Helena Matos: “Temos que ter sempre muito cuidado com os filhos dos outros”

Acredita o PS irá ganhar por pouco. Critica as histerias com a covid-19 e os revisionismos históricos. Acha que dizemos ‘não’ a menos.

Helena Matos: “Temos que ter sempre muito cuidado com os filhos dos outros”

Helena Matos, jornalista, fala sobre política. Helena Matos, jornalista, fala sobre jornalismo. Helena Matos, jornalista, ataca ferozmente a ideologia de género. Helena Matos, jornalista, critica os histerismos da covid-19. Helena Matos, jornalista, fala sobre o que é o Homem. Tudo isto nesta entrevista. E tudo isto a Helena Matos jornalista, uma vez que quando se tenta colar-lhe o papel de historiadora ela rejeita-o liminarmente. «Sou jornalista, não sou historiadora», disse-nos, na sua casa, onde simpaticamente nos recebeu junto de uma lareira cujo fogo não se distinguiu das palavras que lhe saíam pela boca.

É que Helena Matos é feroz. E tem pensamentos ferozes. Os tais que, em algumas academias europeias, já causam algum zunzum: «Nós somos Beethoven e Homero», afirma. Mune-se do seu conhecimento histórico para fazer pontes entre o passado e o presente, notando que as ideologias mais radicais do Maio de 68 são parentes das que hoje tentam entrar nas casas de banho das escolas dos nossos filhos. Dos nossos e, sobretudo, dos outros, uma vez que «temos que ter sempre muito cuidado» com os dos outros. Atira-se violentamente às medidas sanitárias impostas pela covid-19, notando que o discurso de ‘culpa’ que hoje se propaga não é diferente do eco das «orações do ‘Eu, pecador, me confesso’».

Não abomina a possibilidade de castração química de pedófilos e violadores. Nota, apenas, do seu jeito destemido, que «gostaria de perceber melhor». Quanto à política, espera uma vitória do PS no domingo, mas por pouco. Mesmo que o PSD perca, o derrotado, esse, será sempre Marcelo. Encontra em Sócrates a esquina histórica na qual o PS perdeu a «ética e sentido de responsabilidade política». Acha que se Eduardo Cabrita estivesse num governo do PSD teria caído com mais facilidade, encontrando nas «redações com coração de esquerda» uma das razões pelas quais tal não aconteceu.

É nos «nãos» que encontra a liberdade. Considera que temo-los dito pouco. Com ou sem razão, fica claro nesta entrevista que se há algo a que Helena Matos não diga não é a pensar: e a pensar, sempre, em liberdade.

Estamos em véspera de eleições. Vemos uma aproximação do PSD ao PS. Quem vence e quem perde?

Quem perde é a figura do Presidente da República, que nos trouxe para esta crise de uma forma muito leviana ao ter logo dito que viríamos para eleições e ao não ter exigido, em 2019, um acordo escrito aos partidos que celebravam aquela solução governativa. Quanto ao Orçamento do Estado, penso que o BE e o PCP fizeram bluff: disseram-se disponíveis para ir a eleições, mas é claro que não as queriam. O Presidente também resolveu logo anunciar que também iria para eleições achando que assim não se iria para eleições. Claro que havia outro protagonista nesta história que achava que poderia ganhar alguma coisa indo para eleições, que era António Costa. Creio que quando começou a campanha eleitoral teve uma surpresa, que foi perceber duas coisas: que o país não estava bem como ele imaginava – quando começa o contacto com a realidade é diferente do país narrado pelo Governo do PS – e que os seus antigos parceiros de coligação agora estavam como adversários. A campanha de modo algum poderia reproduzir o quadro de 2019. Antes pelo contrário, remonta a umas eleições como as de 2015. Esta campanha eleitoral tem sido particularmente dura para o PS e para António Costa, que nem acho sequer que seja um bom político em campanha eleitoral.

Mas se tivesse que fazer previsões para domingo, acreditaria numa vitória do PSD ou do PS?

Esta entrevista está a ser dada ainda uns dias antes [na quarta-feira]. Neste momento, acredito numa pequena vitória do PS – mas mesmo assim não tenho a certeza. 

No início de janeiro Costa rejeitava convergir com a antiga ‘geringonça’. Contudo, passaram-se semanas e já abre a porta para «todos os partidos tirando o Chega». Acha que está com medo?

