O gabinete de Zola e a fantasia mourisca de Dumas

Por muito apelativo que seja, o modelo do escritor caído na miséria não constitui a norma. E as casas de muitos profissionais das letras estão aí para o mostrar.

Camões no leito de morte, sobrevivendo graças à dedicação comovente do seu escravo, Jau, que de noite ia pedir esmola para poder continuar a cuidar do amo. Edgar Alan Poe delirante nas ruas de Baltimore, incoerente, vestido com roupas que não lhe pertenciam. Kafka tuberculoso, a tremer de frio num apartamento insalubre de Berlim, usando cotos de velas para preparar o jantar na última passagem de ano da sua vida (de 1923 para 24). George Orwell febril na cama de uma pensão barata em Paris, obrigado a empenhar as roupas mais quentes, depois de ter sido roubado por uma rapariga que ele pensava ter conseguido seduzir.

Existe algo de especialmente apelativo nestas histórias de grandes escritores a passar dificuldades ou mesmo caídos na miséria. Curiosidade mórbida? Satisfação com a desgraça alheia? Prefiro acreditar que o que fascina verdadeiramente nestes exemplos é antes a coragem e a renúncia quase monástica de alguém que colocou a sua obra à frente do conforto material. E que, em última instância, acabou por triunfar.

Mas claro, por mais apelativas que sejam, as histórias dramáticas de Camões, Poe, Kafka ou Orwell não constituem de modo algum a norma. Também se pode escrever grandes obras bem instalado, sem precisar de passar por especiais dificuldades. Honoré de Balzac trabalhava num gabinete de paredes forradas a veludo encarnado. Em 1844, cinco anos antes do infortúnio de Poe, escrevia as primeiras linhas nesse seu novo espaço em Passy: «Escrevo-as às oito da manhã, sob os raios de um belo sol que entra pela janela quadriculada, e envolve com um manto encarnado o meu gabinete, os meus estofos e os meus papéis. Será um presságio? Deverei acreditar? Não se faz ideia da beleza desta manhã. […] Se Deus anuncia a felicidade, deve ser assim».

E ncontro esta passagem no livro Maisons d’écrivains et d’artistes, de Hélène Rochette (ed. Parigramme), que apresenta cerca de meia centena de residências de criadores famosos em Paris e arredores.

Umas páginas adiante, eis a vivenda de Zola em Médan, adquirida com os proventos trazidos pela literatura. Os irmãos Goncourt, no seu diário, descreveram o escritório como uma sala ampla, até grandiosa, mas desfeada por «uma quinquilharia infecta». Segundo Rochette, «perdida no meio de velharias, de armaduras medievais, de manequins e de bustos, a mesa de trabalho de dimensões gigantescas acolhe um bricabraque de objetos e de amontoados». Ao que parece, Zola não primaria pelo bom gosto…

S e Camões, Poe, Kafka e Orwell passaram dificuldades, outros escritores houve que puderam satisfazer todos os caprichos. São disso exemplo o casarão requintado que Chateaubriand desenhou para a sua propriedade em Vallée-aux-Loups ou a fantasia mourisca que Dumas mandou erguer em Port-Marly, onde tudo parece um pouco excessivo, quase infantil. Balzac adorou este pastiche. «Se a tivesses visto, ficavas doida», escreveu à sua amante polaca, a condessa Eveline Hanska. Dumas não tinha, de facto, olhado a despesas. A tal ponto que, no final de 1851, teve de exilar-se na Bélgica para escapar aos credores.