes motores económicos da região, uma infraestrutura cuja reconstrução custou o equivalente a mais de 3,2 milhões de euros, após o ciclone Idai, em 2019, segundo a Carta de Moçambique.

As águas arrastaram consigo até várias viaturas da caravana que acompanhava o governador de Tete, Domingos Viola. Não é a primeira vez que o Revúboè mostra a sua fúria – já com o ciclone Idai houve cheias que inundaram completamente o bairro de Chingodze, onde fica o aeroporto de Tete. 

“Quase todos os anos assistimos à mesma coisa. Há cheias, as pessoas saem dali, age-se de forma reativa, planeiam-se novos assentamentos em zonas mais altas. Mas as pessoas não querem viver lá, pela falta de acesso a água e bons terrenos”, explica Feijó, exasperado, lembrando que é nas terras baixas, para onde rios como o Zambeze arrastam sedimentos, que a fertilidade dos terrenos é maior, permitindo que haja agricultura de subsistência ou culturas como a cana-de-açúcar.

“Estas cheias são cíclicas, mas não há todos os anos, ainda que a frequência tenha aumentado. E a memória é curta”, continua o investigador. “Se no ano seguinte não há cheias, as pessoas vão timidamente reocupando as zonas baixas, a população aumenta. E depois vêm estas tragédias”.

O pior da tempestade tropical Ana já passou, garantiu o Centro Nacional de Operações de Emergência (CENOE) ao jornal moçambicano O País. No entanto, mesmo estando esta tempestade tropical já no Zimbabué, prevê-se que o centro e norte de Moçambique continuem a enfrentar chuvas intensas, capazes de causar cheias e deslizamentos de terras. 

É uma tragédia que provavelmente veremos repetida uma e outra vez, num país onde há cada vez mais fenómenos climáticos extremos, muito por causa das alterações climáticas. E onde se continua a construir – e reconstruir – em áreas com grande propensão para cheias.

“A população aumentou de quase quase dez milhões na altura da independência para quase trinta milhões”, lembra João Feijó. “A população triplicou. Imagine a pressão urbanística que isso cria junto das zonas costeiras e cursos de água”.