Não, acho que está a fazer contas. Há um fado da Amália que diz: «Fiz as contas e fiz as contas errada» [risos]. Parece-me ser esse o problema. As primeiras contas diziam-lhe que bastaria governar com o PAN e com o Livre, que era muito mais confortável do que com o BE ou o PCP. Qualquer um preferia governar com o PAN e o Livre do que com o BE e o PCP, que são outras estruturas e têm outra capacidade de pressão. O Livre é quase uma espécie de sociedade unipessoal de Rui Tavares e a líder do PAN tem dificuldades com o seu próprio partido. A coisa seria um caminho de rosas para António Costa, que certamente apareceria a falar dos cães, dos gatos, piriquitos e aquelas coisas dos direitos de uma Europa verde do Rui Tavares. Terá percebido que o PS nunca teria uma maioria quanto bastasse para governar em paz e tranquilidade com o PAN e com o Livre. E aí, a dada altura, tivemos António Costa quase a fazer um mortal encarpado: começa por ter debates muito duros, primeiro com Jerónimo de Sousa – em que rejeitava acordos com o PCP – e depois com Catarina Martins – quando descobre coisas terríveis que já lá estavam em 2015 e 2019. A certa altura veio dizer para os debates aquilo que muitas pessoas se tinham cansado de dizer: que o Bloco é de extrema-esquerda. António Costa, que estava indignadíssimo, rapidamente se apercebeu que assim não poderia ser. Terá que vir a negociar com dois perdedores, e é muito difícil negociar com perdedores. Terá de fingir que serão vencedores, e aquilo que eles lhe vão exigir é muito mais do que aquilo que teriam exigido se se tivesse partido de uma situação de negociação. 

Quem acha que estará a frente dessas negociações por parte do PS, António Costa ou Pedro Nuno Santos? Acha que há possibilidade de o PS sugerir que Pedro Nuno Santos forme governo à esquerda? 

Tenho a convicção de que o Bloco irrita António Costa: aquela direção do Bloco é algo que o irrita profundamente. Por outro lado, penso que António Costa tem outros projetos para si mesmo: uma coisa é o que o PS quer, outra coisa é o que o seu dirigente máximo quer. Se puder arranjar uma desculpa honrosa para sair, não creio que o escamoteie. Se for António Costa a ficar à frente do Governo não creio que o negociador possa ser Pedro Nuno Santos. Por outro lado, se for Pedro Nuno Santos a ficar à frente de uma solução, vejo com alguma perplexidade que os setores de extrema-esquerda vejam isso como uma boa notícia. Se há alguma coisa que a história ensina é que não há meio mais terrível e violento entre si do que as Esquerdas radicais.

O PS de António Costa ainda é herdeiro de Soares ou a Esquerda clássica em Portugal já não está à frente do PS?

Se bem lembro os ‘seguristas’ existiam, não era? 

Os tais.

Existiam, onde é que estão?

Não sei, onde é que estão?

Não sei. O PS era um partido com muita vida. Quando uma pessoa vê o que foi o tempo de Soares, aquilo tinha mesmo vida a mais: uma conflitualidade que quase parecia o CDS em ponto grande [risos]. A partir de Sócrates aquilo tornou-se quase um partido de pensamento único no momento em que está no poder. 

Acha que o PS é um partido mais acrítico e ‘cartilheiro’ do que os outros? Um que privilegia a homogeneidade de pensamento? 

Nunca privilegiou, nem creio que privilegie. Creio que desde Sócrates, inclusive, privilegia a homogeneidade de atuação quando está no poder. Quando se está no poder não se discute, não se questiona: tudo tem uma explicação, mesmo que seja para lá do razoável. Situações como a do ministro Eduardo Cabrita ou do elenco governativo – pais, filhos, mulheres – não seriam possíveis. Quando um grande partido acha que o critério para decidir o que está bem ou mal é se é de matéria criminal ou não, há uma deslocalização da capacidade julgar. Nem tudo o que não consideramos bem tem de ser de matéria criminal. Quero acreditar, sinceramente, que não existe responsabilidade criminal no acidente com o carro de Eduardo Cabrita (e acho que deve ser horrível para qualquer pessoa), mas o facto de querer acreditar nisso não quer dizer que ache que não exista responsabilidade política. 

Consegue encontrar a esquina em que a história virou nesse sentido de falta de ética e de irresponsabilidade política? 

Com Sócrates, claramente.

Então o PS pré-Sócrates era mais responsável e tinha mais sentido crítico internamente?

Todos os partidos democráticos, sobretudo quando estão no poder, têm momentos péssimos, opções erradas, governantes que cometem erros. O que não se pode esperar é que normalizem isso para continuar no poder.

Acha que a Direita é mais responsável nesse sentido?

Não é nada mais responsável, só é mais escrutinada. Escrutinadíssima. 

Porquê?

Porque a Comunicação Social, ou a maior parte das redações, tem um grande coração de Esquerda. O que é saudabilíssimo e de desejar. Não quero que passe a ser menos, que passem a escrutinar menos. Só quero que passem a escrutinar tanto quanto! O escrutínio é das coisas mais importantes que existe. Tenho a certeza de que se Eduardo Cabrita fosse ministro de um Governo do PSD não teria resistido semanas, e isso teria sido ótimo: para o próprio e para os portugueses.

Disse que as redações têm um coração de Esquerda. Por que é que em Portugal, os jornais, a comunicação social, os intelectuais, quase todos são de Esquerda?

Parafraseando António Costa, a «História explica». O caso não é de modo algum apenas português. E nem sequer se pode dizer que sejamos um dos casos mais graves disso. E não quer dizer que isso impeça um político de não-esquerda de se afirmar. É frequente encontrarmos, na área do centro-direita, os líderes afirmarem-se dizendo que têm a imprensa contra si ou que não têm qualquer talento para dar entrevista ou para debates.

Como Rio…

Sim, o caso de Rio. Mas o caso mais evidente até é Cavaco Silva. Como é que não tinha talento para comunicar um homem que teve duas maiorias absolutas e ganhou a Presidência da República? Arranjou foi uma forma de comunicar com os portugueses. Muitas vezes era imune àquilo que os jornalistas diziam. Em certo sentido um bom líder à direita consegue cavalgar isso e até tornar-se imune a isto. A política é o que existe, não é aquilo que nós queiramos que exista. Quando se fala de pessoas não terem médico de família e da possibilidade de essas pessoas irem a uma consulta do SNS numa instituição privada, vem-se dizer que isso é querer pôr as pessoas a pagarem as suas despesas de saúde: «Privatizar o SNS». Aqui sim, vê-se o tal coração à esquerda. Este tipo de linguagem é um problema. Podemos passar para as outras questões: por que é que, de repente, nos jornais, deixou de haver pessoas do sexo masculino e do feminino e passou a haver géneros? De repente parece que se tornou obrigatório todos termos um género. 

Está a querer dizer que o politicamente correto está a entrar pelos jornais adentro? 

Entra todos os dias. Aqui há uns tempos havia um problema gravíssimo com a ida das crianças transgénero às casas de banho das escolas. Em primeiro lugar, as casas de banho das escolas são uma coisa terrível: a maior parte delas são infrequentáveis. Depois, a própria noção de se querer aplicar o conceito de transgénero a crianças dará muito que perguntar.

Porquê?

Porque estamos a falar de crianças. Há coisas que não devemos decidir quando somos crianças, nem ninguém deve decidir por nós. 

Acha que a dita ‘ideologia de género’ pode magoar as crianças?

Pode servir-se delas como no passado se serviu delas para outras coisas. À sua geração [dos 20 anos] talvez cause perplexidade, mas recordo que nos anos 60 houve abaixo-assinados na imprensa francesa a defender a legalização da pedofilia porque o facto de os adultos não terem relações sexuais com as crianças era uma forma de as privar do prazer, de as obrigar aos constrangimentos da família burguesa reacionária. Hoje as pessoas fazem de conta que não assinaram isso, mas isso está lá. Felizmente existem bibliotecas, em papel: porque se fosse na versão só online talvez conseguíssemos que o direito ao esquecimento apagasse isso. 

Compara a libertinagem do Maio de 68 com o que se faz agora nas escolas?

Na questão do Maio de 68 não era uma questão de libertinagem, era uma questão de ideologia. 

E hoje em dia é uma questão de…?

Ideologia, também.

E acha que são primas, irmãs?

Sim. 

Mas acha que hoje é tão radical como o exemplo que apresentou?

Quando vemos a explosão de casos de disforia de género, sobretudo em rapazes, talvez tenhamos que perguntar o que estamos a fazer. Temos que ter sempre muito cuidado com os filhos dos outros. Que é uma coisa que as pessoas que estão possuídas da cegueira ideológica muitas vezes não têm. Muitas das coisas aplicam-se, sobretudo, aos filhos dos outros. E sobretudo aos filhos dos outros que não se podem defender e que não têm meios de se pôr a salvo desses delírios ideológicos.

Quem está a favor destas coisas diz que são feitas pela inclusão e pelo amor.

Talvez das coisas mais terríveis que tenham acontecido à humanidade tenha sido aquilo que se quis fazer pelo bem da humanidade. 

O bem pode levar a totalitarismos, não é?

Sim. Não há piores totalitarismos do que aqueles que se fazem pelo nosso bem. Convém desconfiar muito daquilo que se nos apresenta como sendo uma espécie de correção.

Por que é que em Portugal a moral está à esquerda? Por que é que em Portugal quem não adere ao discurso que acabou de condenar é «um perigoso reacionário»?

Para já porque havia uma coisa que era a «superioridade moral», nomeadamente a dos comunistas. E depois é curioso que tenha posto a questão nesses termos. Acho que só a sua geração podia pôr. Para a minha geração, a moral era uma coisa de velhos reacionários, e de repente caímos num mundo complicado. Por um lado tínhamos defendido os direitos dos homossexuais, direito a escrevermos o que queríamos, defendido que o que era bom era discordar. E, de repente, percebemos que havia uns moralistas ainda muito mais severos do que aqueles que nós tínhamos contestado. E é com esses que nos defrontamos agora. E daí que veja com enorme complexidade este mundo de gente que se fecha em casa com medo terrível do vírus. Em que estamos todos cada vez mais confinados, e que vamos apontar o dedo ao outro que não se vacinou, e que vamos criar um passe ou mais este documento ou mais aquilo. E depois temos de derrubar as estátuas para fingir que o passado não existiu, e temos de queimar estes livros, ou corrigi-los, ou reescrevê-los. Isto é um mundo onde nós – nasci em 1960 – nunca pensámos que isto nos iria acontecer.

Derrida dizia que a democracia estava sempre «por vir». Que estava sempre à frente: quanto mais há mais se constrói. Contudo, há quanto mais tempo a temos, parece que, através dela, mais facilmente cedemos os nossos direitos. Acha que se pode chegar a um ponto tal de democraticidade em que em vez de delegarmos os nossos poderes os damos ao de barato? 

Acho que não estamos chegar a democraticidade alguma. Acho que estamos a chegar a coisas bem velhas e bem antigas que até conhecemos, que são sistemas muito autoritários. É a primeira vez que a humanidade consegue estar apetrechada com meios para enfrentar uma pandemia desta natureza. Há vacinas, existe estado social, meios. Quando se pensava que tudo isto iria ajudar a humanidade a manter a sua vida, não: a humanidade fez aquilo que nunca tinha feito – que foi fechar-se em casa. Inicialmente eram duas semanas, mas já vamos em dois anos. Temos neste momento pessoas com problemas de saúde gravíssimos e continuamos a contar os casos de covid todos os dias. Tornámo-nos numa sociedade confinada, agarrada aos seus ecrãs, a ver todos os dias quantas pessoas morreram com covid. 

E por que não há um grito perante isto? 

Penso que é sempre muito difícil reagir. Demora sempre algum tempo. Estou a falar consigo e estou a falar com muito cuidado para que não me caia o rótulo ‘negacionista’ em cima. Como é possível que os jornalistas tenham passado a chamar ‘negacionistas’ às pessoas? E chamaram ‘negacionistas’ a pessoas que simplesmente vieram chamar a atenção que com a vacina se calhar não fazia sentido testar desta forma. De repente se fizerem aquilo que é positivo – e sem o qual a ciência não evoluiu –, que é criar dúvidas, passam a ser tratadas por ‘negacionistas’. ‘Negacionista’ é uma palavra que tem um peso terrível: está ao nível de quem nega o Holocausto (quem nega o Holodomor, apesar de tudo, tem carta de alforria).

A tal superioridade moral de que falávamos há bocado… Que se calhar não deveria vir das redações.

A pandemia veio mostrar um jornalismo que se vê quase como um filtro entre populações confinadas e uma realidade na qual eles circulam dizendo aos outros que não se podem deslocar. A certa altura era como se houvesse um mundo no qual se deslocavam os jornalistas e os políticos. E as pessoas em casa. 

Como se chega a um ponto tal de sobranceria intelectual em que se rejeita totalmente o ‘outro que pensa diferente’?

Por questões sanitárias. É como se no discurso sanitário entrasse aquela ideia da mácula religiosa. É um discurso que, apesar de sanitarista, tem aquela ideia do «outro que contamina», do «outro que polui», que «conspurca». A certa altura, muito do discurso da covid, se lhe tirar a covid, parece um discurso místico. A ideia de que ele se propaga por «nossa culpa», por «nossa tão grande culpa». Somos sempre nós que fizemos mal. A certa altura parece que estamos a ouvir em eco as orações do ‘Eu, pecador, me confesso’.

Saindo da pandemia. Acha que a sociedade portuguesa, devido ao conforto que o capitalismo trouxe, é uma sociedade que se dá menos à descoberta e às questões do que, por exemplo, a dos anos 70?

Nós somos uma sociedade particularmente envelhecida, e acho que isso faz muita diferença. Até a capacidade de errar – porque errar faz parte da vida – está diminuída. Tudo tem de ser liofilizado, esterilizado. É uma sociedade muito envelhecida em que os mais empreendedores e os que arriscam mais emigram, e isso também marca. As pessoas têm muito poucos filhos. Uma sociedade quase de filho único, de crianças hiper protegidas. Isso é o mais surpreendente quando se comparar com o passado. É uma complexificação da vida em sociedades que estão velhas. A sociedade portuguesa está a envelhecer.

E a sociedade portuguesa não era velha durante o Estado Novo?

Não, porque havia gente nova.

Quando digo «velha» não penso só do ponto de vista anatómico, penso também na maneira de pensar. 

Quando quem governa uma sociedade está preso numa cadeia de imobilismo não consegue resolver os bloqueios da sociedade. Isso aconteceu, no caso português, com a questão do Ultramar. Não era uma questão de guerra (porque as guerras os militares tratam delas). A questão era entender como é que aqueles territórios passavam a administrar-se ou a autoadministrar-se. Nós temos, neste momento, um bloqueio idêntico, que, tal como o do Ultramar, compromete as gerações futuras. Que é o bloqueio da segurança social. O estado social criou um bloqueio que parte do princípio de que as gerações atuais estão a pagar algo de que não poderão usufruir. Há um contrato geracional que se está a quebrar: é aquilo que alguns designam como a conspiração grisalha, como o meu cabelo [risos]. A democracia em Portugal terá que dar provas de resolver esse bloqueio. Os atuais partidos não mostram disponibilidade não só para não falar verdade sobre este assunto como para assumir que precisam de chegar a um acordo para o resolver. Tem de se chegar a acordos para resolver isto. O regime de Estado Novo acaba numa situação de bloqueio e a democracia está numa situação de bloqueio.

Sobre a democracia: porquê e quando é que a Direita deixou de falar para os pobres?

A Direita falou para os pobres sempre que os convenceu que poderiam viver melhor. Ou seja, fala-se para os pobres não quando se lhes diz que se vai dar isto ou aquilo, mas quando se convence as pessoas que podem vir a viver melhor. Lembro-me de, nos governos de Cavaco Silva, as pessoas acreditarem que podiam viver melhor por aquilo que faziam.
 

Se calhar olhavam para Cavaco e tinham uma inspiração de self made man.

Sim, sim, sim. Aquela ideia que se podia viver melhor. Não era poder vir a ter mais um apoio, nem mais um subsídio. E isto é, de facto, uma sensação completamente diferente daquela ideia de andarmos agora a ver se conseguimos uma isenção disto, e mais um subsídio, e mais um apoio. Era um sensação completamente diferente. 

Desde Cavaco que a Direita já não consegue isso?

Acho que tem sido difícil. Talvez se Passos Coelho tivesse feito o segundo governo isso teria sido possível. Ou seja, depois daqueles anos a aplicar aquele memorando de entendimento – que foi negociado por Sócrates – tenho alguma curiosidade em saber como e se o homem que transmitia aquela imagem de austeridade iria conseguir passar a ideia aos portugueses de que podiam vir a viver melhor. 

Acha que Rio fala para os pobres?

Acho que é uma pena que ele, às vezes, não tenha procurado chegar tão próximo das pessoas. Explicar-lhes qual é o projeto. Acho que Rio tem uma formação e uma prática profissional que lhe dá o à-vontade nas matérias económicas, mas até fazer disso um sonho para o comum das pessoas há ali um passo que não tem a ver com a competência técnica: e há quem tenha isso e quem não tenha. Há um momento dramático num debate entre Manuela Ferreira Leite e José Sócrates: ele anunciava medidas – anunciava, anunciava, anunciava [risos]. E a certa altura, Manuela Ferreira Leite, que sabe muito mais de Economia e Finanças do que José Sócrates, pergunta-lhe: «Mas onde é que está o dinheiro?! Onde?!». Ou seja, embora ela fosse melhor preparada, ele era muito mais eficaz a passar aquela mensagem de que se podia fazer isto ou aquilo.

Acha que a Esquerda brinca mais com a verdade nesse sentido?

Em português do Brasil existe um termo que é o «bondadismo» – a ideia de que o Estado dá. Ele dá casas às pessoas, ele dá o SNS. O Estado somos nós, não é? O Orçamento do Estado é o orçamento dos contribuintes. Não sei se as pessoas querem viver num sítio onde os governantes lhes deem alguma coisa – só isso parece ser um bocado rebaixante. Se no limite fosse assim, cada um dava mais que o outro [risos]. 

Mas porque diz «rebaixante»? Não acharia maravilhoso um rendimento universal?

Não. Detestaria. Isso é nos Emirados Árabes. Todos eles têm um rendimento: quantas obras de cultura ou de investigação científica já produziram? Provavelmente nenhuma.

Porque o povo com este dinheiro fica-se pelo estímulo rápido e não quer ir mais além? 

Claro.

Então acha que o ser humano, para chegar mais longe, precisa de ter uma certa fome de procura?

Sim, claro. Aqueles filhos daquelas famílias que recebem sempre uma mesada resultam em alguma coisa? 

Então o ser humano cresce porque procura?

Claro. Essa ideia de se viver com essa espécie de mesada estatal é como os presos. Eles também têm tudo: cama, mesa e roupa lavada. E há prisões ótimas fora de Portugal, como na Suécia e na Noruega. Aquele senhor que matou aquelas pessoas todas naquela ilha está num cadeia ótima – e acho muito bem, acho que os presos devem ser bem tratados: tem alimentação, tem ginásio, pode dar uns passeios. 

Disse que achava que os «presos deviam ser bem tratados». A Esquerda gosta de colocá-la como «reacionária». Acha que essa frase encaixaria no perfil que a Esquerda gosta de pintar seu? 

É-me indiferente o que a Esquerda gosta de pintar acerca de mim. Acho absolutamente vergonhoso aquele jornalismo mórbido e quase deliciado sobre o que acontece nas prisões na África do Sul. Quando vemos isso a acontecer e não o denunciamos, quando vemos que a PJ investiga apenas pequena parte das mortes nas prisões, quando se considera normal que um violador dentro de uma cadeia seja violado pelos outros presos, parece-me que pensamos sempre que nem nós nem os nossos filhos podem entrar numa cadeia.

Acha que essa empatia que está a demonstrar está a faltar a uma certa Direita em crescimento?

Não sei se essa empatia falta ou sobra. Sei que, comigo, é assim. O grau de civilidade de uma sociedade está muito presente na forma como lida com os seus presos.

E quando vê pedidos de prisão perpétua ou castração química?

Em relação à prisão perpétua, causa-me alguma perplexidade a discussão que existe atualmente. Acho que precisámos de criar alguns assuntos para nos distrairmos do essencial, que é o caso desta discussão sobre a prisão perpétua. Em primeiro lugar, não creio que ela em Portugal faça sentido. Contudo, quero relembrar que ela existe na maior parte dos países da União Europeia. Não nos é completamente alheio: atravessamos a fronteira e há prisão perpétua em diferentes mecanismos. Em relação à castração química, fala para os violadores?

Sim, violadores e pedófilos – acho que é isso que André Ventura defende

A questão foi colocada pelo André Ventura, o que desconcentra logo as coisas. É uma discussão que se faz em vários países a propósito da questão da reincidência. Há vários casos de reincidência, e tem que se decidir se se mantêm as pessoas presas para a vida ou se uma vez quando saem da prisão são acompanhadas para a vida por técnicos de saúde e polícias. Acho que não se pode escamotear o fator reincidência, porque ele de facto existe. Fazer de conta que as coisas não existem não costuma ser um bom caminho. Se não se faz esse acompanhamento podemos chegar a questões de reincidência. Quando chegamos, então, tem de se decidir: ou a discussão da prisão perpétua para determinados crimes ou a castração química. Gostaria de acreditar que se poderá resolver com o acompanhamento mais vigilante das autoridades policiais, dos técnicos prisionais, das medidas de reinserção, da integração em programas. Quero acreditar, embora tudo isso coloque questões porque as pessoas já cumpriram as suas penas. 

Não abomina a ideia de castração química?

Gostaria de perceber melhor. Gostaria de perceber em que medida pode ou não funcionar. 

Mas o facto de uma pessoa ter os seus genitais castrados por uma entidade superior não lhe parece medieval?

Estamos a falar de medicação. O grande problema é que quando seguimos alguns casos de violações praticadas por reincidentes, a questão coloca-se. Acho que seria importante percebermos algumas coisas, porque de repente isto chega à discussão e pergunta-se muito pouco. O que acontece quando um violador sai da cadeia? Cumpriu a sua pena? É como outro criminoso qualquer? É integrado em programas de acompanhamento? Antes de discutirmos a castração química e a prisão perpétua talvez pudéssemos começar por discutir isso. 

Há algum tipo de criminoso pelo qual não sinta compaixão? 

Acho que todos nós devemos sentir compaixão. Até porque estamos numa sociedade judaico-cristã: não sentirmos compaixão não é algo. É-nos estrutural. Todos nós, em qualquer momento da nossa vida, podíamos pensar que em qualquer momento da nossa vida podíamos praticar um crime. Acho que tudo ficaria muito mais simples se pensássemos isso. E tenho muito medo das pessoas que dizem: «Não, eu nunca praticarei».

Ou seja, a deficiência e o erro fazem parte do Homem.

Claro que sim. Portanto todas essas decisões irreversíveis sobre os outros – sejam penas de morte, prisões perpétuas….

Seja por exemplo a cultura de cancelamento, que é muitas vezes irreversível.

Em geral não é.

Em Portugal não é

E mesmo nos outros países não é. Porque as coisas voltam. Viu como voltaram os ícones russos no fim de não sei quantos anos? As coisas voltam, e os livros voltam. Por acaso em relação ao online às vezes penso como será, porque no suporte do papel as coisas ficam: há sempre um bibliotecário que guarde.

Prefere ler em papel ou digital? 

Hoje leio imenso em digital. Em digital não leio, consulto. Em digital consulta-se, consome-se informação. Ler um romance lê-se em papel.

No século XXI, a Esquerda surge a criticar as práticas dos portugueses nos Descobrimentos, dizendo que o mal já o era nessa época. Logo vem a Direita, e diz: «Ah, mas na altura as coisas eram assim e essa perceção não existia». Só que depois há cronistas como Gomes Eanes de Zurara, que em pleno século XV já denunciavam as práticas portuguesas e identificavam o ‘mal’.

E tem o Bartolomeu de las Casas, com os índios. A reflexão sobre a escravatura é algo que marca a sociedade ocidental: não se encontra infelizmente a mesma reflexão nas outras sociedades, como as africanas ou muçulmanas. A escravatura não nasceu com o tráfico negreiro para o Brasil. Existia e existiu, e continuou a existir depois. O que acho importante na nossa civilização é que tenha refletido sobre essa prática, tenha-a condenado e tenha acabado com ela. E se me perguntar, sempre foi óbvio que tal causava sofrimento às pessoas? Já se sabia que tinha causado sofrimento no Império Romano, nos Gregos. Acho que o passado tem de servir para construirmos o presente e o futuro. Quando andamos a ajustar contas com o passado é porque não temos qualquer projeto para o presente nem para o futuro. E não tenho o menor grau de paciência para pessoas que são subservientes para tiranetes do Médio Oriente e depois resolvem vir fazer os seus ajustes de contas com a nossa sociedade, que, com todos os seus defeitos, é do melhor que até agora a Humanidade conheceu.

Disse que estas pessoas não têm projetos para o presente e daí andarem a vasculhar o passado. Eles responder-lhe-ão que para mudar o presente é preciso vasculhar o passado – porque este influenciou o presente no sentido de instituir um racismo estrutural ou um sentimento de orgulho. Dir-lhe-ão que o passado influencia o presente.

Mas é claro que assim é. Se não, não estaríamos cá. Nós temos é de fazer o nosso presente. Quando a opção é censurar livros e não fazer livros novos, quando a solução é deitar abaixo estátuas e não criar exemplos para se fazerem novas estátuas, quando a opção é fazer julgamentos sobre alguém há 500 anos e não perceber as pessoas no seu tempo, além de ser um exercício de uma insanidade, é não percebermos uma outra coisa: que razões não faltarão para que alguns fanáticos do futuro olhem para nós com o mesmo grau de intolerância que essas pessoas têm agora.

Acha que a sociedade ocidental se leva demasiado a sério?

Pelo contrário, acho que é por não se levar a sério que estamos nesta espécie de jogos de absurdos.

Porque se se levasse a sério não permitira que fossem cancelados Beethoven ou Homero?

Claro que não. Nós somos isso.

E por que temos medo de dizer que somos isso?

Não tenho medo dizer o que sou.

Mudando de direção e voltando à Política. Tem sido muito criticado o facto de os comentadores políticos terem mais tempo de antena do que os políticos per se. Sendo que a Helena faz parte destes comentadores, como vê esta crítica?

Há aqui um problema: não é por os comentadores falarem tanto e tanto tempo que os políticos falaram tão pouco. E depois há outra coisa: quando estão a ouvir os comentadores, as pessoas tem a enorme e imensa liberdade de desligar. Não são obrigados a ouvi-los. Não é por as pessoas não conseguirem deixar de ouvir os comentadores que vamos ter de lhes pedir para falarem menos. Em relação ao tempo dos debates: creio que num tempo muito escasso de debate, entre dois líderes, seja difícil sair daquele frasear de boas intenções. Gostaria muito que houvesse debates temáticos. Por exemplo: um debate sobre as questões energéticas, outro sobre a Justiça e ainda um sobre aquela que parece ser a única reforma garantida, que é a regionalização. Sendo que esta é dada como certa, pelo menos gostaria que tivesse tido um debate.

É contra ou a favor?

Contra.

E acha perigoso o facto de o PS e o PSD serem a favor neste momento?

Acho que sim, é uma aposta na sobrevivência das máquinas partidárias desses dois partidos. 

Mais ‘tachos’, eventualmente?

Pode dizer tachos, panelas, frigideiras – o que quiser. É mais um grau de criação de poderes, mais uma camada na administração que já por si é lenta, burocrática, corrupta. Em vez de se agilizar a administração, premeia-se dando-se-lhe mais uma camada. Acho que num país que tem o tamanho de algumas regiões de Espanha criar a regionalização é muito interessante como um território de expansão para os partidos, sobretudo PS e PSD. 

Como comentadora é das vozes mais disruptivas em Portugal. Alguma vez, desde que faz opinião pública, sentiu a sua voz condicionada?

Não. Nunca me ocorreu. As pessoas também se deixam condicionar. Portugal não é de maneira nenhuma a Ucrânia ou a China. Nós aqui o que arriscamos é poder perder um trabalho.

Mas isso já demonstra alguma coisa.

Mas apesar de tudo temos de perceber que há quem arrisque muito mais do que nós. Não faço a menor ideia o que será em Hong Kong, Ucrânia ou Moscovo. E as pessoas devem habituar-se a que isto faça parte das contingências do seu trabalho. 

O que diz sobre a Política o facto de hoje, nuns sítios, perder-se trabalho, e de, noutras partes do mundo, perder-se a vida?

Quando se perde o trabalho também se podem ganhar alguns outros melhores, passado algum tempo. Neste tipo de trabalho as pessoas têm de aprender a viver sem estarem demasiado dependentes do que se diz de si.

Livres, então.

Sim.

Como a Helena é?

Como gostava de ser. Acho que a liberdade é sempre alguma coisa que nós queremos mais e precisamos mais. A nossa maior liberdade, o que é mais importante na nossa vida, é podermos dizer ‘não’. Não é aquilo a que dizemos sim, é aquilo a que dizemos ‘não’. O mais importante que podemos ensinar aos nossos filhos é a dizer ‘não’. Os maiores erros da nossa vida resultam, até como povos, daquilo a que não dissemos ‘não’.

E nós temos dito ‘nãos’ a menos?

Ai claro que sim! Tenho a certeza absoluta.